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Epidemia do sono: como reaprender a sonhar

Os estímulos são inúmeros e não conseguimos descansar nem no sono. Especialistas falam da importância de resgatar o universo onírico e ensinam como fazê-lo

Por Joana Oliveira
9 dez 2022, 08h53
Sonhar é preciso.
Sonhar é preciso. (Getty/Getty Images)
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Vivemos exaustas, sonhando com dormir indefinidamente. No Brasil, 73% das pessoas sofrem de insônia, de acordo com a Associação Brasileira do Sono, e quase 70% dos cidadãos em 24 estados têm alguma dificuldade para dormir, segundo o Instituto do Sono. É o que se chama de “epidemia do sono”. Mas pouco se fala na necessidade de sonhar mais e melhor. Além de ser positivo para a memória, ajudar a processar sentimentos negativos e colaborar para noites tranquilas e restauradoras, essa atividade onírica se relaciona com a nossa capacidade de sonhar também no sentido de aspiração: quais são os nossos desejos? O que queremos conquistar? Não à toa, a psicanálise considera o sonho uma importante investigação sobre si e sobre a relação do sujeito com o outro e com o mundo.

A psicóloga Vanessa Gebrim explica que na primeira fase do sono, que dura cerca de quatro horas, o cérebro processa as memórias de forma menos organizada e, durante o sonho, ocorre um refinamento que consolida o que é relevante e esquece o que é descartável. Por isso, é tão necessário o sono REM, mais profundo. “Ele é extremamente funcional para regular as emoções. Já se sabe que a falta de sonhos pode ter relação com o aumento de doenças como depressão e ansiedade”, alerta Vanessa.

Para além dos prejuízos fisiológicos, há um preço alto no mais subjetivo da nossa psique. “O sonho é, antes de tudo, um guardião do sono. É a reconciliação com o que gostaríamos de esquecer, com partes da nossa história, que, muitas vezes, suprimimos. E a capacidade de sonhar é também a capacidade de desejar”, diz o psicanalista Christian Dunker.

Ao servir de ferramenta para um “futuro realizado em imagens”, esse sonho como imperativo biológico do ser humano tem relação com os sonhos de vida, nossos anseios mais profundos. “Nossa cultura do cansaço vai gradativamente abolindo o sonho, ou tornando o sonhar uma espécie de continuação da vida de vigília”, lamenta Dunker, mencionando as pessoas que se queixam de que, quando dormem, não descansam, não desligam, sonham com o escritório e os mesmos problemas rotineiros. Numa sociedade que trabalha, consome e se dopa demais, Dunker afirma que há uma desconexão entre as pessoas e elas mesmas. “Outro sintoma dessa crise é o fato de que cada
vez mais gente relata dificuldade em lembrar do que sonhou. Já sabemos dos efeitos deletérios que medicações ansiolíticas e antidepressivas têm nesse sentido. Negamos isso para produzir mais, para ficar mais acordados num mundo que nunca desliga.”

Nossa atividade onírica tem impacto direto em nossas aspirações de vida.
Nossa atividade onírica tem impacto direto em nossas aspirações de vida. (Getty/Getty Images)

Outro viés desse problema é a procura do sonho em estados de vigília, com a transformação deles em objetivos, metas e métricas. “O sonho como devaneio ficou sem espaço em nossa sociedade”, afirma o psicanalista e pesquisador Lucas Liedke, do podcast Float Vibes. Segundo ele, nossos sonhos de vida estão mais ligados aos objetivos dentro de um discurso racional, reflexo do tempo em que vivemos: queremos o corpo perfeito, o rosto perfeito, os relacionamentos idealizados. E, na promessa das redes sociais e da publicidade, esses “sonhos” são mais realizáveis. “A oferta de aplicativos e procedimentos mostra que alcançar esse padrão não só é possível, mas até barato”, diz Liedke.

O verdadeiro preço, no entanto, é um sentimento de vazio e solidão. Por isso, Dunker defende o que chama de oniropolítica: uma vida centrada na capacidade de sonhar. O psicanalista menciona, como exemplo, os povos originários, para quem o sonho é uma forma de pensar. “Entre eles, os sonhos são compartilhados no centro da aldeia, e, a partir deles, pensa-se em mundos possíveis, em soluções diversas”, conta.

É justamente essa capacidade de querer outros mundos que precisamos retomar. “Isso é essencial para a promessa de vida que transmitimos às nossas crianças e aos jovens. Quando criamos gerações conformadas, acomodadas, oprimidas pela necessidade de sobrevivência, quando a gente mata o sonhar nessas novas gerações, estamos colonizando o futuro, estreitando nossas formas de vida”, arremata Dunker.

Mas, então, como sonhar mais? “No sentido fisiológico, cuidar da higiene do sono é fundamental, além de praticar exercícios, evitar álcool, fazer refeições leves e gerenciar a ansiedade são pontos cruciais”, responde Vanessa Gebrim. No sentido do sonho como conexão com nossos próprios desejos, não há uma receita única, mas os psicanalistas apontam caminhos possíveis. Além do sonho dirigido (técnica terapêutica em ambiente privado de estímulos), Dunker recomenda diferentes formas de meditação.

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“O sono mais extenso, mais continuado e recolhido, como tivemos no início da pandemia, também favorece nossa atividade onírica”, diz ele, lembrando de uma pesquisa realizada por universidades federais que mostrou que, de fato, os brasileiros sonharam mais durante esse período. “É como se estivéssemos muito dentro de nós mesmos e, por isso, criamos sonhos como soluções e portas para mundos alternativos. Depois, com a retomada de uma suposta normalidade rotineira, desaprendemos de novo a sonhar”, diz.

A leitura de poesia e o consumo de produtos culturais que valorizem a narração em vez da descrição (podcasts, por exemplo) são alternativas. “A descompressão da passagem do dia para a noite também é importante. Poder ficar sozinho, desocupado, na própria presença é uma prática que estimula o sonhar”, acrescenta Dunker.

Já Lucas Liedke recomenda a recuperação de lembranças da infância, terapia e análise com fluxo de consciência para potencializar a subjetividade onírica, mas acredita que até mesmo o multiverso oferece possibilidades de escape para o subconsciente. “Os games, a avatarização da socialização de jovens, por exemplo, podem ser lugares de fuga da realidade, sem a preocupação de produzir ou performar algo, só se conectar com esse mundo lúdico no nosso cérebro”, diz. Para quem prefere algo mais tradicional, as morning pages, difundidas pela escritora Julia Cameron, não falham. O exercício consiste em escrever três páginas a cada manhã, num fluxo de consciência, sem julgamentos, só fluidez. Tudo é válido para retomar a capacidade de sonhar, tão fundamental para expandir nossa vida.

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