A moda e a liberdade do corpo das mulheres
Seja na presença do corset na passarela da Dior ou na facilidade do tweed da Chanel, o frescor é a palavra de ordem nas coleções de Primavera/Verão 2023
A sensibilidade de alguns diretores criativos sobre a liberdade do corpo feminino ainda é um ponto para celebrar. O que ficou evidente na temporada de moda parisiense, encerrada nesta semana, foi o quanto ainda é preciso questionar as formas e pesos que o vestuário tomou ao longo de tanto tempo. Anos e anos de estilistas, homens na maioria das vezes, desenhando e modelando o que cairia bem no corpo das mulheres — sem mesmo entender muito bem como essa estrutura funcionava.
Na história da indumentária, a leveza e o bem-estar da mulher nem sempre foram levados em consideração. Aliás, na Idade Média, quanto menos a mulher pudesse caminhar, devido ao peso da roupa, melhor — menos longe ela iria. Séculos se passaram e a exigência por peças confortáveis não estão atreladas apenas aos looks para ioga ou exercícios no geral. A ideia de libertar o corpo da mulher é uma questão relevante para a moda. E Maria Grazia Chiuri, que apresentou sua trigésima coleção (entre Couture e Prêt-à-Porter) para a Dior, entende bem como traduzir isso, sendo uma mulher vestindo outra mulher.
Entre os elementos presentes na sua Primavera/Verão 2023 está o corset, ícone do guarda-roupa feminino que representa o quanto a sua origem se baseia em uma época quando o desconforto era o “normal” — item que segue sendo usado como ferramenta de protesto. Desta vez, a Dior trouxe a peça com uma estrutura mais leve, solta e, ainda, usada em um contexto casual. Nada caricato, como na década de 1990, quando Jean-Paul Gaultier levou sua versão para a passarela e para o figurino da turnê Blonde Ambition, da Madonna. Na época, Gaultier previa a ideia do uso em um contexto nada casual, diferente de Maria Grazia que já visualiza suas criações indo diretamente para as ruas.
Além dos corsets, a estilista italiana trouxe para a sua passarela crinolinas, as conhecidas armações para saias usadas séculos atrás que garantiam a estrutura do vestido, com interpretações românticas em vestidos curtos ou saias longas. Uma das saias, inclusive, estava combinada a um top tão atual, que eu levaria facilmente a peça para dar uma voltinha sem muitas surpresas.
Tanto o corset quanto a crinolina tiveram uma razão: a inspiração na Rainha da França Catarina de Médici. A figura nascida na Itália já foi usada por diversas marcas, inclusive por Chanel, mas a interpretação de Maria Grazia Chiuri questiona o encontro entre épocas e revela a vontade de fazer a mulher estar bem com ela mesma — e com sua roupa. Além desses, que também apareceram em outras coleções, como Balenciaga e Loewe, o tecido e a modelagem em si são outros elementos que dão força a esse movimento de leveza.
A Chanel, hoje orquestrada por Virginie Viard, é o reflexo dessa mudança de bastão, vinda de um homem criativo para uma mulher. A maison sempre foi sinônimo de desejo, atualmente, mais do que nunca. A importância de Virginie entender seu papel na marca, ter acompanhado todo o ritmo e saber como ninguém os verdadeiros valores da Chanel (ela foi assistente do Karl Lagerfeld por duas décadas) faz com que essa conexão seja mais eficiente. Exemplos? Não faltam. Enquanto Lagerfeld, que assumiu a direção da grife em 1983, seguia requentando os envelhecidos tweeds, bordados e estruturas que não cabiam na vida urbana da mulher (da princesa Árabe com certeza!), Virginie tirou todos os excessos, soltou as estruturas, encurtou comprimentos, ajustou as modelagens onde cabiam o tweed e ainda apostou em transparências para deixar a imagem das suas coleções ainda mais jovem.
Para esta temporada, uma celebração real da forma como a própria Gabrielle Chanel reinterpretaria as cenas do cotidiano para a sua consumidora. Nada mais genial que trazer o longa O Último Ano em Marienbad, de 1961, como temática para a estação. O filme, que faz parte da época brilhante da Nouvelle Vague, teve figurino assinado pela própria Coco Chanel. Nesta equação belíssima de Viard, o movimento artístico francês foi o responsável por mostrar o dia a dia, nu e cru, do estilo de vida parisiense e, agora, encontrou a mulher contemporânea.
A referência para o mood foi Kristen Stewart, égérie da Chanel e estrela do vídeo feito pela dupla de fotógrafos Inez & Vinoodh: ela inspirou o espírito descontraído e leve da juventude — com frescor, movimento e brilho. Brilho nos olhos de quem tem liberdade de sair flanando pelas ruas do mundo e pode ir tão longe quanto quiser.
A ideia é não sinalizar isso como tendência, mas indicar um ponto de mudança. No exemplo, usei duas marcas francesas, que ficaram décadas nas mãos de criativos homens que, apesar de extremamente talentosos, não entendiam exatamente o significado de liberdade no guarda-roupa feminino. Após a entrada de duas mulheres, com histórias e origens diferentes, fica fácil de entender, do primeiro ao último look, o que elas estão fazendo nos ateliês das suas respectivas grifes.
A leveza e a fluidez feminina não é apenas estético — não é pelo corset ser bonito ou não; ou o tweed ser bem feito ou não. É sobre novas formas de encarar as necessidades das mulheres e saber que, com filhos ou sem filhos, no metrô, a pé ou dirigindo, elas querem e precisam ser atendidas por quem entende exatamente o que está fazendo. E a moda sempre foi o espaço para a fuga, pela ideia do sonho, do lúdico e do belo. A mulher sempre quis estar bem vestida e livre.