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Ailton Krenak: “Chamamos de isolamento, mas nunca conversamos tanto”

Em quarentena, o ambientalista reflete sobre como a pandemia faz o homem repensar sua relação com a terra

Por Gabriela Teixeira
Atualizado em 5 ago 2020, 21h10 - Publicado em 6 jun 2020, 10h00
 (Neto Gonçalves/Divulgação)
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Em isolamento na sua aldeia, às margens do Rio Doce, o ambientalista e ativista Ailton Krenak reflete sobre as transformações que a pandemia do novo coronavírus poderá causar na relação do homem com o planeta – isso se a gente despertar a tempo

 

Era uma tarde de sexta-feira no começo de maio quando liguei para Ailton Krenak. Ele plantava árvores com o filho, mas parou para atender. Pela videochamada, me mostrou as mudas de paineira e pau-brasil que preparava para colocar em seu quintal, aproveitando o solo umedecido pelas chuvas do dia anterior. Ailton está em isolamento social com mais 500 pessoas que moram na aldeia Krenak, reserva indígena de 4 mil hectares localizada no interior de Minas Gerais, na margem esquerda do Rio Doce. A quarentena começou em março, sob recomendação dos órgãos públicos de saúde, foi seguida à risca e tem apresentado bons resultados. Não há nenhum caso registrado da Covid-19 ali.

Durante o isolamento, o ativista organizou um novo livro, O Amanhã Não Está à Venda (Companhia das Letras). O texto é baseado em três entrevistas que ele deu em abril sobre como o novo coronavírus tem escancarado a insustentabilidade do individualismo humano, que se coloca como o único na natureza capaz de saber, sentir e pensar. Para Ailton, essa é a hora de prestarmos atenção no verdadeiro sentido do que é ser humano e, quem sabe, buscarmos inspiração em seu povo, para quem o ente humano, ou burum, é parente de todas as coisas vivas, reconhecendo e abraçando a coletividade. “Somos capazes de aprender muitas coisas. Fomos ensinados a fazer tudo dessa forma, mas agora nos mostraram que está errado. Precisamos pegar o caminho de volta e consertar”, reflete. Para ele, caso os velhos hábitos sejam mantidos após a pandemia, tudo terá sido em vão e, como diz no livro, provaremos que a humanidade é uma mentira. “Tudo o que eu fizer neste momento vai voltar para mim como uma obrigação. Se eu não tomar cuidado com o lugar onde vivo, com a água que eu bebo, o alimento que eu consumo, estarei ajudando a adoecer o mundo”, avisa.

Como parte da liderança da Aliança dos Povos da Floresta e da União das Nações Indígenas, Ailton está há mais de quatro décadas diretamente envolvido nas mobilizações das causas indígenas. Foi fundamental na elaboração do Capítulo VIII – Dos Índios, da Constituição Federal de 1988, passagem que, em tese, garante proteção aos direitos dos povos originários. Hoje, por força das circunstâncias, migrou as suas reivindicações para o ambiente virtual. Esse não é o primeiro alerta que Ailton e seu povo fazem sobre a relação entre homem e meio ambiente. Em 2015, viram a lama que verteu da barragem de minérios rompida em Mariana (MG) inundar e contaminar as águas do Rio Doce, que lhes dava parte de seu sustento. Ali estava um sinal do risco do uso desenfreado dos recursos naturais. Fora isso, há séculos, como tantos outros povos indígenas, precisam lutar contra a opressão colonial e pelo direito de ocupar as próprias terras. Protegem seus territórios de invasões de grileiros, madeireiros e de outras ameaças que ainda hoje rondam as reservas existentes por todo o Brasil. Com todas essas batalhas no currículo, Ailton, que também é autor de Ideias para Adiar o Fim do Mundo (Companhia das Letras), não vê a pandemia da Covid-19 como um ponto final, mas como uma grande queda. Não é a primeira que enfrentamos, mas, desta vez, abarca e desestabiliza o mundo inteiro. “É uma chamada de atenção muito forte para olharmos onde estamos. É a Terra dizendo: ‘Silêncio’.” Para encarar esse tombo, precisaremos do que Ailton chama de paraquedas colorido, a nossa subjetividade. “Nós possuímos imaginários ligados às coisas boas e às coisas difíceis. Quando falo de paraquedas, estou me referindo a sonhar, imaginar e criar outros mundos. Seja qual for a cultura, todo mundo sabe fazer alguma coisa nesse sentido. É o que chamam de arte. Coisas de que a alma e o espírito precisam”, defende.

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(Getty Images/Getty Images)
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O meio ambiente não é o único que pode ser beneficiado com uma mudança de comportamento da nossa parte. Ponderando sobre as relações familiares e a ampliação do tempo de sociabilidade, Ailton enxerga a possibilidade de transformações também no modo de convivermos. “Apesar de o nome ser isolamento social, parece que as pessoas nunca conversaram tanto umas com as outras. É muito engraçado porque isso revela que antes é que estávamos socialmente isolados”, reflete. Enquanto estivermos confinados, diz ele, inevitavelmente seremos mais transparentes, impossibilitados de manter os escapes e esconderijos que criamos na velha rotina. “As pessoas terão que se deixar ver. Mesmo aquelas que estão fazendo muitas besteiras. Queremos que coisas boas aconteçam, mas não podemos fechar os olhos para as coisas muito ruins que de fato estão ocorrendo”, acredita Ailton.

Apesar de ser otimista quanto às perspectivas de reflexões sociais, o ambientalista ainda acha que é cedo demais para comemorarmos os supostos sinais de recuperação da natureza que temos visto durante a pandemia. “Nós queremos pagar muito barato por tudo. A ideia de que uma quarentena mudou o mundo é muita pretensão, é querer muito em troca de uma breve parada. Temos que buscar aprender alguma coisa verdadeira”, aconselha. Crítico do que chama de “mito da sustentabilidade”, o ativista explica que precisamos deixar de lado a ideia de que é possível apenas reciclar e retomar processos de maneira infinita. “A sustentabilidade que se propõe dentro de um circuito fechado de base extrativista não é o caminho, pois esse circuito tem seu limite. É necessário ter equilíbrio dentro de vários campos; senão, a sustentabilidade é uma mentira”, afirma. E, se foi tantas vezes porta-voz, Ailton acredita que agora é o momento de deixar a Terra falar: “Talvez ela possa nos ensinar a diminuir um pouco o orgulho e a arrogância do pensamento da humanidade. Porque estamos extinguindo outras espécies do planeta e vamos acabar entrando na lista de extinção também”.

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(CLAUDIA/CLAUDIA)
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Ter tanta clareza e transformar essa sabedoria em luta exige muito de Ailton, mas ele diz que não permite que a carga pese sobre seus ombros. “Eu vivo, tenho minha família, minha casa, minha horta. Não fico só pensando em como é difícil para o povo indígena viver no Brasil, porque senão parece que a gente vive uma vida desesperadora. Eu tive essa jornada pessoal e ela me deu experiência, mas nenhuma obrigação”, conta. Demonstrando a paciência desenvolvida com o cultivo das árvores centenárias que planta, o ambientalista se despede em tom confortante de esperança, reforçando que, ainda que a situação acumule crises e confusões, ela não será eterna. “Não temos nada definitivo. A única coisa que sabemos é que vai passar. Então muitos dos julgamentos, aflições e ressentimentos que podemos estar produzindo agora são bobagens. O mais importante é proteger as pessoas para que elas possam atravessar esse duro período com serenidade”, completa.

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