Letrux compartilha neuras e glórias ao voltar aos palcos com ‘Aos Prantos’
Depois de dois anos, a cantora, escritora e atriz apresenta novo disco e celebra as alegrias e complexidades da mulher de 40 anos
A cantora, escritora e atriz Letrux, nome artístico de Letícia Novaes, sempre escreveu e guardou diários. Aos 19 anos, nos primórdios da internet, migrou os textões, poemas e aforismos para um blog, mas só em 2015 publicou seu primeiro livro, Zaralha. “Acho que sou mais escritora que cantora, mas, por algum motivo misterioso, precisei cantar as coisas que escrevia para chegar ao público. Quando passei a fazer música, a roda começou a girar mais”, contou ela para CLAUDIA em um café no centro de São Paulo. Essa libertação já estava evidente em Noite de Climão, seu primeiro álbum, lançando em 2017, cujo show teve tamanha entrega que foi eleito pela crítica especializada o melhor do ano de 2018. Ali, ela tornou-se uma das cantoras independentes mais bem sucedidas do país. Agora, depois de dois anos parada por conta da pandemia de Covid-19, ela retorna aos palcos com Aos Prantos, no qual troca o flerte da noitada pelas lágrimas e desabafos.
“Foi uma volta linda, catártica, de chororô, mas ainda vamos demorar um tempo para entender o que foram esses dois anos, o que será este ano…”, diz ela, que estranhou não ter sentido o “estômago em fogo” antes da primeira apresentação dessa nova turnê. “Reclamei com meu analista que não estava nervosa ou preocupada, aí ele me disse que esse sentimento mudou na pandemia: ‘Você não está nervosa, Letícia, agora você é nervosa’. ”
Com 40 anos recém-feitos (no dia 5 de janeiro) e o segundo livro publicado em 2021, Tudo o que Já Nadei, uma ode ao mar e um mergulho de riso e sal nos seus devaneios mais íntimos, Letrux vive um momento de loucura, em suas próprias palavras. “Está intenso, estou numa fase muito bowieana, de muita alegria. Essa coisa do [filósofo alemão Friedrich] Nietzsche de ‘Tu te tornas quem tu és’, o David Bowie colocou de uma forma mais pop e alegre. Ele dizia que o bom de envelhecer é que a gente se torna quem a gente sempre deveria ter sido”, diz.
Letrux acredita que a autora daquele blog pós-adolescente já era a Letícia de hoje, “mais boba e com menos recurso”, mas que observava a vida com a mesma sensibilidade, colocando o mundo em versos. Ela reflete, no entanto, sobre as experiências vividas nos colégios católico e batista onde estudou, principalmente sobre o bullying que sofreu por ser uma menina considerada alta e magra demais. “É a história do patinho feio, fui xingada de tudo o que você possa imaginar. Eu não era tímida, e acho que isso dava raiva nos meninos que me chamavam de varapau”, lembra ela, do alto do seu 1,85 de altura. Ao olhar os colegas e ver todo mundo igual, se entediava. Decidiu, então, abraçar sua estranheza.
“Eu não conseguia responder aos algozes, chegava em casa e chorava. Daí pensei: se já vão olhar para mim porque sou alta, então eu vou ser esquisita falando, escrevendo, colocando algum adereço.” E, assim, ela se tornou representante de turma, atriz com formação teatral e performer. Se tinha que apresentar um trabalho sobre a Revolução Francesa, montava uma cena com dramaturgia bem cuidada e fazia os implicantes se questionarem: “Quem ela pensa que é?”
Hoje ela ainda não usaria a palavra “bonita” para se descrever, apesar de posar com desenvoltura pouco comum para este editorial, fazendo caras e bocas, sem medo e com grande consciência do próprio corpo e de suas possibilidades de movimento. Letrux brinca diante da câmera e ensaia balanços de quadril ao som do hip hop dos anos 1990 e 2000, seu gênero musical favorito para dançar, seguido do reggae. Para ela, é uma oportunidade de “fazer um carinho” na vaidade que foi tão machucada na adolescência. “Me pergunto se meu pensamento não está ultracontaminado pela norma, educação da norma, porque, afinal, sou uma mulher alta, magra, branca, com o cabelo pintado de loiro. De certa forma, eu sou padrão”, pondera.
Depois do retorno de Saturno
Letrux é uma mulher que se arrepende. Sente que perdeu colágeno, sanidade e tempo, que, para ela, é a coisa mais cara do mundo. “Com 16 anos, minha agenda era ‘quero morrer’. De repente, você faz 40 e se pergunta: ‘É sério que eu não usei shorts com medo dos meninos me zuarem? É sério que eu fiquei com pudores moralistas de viver uma experiência?’” Ela cita o líder indígena e ambientalista Ailton Krenak para condenar a romantização do sofrimento para a aprendizagem. “Ele diz que se for para sofrer, não quer aprender nada. E, de fato, essa romantização é uma coisa ocidental, louca e cristã, que se mescla com a culpa e outras paranoias.” Em sua escola de freiras, era bem visto que as alunas tirassem dois ou três minutos do recreio para rezar ajoelhadas num saquinho de milho, algo que ela nunca fez.
Sua piração era outra. Caçula de dois irmãos, sentia que tinha que chamar a atenção de alguma maneira, então tornou-se a prima que fazia música, que fingia que a escova era um microfone para cantar diante da família. Quando tinha 10 anos, sua mãe, uma professora de francês que ela descreve como “louca, maravilhosa”, levava-a para assistir todos os indicados ao Oscar de melhor filme estrangeiro. “Eu vi umas coisas esquisitas muito nova”, lembra. Tendo convivido com os bisavós – suas avós ainda são vivas –, aprendeu vocabulários, expressões e gestos antigos, foi uma criança que falava palavras de outrora, no que já era uma pequena performance.
A artista sorri ao contar essas lembranças: a infância é a fase da vida humana que mais mexe com ela. Vive encantada pelo momento em que as crianças começam a formar palavras para se comunicar, quando vão aprendendo a ler e escrever. “Criança se alfabetizando é lisergia”, diz. Mas a maternidade é apenas uma ideia, por enquanto. “Nunca tive essa pira da gestação. Nunca tive boneca bebê, gostava de brincar de playmobil. Nunca quis engravidar, mas gosto muito de criança, acho o máximo você educar uma. Ao mesmo tempo, tenho muito medo da responsabilidade eterna e de que a criatura pegue todos os meus defeitos, essas paranoias…”
Letrux parece não temer uma possível maternidade tardia. Capricorniana convicta, ela tem a sabedoria astrológica de que, para as pessoas do seu signo, as coisas acontecem na segunda metade da vida – a única exceção que ela menciona é Elvis Presley, que fez sucesso aos 19 anos. “É sobre o que vem depois do retorno de Saturno”, acredita. “Afinal, meu primeiro disco estourou quando eu tinha 36 anos.”
É com essa convicção que ela faz sua música. Sua mente funciona como a de uma cronista e suas canções quase sempre têm metade de autobiografia, metade do que ela observa no mundo, do que pesca em seu voyeurismo de palavras. “Quase não saio de fone de ouvido na rua. Gosto de estar no avião, alguém falar uma palavra e ela ficar na minha cabeça. Foi assim que nasceu “Que Estrago” [quiçá o maior sucesso de Noite de Climão]: estava andando no Rio de Janeiro e ouvi alguém dizer ‘Pô, maluco, fulana fez o maior estrago na casa de ciclano ontem’.” É uma espécie de psicografia de gente viva.
Ao mesmo tempo, ela diz que sua arte é um pouco egoísta, que ela só pensa no que faz sentido para si própria e não se incomoda se alguém critica seu trabalho. “Quando estou fazendo música, ela tem que me arrepiar, a canção passa pelo crivo do meu arrepio. Aí é lindo quando atinge as pessoas, mas a minha musa, a música, é para contagiar os outros, não para ser servil a eles.”
Quem vê toda a intensidade que Letrux derrama nos palcos, pode não suspeitar da racionalidade que rege toda a sua orquestra pessoal. “Acho bonito quem fala que faz música para as pessoas, mas não é o meu caso. Eu faço música para me resolver. Minha vida é neuras e glórias”, diz. Estoica, ela precisa tomar gotas de canabidiol (CBD) para dormir e gosta de ver vídeos bobos de bebês quando está triste. Ela admite que tem estado “um pouco para baixo” nesses últimos dois anos pandêmicos e, apesar de desejar ter palavras de otimismo, não vê mudanças acontecendo no mundo. Seu maior sonho é ver o capitalismo ruir. “As pessoas me perguntam quem disse que o comunismo deu certo e eu retruco: ‘Quem disse que o capitalismo está dando certo?’. Elas não se abalam com foto de gente catando ossos para comer”, lamenta. Também reclama do atual Governo brasileiro que, ela afirma, “é o que mais se lixou para a cultura na história do país” e não permite aos cidadãos sonhar. Mesmo desiludida, Letrux se diz disposta a continuar realizando, no mínimo, o possível. No máximo, a catarse. Rindo. E depois fazendo careta.
FOTOS: Julia Rodrigues
BELEZA: Mari Kato, com produtos Nars
STYLING: Yumi Kurita
DIREÇÃO DE ARTE: Lorena Baroni Bósio