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O combustível que mantém mulheres em suas lutas sociais e particulares

De movimentos e gerações distintas, feministas compartilham seus processos pessoais e mecanismos para não perder a alegria e a potência na luta árdua

Por Ana Carolina Pinheiro Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 19 mar 2021, 15h34 - Publicado em 19 mar 2021, 09h30
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 (Isabella Pina/CLAUDIA)
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O encontro com a geógrafa Regina Lucia dos Santos, na chamada de vídeo para esta matéria, fez a ativista Neon Cunha, 51 anos, desmoronar. “É a minha griô”, explicou, usando o termo de origem africana para se referir a mestres que transmitem ensinamentos aos mais novos, ato que Neon aponta ter sido crucial para sua formação como mulher negra ameríndia e transgênera. “Estava firme no isolamento, mas agora, vendo a Regina só queria poder dar um abraço”, conta a patrona da Casa Neon Cunha, que acolhe a população LGBTQIA+ na região do Grande ABC, em São Paulo.

A falta do afeto das parceiras de luta ressoou nas outras ativistas que participavam da roda de conversa virtual no dia em que o Brasil perdeu 1 910 vidas para a Covid-19. O conforto para o clima pesado veio por meio da escuta e do compartilhamento de experiências. O tema era um elemento cada vez mais exigido de nós, mulheres: a força. Ela pode ser fruto de entraves estruturais e particulares, mas também conduz a caminhos de equilíbrio, leveza e possibilidade.

Integrante do grupo de risco, Regina, do Movimento Negro Unificado (MNU), segue o isolamento com a mesma firmeza com a qual conduz seu ativismo há quase meio século. “A gente aprendeu outras formas de militar nesses tempos. Percebi, no começo da pandemia, ouvindo algumas mulheres com depressão, a importância de prestar atenção nos outros mesmo estando longe. Precisamos nos fortalecer para não nos sentirmos sós, porque isso vai decretar a nossa morte, e também a da afetividade e da sensibilidade. Nos mantermos vivos, hoje, com saúde mental, é um ato revolucionário”, aponta ela, que jamais imaginava passar por um cenário tão caótico após sobreviver à ditadura.

A luta pela democracia também fez parte da juventude da socióloga, jornalista e pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz de Minas Gerais (Fiocruz), Elizabeth Fleury. A mineira encontrou apoio nas companheiras de militância para superar o machismo no ambiente acadêmico e na vida.

“Não nos deixavam falar e invalidavam nossas colocações, o que dificultava uma agenda feminista da esquerda. Éramos taxadas de malucas e reacionárias, acusadas de tentar dividir o movimento progressista na época”, lembra a cofundadora do movimento Quem Ama Não Mata (QANM), que une feministas de várias gerações no combate à violência doméstica e ao feminicídio.

A busca por visibilidade também é encabeçada por outra participante da conversa, Julia Aquino, 23 anos, estudante de psicologia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e criadora do perfil no Instagram Milita PCD (@militapcd). Negra, cadeirante, lésbica e periférica, a criadora de conteúdo se tornou ativista em 2018 para garantir a existência de pessoas PCDs dentro dos movimentos sociais, já que não se identificava completamente com nenhum deles.

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A quinta feminista convidada por CLAUDIA é a baiana Marianna Dias, 28 anos, estudante de psicologia e militante do movimento estudantil. Para ela, a educação transpassa a caminhada das cinco ativistas e de todas as mulheres.

“A luta educacional leva à transformação social. Trabalho para melhorar as condições das crianças em seu primeiro contato com a comunidade fora do seu lar”, reflete a feminista, que presidiu a União Nacional dos Estudantes de 2017 a 2019.

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(Isabella Pina/CLAUDIA)

Manual de instrução da luta

Quando chegou ao colégio estadual em Osasco, na grande São Paulo, a aluna Regina não se conformou com a ausência de biblioteca, laboratório e grêmio estudantil. A saída foi agir por conta própria e buscar livros e insumos pelo bairro, até que o diretor da escola alertou: “Temos que fazer as coisas com calma, porque não podemos nos envolver politicamente”, conta Regina sobre o seu primeiro passo no ativismo, ainda que não soubesse o que era militância na época. A instrução do diretor não foi acatada. Pelo contrário, a estudante passou a reforçar a importância da liberdade para garantir direitos.

Depois de conseguir colocar o tão sonhado grêmio de pé, no último ano do colegial, um hiato de cinco anos a separou de continuar os estudos. O fim desse período se deu com a lista de aprovados da Universidade de São Paulo (USP). “Tinha alguma coisa errada. Eu era a única negra e não tinha ninguém de origem pobre. Que diabo é isso de universidade pública? Comecei a me envolver com o movimento estudantil para tentar mudar o cenário”, aponta Regina, que também atuou na luta sindical e partidária até chegar ao Movimento Negro Unificado.

“Eu me achava sintonizada com o mundo, mas ao entrar na discussão racial, percebi que não tinha consciência nenhuma. Existiu uma Regina antes e outra depois do MNU. Minha frente de atuação é o combate ao racismo, mas ser antirracista neste país significa defender da educação de qualidade ao lazer, do acesso à cultura ao fim do genocídio”, diz. A diversidade das agendas gerou curiosidade até em Pedro, neto de Regina, que perguntou à avó se ela sabia de tudo, uma vez que falava de tanta coisa. ”Longe de mim! É que a nossa luta é esse monte de coisa”, respondeu ela.

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Precisamos nos fortalecer, mesmo isoladas, para não nos sentirmos sós. Nos mantermos vivos, hoje, com saúde mental, é um ato revolucionário”

Regina Lucia dos Santos, ativista do movimento negro, 66 anos

 

A experiência no ativismo, ainda que vivida coletivamente, exige, em certos momentos, uma atuação autodidata. Para Regina, nenhum movimento entrega uma fórmula para achar um bálsamo em meio à luta. “A gente vai forjando formas de sobreviver, buscando caminhos, falando com quem está próximo”, afirma ela. “Para mim, estar entre os meus é uma dádiva. No movimento de mulheres negras, isso é forte e vem de todas as formas, inclusive na ajuda com questões emocionais ao fazer política”, considera ela, ressaltando que a força para superar barreiras está no seio da militância.

A lembrança do calor da panela no preparo do alimento carrega um significado afetivo e de cura para Regina. “A gente encontra força, energia, motivação cozinhando junto, comendo, tomando cerveja, brigando nas reuniões e fazendo festa”, diz a ativista sobre os momentos de leveza, que, antes da pandemia, contrapunham a dureza da luta.

Novas formas, mesma essência

O entusiasmo de Julia ao ingressar na faculdade foi tolhido pela solidão de seus dias. “Comecei a sentir incômodo, porque não via pessoas como eu no espaço. Mesmo em palestras e eventos sobre mulheres, sexualidade e raça, não me reconhecia”, lembra. O descontentamento fez com que a estudante criasse o coletivo Milita PCD, espaço de compartilhamento de vivências de pessoas que, assim como ela, possuem algum tipo de deficiência. “A luta anticapacitista é árdua, é uma opressão que está ali o tempo todo. As outras pessoas não percebem, só quem vive entende a dor dessa ferida”, explica ela.

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A presença de Julia em uma instituição de ensino superior pública é a representação do início de uma mudança histórica na construção de uma sociedade civil mais equiparada. “A aprovação das cotas fez a universidade mudar. Ainda que seja um processo lento, o espaço deixou de pertencer apenas à intelectualidade branca, que pode até ter boas intenções, só que insuficientes para transformar a sociedade”, alerta Marianna, que estava em São Paulo quando a medida afirmativa foi aprovada na USP, após pressão do movimento negro, incluindo o MNU, e do estudantil.

“Ficamos com aquele sentimento de que a luta era possível e dava resultados, mas aí vieram os governos dos presidentes Michel Temer e Jair Bolsonaro acabando com tudo. Lidamos agora com situações que Regina, Elizabeth e Neon enfrentaram quando eram jovens. É um retrocesso muito grande ver que todas as lutas estão sendo destruídas no governo atual. Espero que nenhuma outra geração passe por isso”, deseja a futura pedagoga. “Nos meus 46 anos de atividade política, nunca imaginei que passaríamos de novo por uma situação tão cruel”, ressalta Regina, comparando o obscurantismo atual com a ditadura.

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(Isabella Pina/CLAUDIA)

O poder da troca

Sonhar é um verbo certas vezes associado a uma utopia e, quem pensa assim, imprudentemente oferece comentários opressivos disfarçados de conselhos. Com origem no interior da Bahia, o conservadorismo foi motivo de embate na família de Marianna. “Fui muito cobrada porque entrei na universidade e não me formei em quatro anos por estar ‘metida com movimento político e estudantil’, na visão deles. Ainda há a pressão de ser bem-sucedida individualmente, ter trabalho, um bom espaço na sociedade e dar conta de criar uma família e ter filhos. Quando escolho a luta coletiva como opção de vida, assumo um ato de resistência, de dizer que quero ser feliz, mas, para isso acontecer, outras pessoas também precisam alcançar sua liberdade”, considera a jovem.

Já a entrada de Julia no ativismo foi acolhida no ambiente familiar. Porém, o fortalecimento da rede de apoio sofreu um baque com a perda da sua mãe, que sofria de câncer, em 2018. “Comecei a morar sozinha, sendo cadeirante e baixa renda em um país que está desse jeito. Então, apesar da luta precisar muito de mim, também devo estar bem comigo mesma, aprender a colocar limite e saber até onde posso ir para não dar soco em ponto de faca”, alerta a estudante.

Engana-se quem pensa que com a experiência, a interferência diminui. Regina já ouviu de familiares que é a “mais inteligente da família, mas que não deu certo”. Para ela, o êxito na visão deles – galgado em opressões estruturais, como da branquitude e do patriarcado – é reverter sua inteligência em zeros na conta bancária.

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No caso de Elizabeth, identificar interesses e escolhas pessoais, sem interferência externa, fez parte de um processo desenvolvido nas sessões de psicanálise. “Não quis me casar, mas, com a pressão da família achava que estava sozinha porque ninguém me queria, sendo que, na verdade, decidi viver minha liberdade absoluta”, explica a socióloga, que é mãe solo e usa a poesia como instrumento para externalizar sentimentos e ideias.

Além do movimento feminista, o trabalho dentro e fora da academia dominava a rotina dela de forma desenfreada até que um resultado de exame revelou o diagnóstico de câncer, enfrentado duas vezes. A doença não parou o caminhar de Elizabeth e trouxe hábitos mais saudáveis, como a alimentação natural, para a sua vida, além da busca pelo maior equilíbrio.

Apesar da luta precisar muito da minha existência, preciso ainda mais de mim mesma e do respeito aos meus limites”

Julia Aquino, ativista anticapacitista, 20 anos

 

Após muito tempo, em janeiro do ano passado, Neon chorou dentro de um avião, quando retornava da Europa após um trabalho na área de moda. “Vivenciei uma humanidade que há tempos não sentia.” Em terapia, trata a liberação das lágrimas, oprimidas pela relação com o pai e por vivências no trabalho de doméstica da mãe, que sempre acompanhava.

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“Não tive infância e adolescência. Vivi um processo em que me anulei, anulei minha dor. Não choro, não sei mais. Quero chorar como as pessoas choram. Quero ter o direito à raiva. Fui muito polida e me sofistiquei para ser invisível e dizer ao outro apenas ‘sim, senhor’ ”, desabafa ela, que entrou para a história ao pedir sua morte assistida caso a Justiça não alterasse seu nome e gênero sem uma condição de patologia, em 2016. “Se o Estado não assume a responsabilidade da integridade do meu corpo, com a garantia da vida, queria que ele me garantisse minimamente não ser espancada, torturada ou que alguma coisa de mais grave acontecesse”, conta.

No chão do terreiro de candomblé, Neon encontrou morada não só para sua espiritualidade como para existir com mais proteção. “Fui criada nos ilês de axés. Ainda que às vezes não fosse bem-vinda, eram lugares seguros, que me suspendiam de todas as mazelas. Isso foi a coisa que mais me alimentou. Se essa ancestralidade existisse para a minha mãe, talvez nossa relação tivesse sido menos machucada no início, porque na religião um homem cis pode receber uma orixá mulher, como Oyá”, compartilha a artista, que agora ouve da mãe: “Neguinha, queria ter tido cinco de você, porque é a única que consegue mensurar a minha dor.”

A vivência de Neon foi ressignificada na troca entre suas pares. “Aprendi muito cedo qual o lugar da minha dor com Sueli Carneiro, Regina Lucia, Neuza Iraci e Vilma Piedade, que cunhou o termo dororidade. Ela explica que nós, mulheres negras, nos reconhecemos e acolhemos por meio da dor.” Diante das feridas escancaradas, floresce a capacidade de celebrar. “Pode parecer bobagem, mas quando ponho um brinco, levanto a cabeça, ligo para uma amiga, como a [vereadora de São Paulo] Érika Hilton, dizendo que só queria fazer um babado e uma confusão de pretas, vivo um chamado de celebração ordinária da vida.”

Marianna compartilha da mesma admiração pela rede que criou batalhando pela educação. “Fui a única mulher em várias reuniões e, às vezes, não falava por temer a falta de acolhimento. Ao mesmo tempo, passei por um processo de me identificar como uma mulher feminista, ajudando e sendo ajudada para permanecer nesse embate coletivo”, lembra. Com escuta atenta, ela ressalta que absorver informação é uma escolha potente. “A militância me permitiu ser uma pessoa que dia a dia aprende a não praticar as coisas que a sociedade me ensinou na minha condição de mulher branca. Ao ouvir atentamente Neon e Regina, estou aberta a um aprendizado extremamente necessário e que me fará evoluir”, considera a estudante.

Foi por causa de jovens feministas como Marianna que as idealizadoras do Quem Ama Não Mata, coletivo fundado em 1980, reergueram o projeto em 2018. “Nosso objetivo é trazer a história para a meninada, passar a tocha para frente e não permitir que as conquistas de feministas brasileiras, responsáveis pela implementação de direitos das mulheres na Constituição, se percam”, explica Elizabeth.

O trabalho de jovens no ativismo também encanta Regina. “Vocês não sabem a felicidade que eu tenho quando vejo Simone Nascimento, nossa coordenadora de comunicação do MNU de São Paulo, Mariannas e Julias com tanta garra, determinação e assertividade em relação à luta, porque as barreiras são muitas”, pontua ela, que também se abastece de esperança com a produção cultural de jovens slammers, ao saber que pessoas trans estão sendo amadas em relacionamentos e com a juventude andando de cabeça erguida, independente do atravessamento social enfrentado.

Por que continuar?

Aos 100 anos, em uma manifestação. É assim que Elizabeth se imagina daqui algumas décadas. “Nunca parei de militar e não me interessa isso. Enquanto tiver saúde, permanecerei na luta. Batalhei silenciosamente dentro das redações na época da censura e das restrições e não vai ser agora que vou me aposentar”, garante a socióloga. Regina também não cogita pausa na militância, mesmo com a fibromialgia e as dores nas costas dificultando sua locomoção. A certeza aumentou quando sua filha a chamou para conversar e contou que é lésbica.

“Que bom, filha! Quero que você seja feliz, mas tenha cuidado para não morrer”, recomendou pelo medo do modus operandi da sociedade, que alimenta o lugar da não existência para pessoas LGBTQIA+. “Não posso me dar ao luxo de não estar no ativismo. Enquanto tiver condições, vou lutar contra esse mundo, que não dá oportunidade para que a Julia seja uma pessoa tão realizada, para que ela seja plenamente enxergada com todos os seus potenciais. Todos os dias tentamos resgatar a humanidade no Brasil”, diz Regina. A estudante de psicologia, por sua vez, espera que seu trabalho humanize a visão da comunidade, livrando PCDs do estigma de dó e fragilidade.

Sem linha de chegada à vista, a força para Marianna se manter na luta é o impacto das suas ações na vida das futuras gerações. “As pessoas têm ficado horrorizadas com a postura individual da população perante a pandemia, mas é uma questão de sociedade mesmo, não de indivíduos. O combustível é pensar que a organização permite que coletividade e costumes nocivos sejam alterados.

Para Neon, é difícil manter a esperança ao olhar tantos sonhos que ficaram para trás. Porém, ultrapassar a expectativa de vida de 35 anos de uma pessoa trans no Brasil mostra que há possibilidades. “Quando vejo jovens em situação de rua me dizendo que querem ser como eu quando crescerem, respondo que sou uma referência a ser superada e que elas serão muito mais do que eu. Esse caminho vai estar pisado, a perna vai estar preparada e a semente brotando. O que me mantém nessa jornada é a certeza de que a gente não sabe quem foi a primeira mulher nem quem será a última, mas que estamos unidas nesse processo contemporâneo em ascensão. ”

 

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