Com gastronomia afetiva, Espaço Utomi ressalta a força das raízes africanas
O espaço em São Paulo, fundado pelo moçambicano Rogério Ba-Senga, traz as receitas da chef Carla Francine e vai além da gastronomia
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a primeira vez em que provou as receitas da chef Carla Francine, o moçambicano Rogério Ba-Senga já sabia que ela seria a pessoa certa para assumir a cozinha de seu futuro negócio. O convite antecipado aconteceu quando o espaço ainda era um plano. Carla havia sido contratada para preparar os quitutes do aniversário de Ana Paula Xongani, companheira de Rogério. Ao observá-la com as mãos na massa, o jornalista e empreendedor percebeu ali que a paixão e o tempero da chef eram exatamente o que ele buscava para quando tirasse o projeto do papel.
A gastronomia sempre permeou a vida de Carla. Na adolescência, fazia salgados para vender no prédio onde morava e no trabalho dos pais. Mas quando concluiu o período escolar, tomou outro rumo. “Fui estudar moda. Gastronomia era um curso caríssimo e eu não me via como profissional na área. Também tinha receio da questão dos chefs homens terem mais prestígio do que as mulheres.”
Mesmo em outra carreira, Carla seguiu cozinhando. Veio então a oportunidade de comandar a equipe de um restaurante e, em seguida, uma bolsa de estudos. “Foi aí que me entendi como gastrônoma de forma profissional”, afirma.
Nesse meio tempo, os desafios não foram poucos. Ela precisou lidar com a pressão do trabalho e dos estudos, com uma gravidez de risco e ainda com os desafios como empreendedora na Dendêngo, sua marca de catering. Mas o esforço valeu. Hoje, encontra-se exatamente onde queria estar.
“Cheguei no Utomi num momento crítico da pandemia, achava que nunca mais conseguiria ascender na profissão. Mas esse trabalho veio para ocupar o vão que as dúvidas e angústias ocupavam. As pessoas que estão aqui me preenchem todos os dias”, relata.
Foi na metade de 2021, em meio às incertezas da pandemia, que o Utomi ganhou forma. O negócio, que inicialmente era para ser uma pequena livraria, acabou se tornando um projeto mais amplo. Como Rogério morava com a família no bairro do Belenzinho, na Zona Leste de São Paulo, o ideal seria encontrar um local próximo.
“Descobrimos um espaço muito maior do que o esperado, então o que era para ser uma livraria evoluiu para uma livraria com café, depois para um restaurante e, quando vi, transformou-se também num ambiente para eventos e coworking”, conta o jornalista. A cada domingo, a casa convida um chef para oferecer receitas de raízes africanas, uma das formas que Rogério encontrou para homenagear suas origens.
Quando deixou Moçambique, em 2003, sua motivação era seguir com os estudos, ainda que não soubesse ao certo qual caminho trilhar. “O Brasil foi uma busca, mas não necessariamente uma escolha. Não só em Moçambique, como em vários países da região, quando terminamos o ensino médio, ‘atiramos’ para todos os cantos, e nisso a graduação muitas vezes não é uma escolha, fazemos aquilo que é acessível a partir de uma bolsa de estudos”, conta. Foi assim que chegou sem passagem de volta para ser aluno de jornalismo na Universidade de São Paulo.
Desde então, especializou-se na área, casou-se com Ana Paula, tornou-se mestre em Ciências Políticas e virou pai. “A Ayo reclamava do pouco tempo que a gente passava juntos e ouvir isso da filha dói muito. Hoje, acordo com ela, tomamos café e caminhamos até o Utomi para esperar a perua escolar”, diz.
“Aos 42 anos, vejo no Utomi uma síntese de várias buscas que fiz. É aquela história de escrever certo por linhas tortas… Não sei se queria uma livraria ou restaurante, mas o que desejava era a qualidade de vida que tenho agora”, conta satisfeito. Ayoluwa, a filha do casal, foi presenteada com um nome que representa bem a energia transmitida por ali: “É a alegria da nossa família”.
Comida é conexão
Ingredientes com história e receitas que remetem a bons momentos em família estão no cardápio de Carla Francine. As chamuças, pasteizinhos comuns em Moçambique por causa da influência indiana no país, se tornaram seu petisco preferido. A chef escolheu recheá-los com camarão.
“Eu tenho uma memória afetiva muito forte com frutos do mar. Meu falecido avô tinha uma loja no porto de Peruíbe, litoral de São Paulo, e eu me lembro de ir lá quando criança para ajudá-lo a limpar camarões. Essa lembrança tinha se apagado e voltou quando comecei a cozinhar profissionalmente”, conta.
Para criar um ambiente democrático, Rogério e Carla fizeram questão de incluir receitas veganas no cardápio. Um exemplo é a couve-flor, polvilhada com levedura nutricional no lugar do queijo, dando textura crocante e cor dourada à hortaliça. Com ingredientes como amendoim, coco e pimentão, Carla busca também trazer ancestralidade.
“Tento usar esses alimentos de forma muito carinhosa. Os escravizados os trouxeram de forma forçada, então é preciso muito respeito ao prepará-los. Espero que as pessoas, ao comer, tenham uma experiência cultural e gastronômica diferente.”
Feito apenas com ingredientes veganos, o brigadeiro de amendoim foi criado por Carla para ser uma receita diferente, mas sem perder sua natureza afetiva. Feita com leite de coco, a sobremesa cremosa ganha textura com os pedaços de caramelo
Confira abaixo as receitas da chef Carla Francine, do Espaço Utomi:
Caipirinha de limão-siciliano
Chamuças de camarão
Mandioca apimentada na manteiga de garrafa
Couve-flor gratinada com laranja e gengibre
Peixe grelhado com pimentões e arroz de alho-poró com castanhas brasileiras
Brigadeiro mole de amendoim
Texto Marina Marques | Fotos Bruno Geraldi
Produção Ana Requião | Concepção Visual Lorena Baroni Bósio