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A pandemia que ameaça as conquistas das mulheres

Como mostraram outras epidemias e crises mundiais, são as mulheres as grandes vítimas, ainda que tenham as maiores chances de sobrevivência

Por Isabella D'Ercole Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 10 dez 2020, 10h43 - Publicado em 9 abr 2020, 18h42
 (Débora Islas/CLAUDIA)
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Para além do medo de contrair o vírus que tem preocupado o mundo, as mulheres vão encarar a perda massiva de emprego, aumento de conflitos familiares e até a escalada de violência doméstica. Como mostraram outras epidemias e crises mundiais, são elas as grandes vítimas, ainda que tenham as maiores chances de sobrevivência

 

Há pouco mais de 100 anos, outro vírus assolava a população mundial. A gripe espanhola contaminou 500 milhões de pessoas (o que representava um terço dos habitantes do globo) e deixou ao menos 20 milhões de mortos. A pandemia foi potencializada durante a Primeira Guerra Mundial, vitimando, na maioria, homens. Com esse cenário devastador, coube às mulheres assumir funções e trabalhar em áreas em que dificilmente eram aceitas antes, recônditos masculinos, assim como a responsabilidade de manter a casa, cuidar da família e das finanças.

Nesse século que separa essa história do presente, mais surtos virais ocorreram. Mers, Sars, gripe aviária, ebola, zika e, agora, o novo coronavírus. Nenhum contaminou tantas pessoas quanto a Covid-19, mas nos alertaram para as consequências catastróficas deixadas por uma epidemia. A mais importante delas: nenhuma doença é democrática e seus resultados prejudicam principalmente os vulneráveis e as minorias. Apesar da clareza dessa afirmação, uma crise após a outra, não se veem atitudes governamentais ou de órgãos internacionais destacando a necessidade de políticas específicas para esses grupos. As autoridades insistem em um discurso de unidade, de solução generalizada, ignorando os danos mais duradouros, que restam aos mais fracos.

No caso das mulheres, os resultados são fáceis de identificar. Quando o ebola estourou na África, nos anos 2010, a maioria dos governantes decidiu transferir o investimento destinado à saúde da mulher – principalmente saúde materna – para a contenção da epidemia. Um estudo de 2017 relaciona isso ao aumento substancial de morte materna em Serra Leoa, que ainda hoje tem uma das taxas mais altas do mundo. Há registros também de que o ebola prejudicou a vida escolar de milhares de meninas, impactando diretamente o futuro delas. E ainda impediu grande parte de uma geração de ser vacinada, fragilizando a saúde daqueles que em breve vão representar a força produtiva do país e exigindo que as mães deixem seu trabalho para cuidar deles caso fiquem doentes.

São as mulheres as mais prejudicadas também no âmbito profissional, pois constituem a maioria em trabalhos de meio período e informais no mundo – sem nenhum acesso a benefícios –, e aquelas empregadas em tempo integral recebem salários menores do que os homens. Portanto, quando o casal precisa escolher quem ficará em casa com as crianças e os idosos, elas costumam sair perdendo.

A pandemia que vivemos hoje terá efeitos econômicos e sociais por anos. Para superá-la serão fundamentais investimentos em saúde e em programas financeiros, sempre com olhar generoso para os que mais precisam. E também entender as especificidades das necessidades femininas para que anos de lutas feministas não se percam em função de espaços de decisão ocupados apenas por homens.

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mulheres e o coronavírus
(Débora Islas/CLAUDIA)

O papel de cuidar

Nas últimas semanas, os jornais têm mostrado repetidamente discursos de ministros da Saúde, chefes de grupos especiais criados para enfrentar a crise, presidentes de organizações mundiais dessa área. Todos homens. Apesar dos principais cargos políticos e de gestão serem ocupados por eles, são as mulheres a grande força no setor da saúde, mais especificamente 70% das profissionais do ramo no Brasil.

Essa proporção alta se repete na maioria dos países que hoje são os mais afetados pelo coronavírus. Na província de Hubei – cuja maior cidade é Wuhan, o primeiro epicentro mundial da epidemia –, aproximadamente 90% do contingente de saúde é formado por mulheres. Elas passam a correr mais risco. Afinal, estão na linha de frente em jornadas desgastantes e nem sempre com todo o material de proteção necessário.

Na Itália, país com maior número de mortes registradas pela Covid-19, o grupo de profissionais da saúde infectados já passava de 4,2 mil pessoas até 20 de março, de acordo com o Instituto Nacional de Saúde. “Vemos colegas ficando doentes e há mortes. Muitos dos contaminados são médicos de família, assim como eu. Somos o primeiro ponto de contato com um paciente que tem sintomas de dificuldade respiratória típicos do coronavírus”, explica Juliana Mendonça. Nascida em Teixeira de Freitas, na Bahia, ela se mudou para a Itália há oito anos, quando se casou com o companheiro italiano.

Vivendo na Lombardia, uma das regiões mais afetadas do país, Juliana conta que evita olhar os números alarmantes todos os dias. “Entro em paranoia, não consigo dormir. E, para atender, preciso estar bem fisicamente e emocionalmente. Muitas vezes, os médicos se tornam a única referência de seus pacientes, já que ficam isolados de suas famílias. Nós nos tornamos o ponto de contato deles com o mundo”, relata. Juliana admite que a situação é difícil. O marido, também médico, fica nas enfermarias com os pacientes que já testaram positivo, o que a deixa ainda mais preocupada. “Sou humana, choro. Mas tenho muito orgulho do que a gente está fazendo, do nosso trabalho”, revela. À noite, aproveita a companhia dos filhos, de 4 e 2 anos. Depois que eles dormem, conforme combinou com o companheiro, tem um “momento de colo”, como ela chama.

Para a ginecologista Donatella*, sua casa não é mais um refúgio tranquilo, como já foi. “Eu me sinto mais segura no hospital, me dá uma sensação de normalidade, porque é como se eu estivesse em um dia comum. Além disso, vejo a realidade com os próprios olhos, o que é melhor do que deixar a imaginação solta”, conta ela, que mora na região da Toscana. Desde que a pandemia chegou à Itália, a rotina de Donatella sofreu grande mudanças. Agora, na porta do hospital encontra uma barreira com segurança e material para se limpar, além de máscaras. Quando vai para a sala cirúrgica, usa capa nos sapatos, roupa impermeável, touca e três pares de luvas sobrepostos. A alteração mais impressionante, contudo, está em uma das regras impostas pelo hospital: acompanhantes são proibidos. A grávida fica sozinha com a equipe médica. Donatella estava prestes a embarcar em uma viagem para fazer missão voluntária em outro país. “Há algumas semanas não imaginava que seria mais necessária na minha nação do que no destino com menos recursos para onde estava indo. Espero que a experiência nos ensine que nada é garantido, que tudo pode mudar de um dia para o outro e colapsar”, comenta ela.

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mulheres e o coronavírus
(Débora Islas/CLAUDIA)

Mães e filhas

Pouco se sabe a respeito dos efeitos do novo coronavírus em mulheres grávidas, já que não há pesquisas suficientes sobre o tema. Em 28 de fevereiro, a OMS publicou uma análise com 147 mulheres grávidas – número considerado baixíssimo em referências de pesquisa. No grupo, 64 foram diagnosticadas com a Covid-19, sendo que 8% delas apresentaram condições severas e 1% teve reações críticas. Entretanto, com o surgimento de notícias de recém-nascidos infectados no hospital após o parto, instituições de saúde pelo mundo decidiram rever os procedimentos. Em algumas regiões da Itália, como Donatella citou, o número de pessoas na sala durante o parto foi reduzido ao máximo. No Reino Unido, grávidas foram incluídas no grupo de risco (junto de idosos e pessoas com doenças crônicas), pois a imunidade tende a ser mais baixa durante a gestação – isso lhes possibilitou tirar uma licença e ficar em casa por 12 semanas.

No Brasil, o Ministério da Saúde não fez nenhuma indicação específica para gestantes e nem há restrições em hospitais. Existem relatos, contudo, de mulheres que tiveram que escolher entre o marido e a doula na hora do parto. “Mas isso já acontece frequentemente em muitos lugares no país, já que nem todo estado ou cidade tem lei específica para o caso”, explica a doula Samara Berth, de Itapetininga, interior de São Paulo. Ela ressalta, contudo, que o problema não deve impedir o apoio das doulas às pacientes, mesmo que à distância, em chamadas de voz e vídeo. “A barreira física não pode limitar a informação ou o acolhimento”, afirma a fundadora da Casa da Doula. A decisão de fazer o parto em casa é uma opção, mas deve ser tomada de forma muito consciente após consultas médicas e pesquisa. “É recomendado, tanto em casa quanto no hospital, evitar visitas depois do nascimento do bebê”, complementa Samara.

Infelizmente, essa dose extra de preocupação das mães em meio à pandemia não termina no parto. Ainda mais em uma sociedade como a nossa, que coloca sobre a mulher toda a responsabilidade pela casa e pela família. Quando é dever da mulher cuidar, é ela que precisa se mover caso as escolas fechem, o que aconteceu em diversos lugares do mundo e no Brasil. Pela primeira vez desde que a filha tinha 8 meses, Patrícia* não pôde contar com a instituição. Como a empresa em que trabalha resolveu manter a política de sempre, que limita a dois dias o tempo de home office, a bióloga recorreu às mães de colegas de sala da pequena, hoje com 2 anos e 4 meses. “Conversamos sobre as melhores opções e decidimos dividir a turma em duplas. Contratamos as professoras da escolinha para ficar com elas em casa nos dias em que vamos ao escritório”, diz a paulistana. As crianças se revezam entre as casas, e a professora vai de Uber ao encontro delas, assim corre menos risco do que no transporte público. “Também precisei pensar em todas as refeições, já que minha filha ficava na escola em período integral. Ela comia e tomava banho lá”, conta a mãe, que optou por encomendar marmitas congeladas.

Patrícia diz se sentir sobrecarregada e paranoica. “Vou ao mercado correndo por medo de me contagiar e esqueço compras importantes. Tem também a pressão da empresa, porque preciso continuar entregando resultados. Em outras situações semelhantes a essa, eu recorreria aos meus pais e à mãe do meu marido, mas, como eles são grupo de risco, estamos evitando contato”, explica. Se os dias longe da filha são desafiadores, o home office com ela em casa é ainda mais difícil. “Ela aparece na câmera quando estou em reunião e fica me chamando durante ligações. Coloco no mudo a chamada, dou atenção e depois volto a focar no trabalho. Tem sido complexo”, conta ela.

A tradutora Vivian Plascak Jorge, de Santa Branca (SP), é mãe de gêmeos de 4 anos. Autônoma, ficava com os meninos no período da manhã e trabalhava enquanto eles estavam na escolinha, à tarde. Agora que os dois ficam em casa, a rotina foi pelos ares. “Ainda não conseguimos nos adaptar. Meu marido está em home office e o horário dele é fixo. Mas não posso esperar ele ser liberado para começar minhas tarefas nem parar de trabalhar, porque recebo de acordo com o que produzo”, explica. As crianças gostam de ficar no escritório com os pais, mas as brincadeiras impedem a concentração dos adultos. “É difícil fazê-los entender que não estamos totalmente disponíveis”, diz. O pouco tempo livre que ela tinha antes agora é inexistente. Vivian acredita que isso vai melhorar quando ela conseguir estabelecer uma rotina, descrita em uma tabela que todos possam consultar.

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Bem-humorada, destaca a parte positiva. A divisão de tarefas com o marido está mais equilibrada, algo essencial, já que a diarista foi dispensada. “Tem dias em que eu me sinto mais cansada; em outros, ele diz estar assim. Seguimos tentando achar o ideal para ambos, mas é muito bom poder contar com alguém”, admite. Apesar de parecer uma coisa óbvia, a partilha justa de tarefas do lar ainda é rara. Um relatório da Organização das Nações Unidas indica que as mulheres fazem, em média, 2,6 mais trabalho doméstico não remunerado do que seus pares. Pior ainda para mães solo, especialmente as de classes mais baixas. Se elas não podem parar de trabalhar fora para garantir o sustento, com quem deixam as crianças e o serviço de casa?

Recai ainda sobre as mulheres a obrigação de cuidar dos pais idosos, principalmente agora, já que o novo coronavírus tem vitimado muitas pessoas acima dos 60 anos. A mãe da coordenadora de projetos culturais Lourdes Maria Hardman teve um AVC há dois anos que lhe deixou sequelas e reduziu sua mobilidade. A paulistana não pôde dispensar as duas cuidadoras que a ajudam – uma durante a semana e outra sábado e domingo. “Minha mãe pesa 90 quilos, não consigo dar banho sozinha nela. Cancelei as consultas, terapia, fisioterapia. Já vejo que ela regrediu em movimentos e fala, mas prefiro que ela fique em casa. E eu estou trabalhando daqui, ao lado dela”, explica. Quando o isolamento voluntário começou, ela conversou com as cuidadoras sobre os riscos e pediu ainda mais zelo. Elas tiram os sapatos na entrada e trocam de roupa assim que chegam. Só as peças da mãe de Lourdes são lavadas no apartamento. O restante é lavado à parte, no espaço coletivo oferecido pelo condomínio. Também há um conjunto separado de talheres e toalhas. “Uma das meninas tem bronquite; então se preocupa muito porque também é mais frágil nesse momento”, explica Lourdes.

Assim como grande parte das trabalhadoras domésticas, a cuidadora de Lourdes não pode abrir mão de sua função mesmo com receio de sair de casa. Ela precisa da renda. As mulheres com trabalhos informais que não puderam seguir em suas funções estão sendo profundamente prejudicadas. Jéssica Fernandes de Oliveira é manicure autônoma em São Paulo. A agenda cheia, com até dez clientes por dia, minguou. Uma das freguesas frequentes ofereceu continuar pagando pelo serviço, mas Jéssica não aceitou por não achar justo. O marido dela é motorista de aplicativo e também está parado. Como no lugar onde moram, na Zona Sul, faltam muitos alimentos nos mercados, Jéssica recorreu ao atacadão. Foi com uma amiga. Enfrentaram quatro horas e meia de fila e ainda passaram mais um bom tempo tentando encontrar transporte para casa. “Mesmo correndo risco, eu iria se alguém me chamasse para trabalhar. É assim que coloco comida na mesa. E não sabemos quanto tempo isso vai durar”, explica ela. No final do ano, Jéssica comprou com o companheiro e outros casais de amigos uma viagem para Maceió, que aconteceria em junho. Ainda que os aviões voltem a circular até lá, ela não deve ir. “Estava juntando dinheiro. Agora, não tem como passear.”

Em um salão carioca na Barra da Tijuca, a manicure Emily Alves observou que o fluxo de clientes começou a cair no dia 14 do mês passado. Ela recebe como MEI e não tinha nenhum acordo com o patrão. Então, quando o espaço fechou, ficou sem dinheiro. Estava tentando negociar com o dono do apartamento que aluga, em Anil, bairro da Zona Oeste, um adiamento da cobrança. Em casa, o foco é a saúde. Procurou pelas farmácias da região vitaminas e própolis, mas estavam esgotados. “O jeito é ficar treinando fazer unhas diferentes e me aperfeiçoar nesse período. De resto, me sinto impotente. Mas o que tem tirado o meu sono são os moradores de rua. Fico pensando nessas pessoas que tem menos do que eu”, comenta.

Segundo o último levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), as famílias com renda muito baixa (menos de 1 638,70 reais mensais) e sem renda nenhuma representam 52% dos lares brasileiros. Esse grupo corre grandes riscos com a piora da crise econômica que está por vir. Sem dinheiro para suprir as necessidades básicas e vivendo em áreas sem saneamento nem água limpa (para lavar a mão constantemente, como é recomendado pelo OMS), se tornam ainda mais suscetíveis aos efeitos da Covid-19. A solução imediata exige intervenção governamental. Até o fechamento desta edição, a proposta inicial do ministro da Economia, Paulo Guedes, era oferecer 200 reais a trabalhadores informais por três meses. O valor mal paga contas como luz ou compra gás. “Mesmo a classe média brasileira é empobrecida. Muita gente complementa a renda com bicos. As pessoas precisam de dinheiro na mão para já! Nossa proposta é uma renda básica emergencial”, defende Tatiana Roque, professora de matemática e filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e vice-presidente do Comitê Executivo da Rede Brasileira de Renda Básica.

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Apoiada por mais de 120 organizações, ela encabeça, o movimento para conseguir aprovação no Congresso de um projeto diferente do de Guedes. “Pagaríamos 300 reais para cada pessoa da família por seis meses. Isso beneficiaria os 77 milhões de pessoas mais pobres do país, rendendo a uma família de cinco pessoas até 1,5 mil reais por mês. Depois do período de crise, o valor poderia ser revisto de acordo com o custo de vida da região”, defende. Segundo ela, o governo ainda teria que desenvolver um sistema de triagem para escolher os beneficiados da proposta deles, o que causaria longas filas de cadastro e demora no processo. “Nós acreditamos que todos os inclusos no Cadastro Único, aqueles que já recebem benefícios sociais, como Bolsa Família e Minha Casa, Minha Vida, e seu dependentes inscritos devem ser assistidos, evitando assim uma triagem. Além disso, essas pessoas já têm acesso a uma conta na Caixa Econômica Federal, facilitando também o recebimento do auxílio”, explica. Ainda seria possível fazer uma ampliação, abrangendo outros 13 milhões de desempregados que possuem o registro do Número de Identificação Social, mas não estão no Cadastro Único. O gasto total do projeto seria de 20,5 bilhões por mês ou 1,68% do PIB ao final do semestre proposto. “Nosso modelo econômico vai ter que ser mais solidário no cenário atual. Investimentos no SUS e na educação universal serão essenciais. O âmbito do bem-estar social vai readquirir importância, um pouco parecido com o que foi no pós-guerra”, acredita Tatiana. “O modo como lidaremos com essa crise agora vai definir o cenário por muitos anos. Haverá consequências para todos, em todas as classes”, continua. Para ela, outras ações benéficas por parte do governo poderiam ser a suspensão das contas de água, luz e impostos em vez de reduzir salários ou permitir demissões temporárias, projetos já cogitados pela administração federal.

mulheres e o coronavírus
(Débora Islas/CLAUDIA)

Nem em casa há segurança

O lugar mais perigoso do mundo para a mulher é dentro do lar. Ali acontece a maior parte dos casos de violência doméstica. E, com o isolamento imposto por governos de vários países, a tendência é que esses números cresçam. No Japão e na Itália, as denúncias e relatos em redes sociais comprovam isso. No Brasil, após uma semana de isolamento voluntário, o Rio de Janeiro já havia registrado crescimento de 50% dos casos. “A casa, no imaginário social, é o lugar onde tudo é permitido, inclusive a manutenção da mentalidade de que a mulher seria propriedade masculina”, explica Mafoane Odara, gerente do Instituto Avon, que tem como um dos focos o combate à violência contra a mulher. Ela esclarece que, durante o isolamento, as pressões aumentam, potencializando momentos de tensão. “Quando não há diálogo para balizar isso, para mediar conflitos, a violência toma conta.” A primeira ação é impedir que essa mulher se sinta ainda mais solitária nesse período. Ela deve conversar com amigos e familiares diariamente para sentir a rede de apoio fortalecida. O ideal é contar também com serviços online profissionais, como terapia, ou participar de grupos que possam dar auxílio legal caso seja preciso.

“Se notar que existe ameaça física, planeje uma saída de segurança, ou seja, fique próxima a uma rota de fuga e longe de ambientes com armas em potencial, como facas e ferramentas. Abandone o isolamento imediatamente se for necessário e leve seus filhos com você”, indica Mafoane. Ela recomenda também manter o número da polícia na discagem rápida e, se possível, ter um vizinho de confiança que possa dar acolhimento. “Deixe uma bolsa com roupas, documentos, dinheiro e alimentos pronta. E converse com seus filhos. Eles precisam saber o que está acontecendo e como agir caso testemunhem uma agressão”, afirma. Os serviços policiais e órgãos relacionados à violência contra a mulher estão funcionando normalmente, em regime de plantão. Em São Paulo, uma lei nova garante auxílio-aluguel de até 500 reais para que essas vítimas possam se afastar de seus algozes. Outro programa, o Tem Saída, trabalha com a empregabilidade dessas mulheres, para que elas possam retomar a autoestima e recuperar sua vida. “O esforço governamental é fundamental, mas é preciso também que exista uma iniciativa intersetorial, de todo mundo assumir responsabilidades no processo. Cobrar mais ações, estudar quais partes do trâmite ainda são frágeis e necessitam de auxílio. É muito fácil cair na armadilha de que cada um de nós tem que resolver sozinho nossos problemas. Mas essa não é a realidade. Só com atitudes coletivas veremos mudanças”, afirma.

Amanhã e sempre

Não é novidade para ninguém que o mundo é um lugar duro para as mulheres. Até existe quem não concorde, mas os fatos estão aí para comprovar. O futuro fica ainda mais sombrio diante da situação em que vivemos. Retornando à crise do ebola, levantamentos indicam que levou anos para que as mulheres recuperassem seus salários integralmente, enquanto o dos homens se normalizou mais rapidamente.
Mas não é só isso. Numa situação semelhante à que sucedeu as duas grandes guerras mundiais e à gripe espanhola, ao que tudo indica até agora, a maior porcentagem de vítimas fatais em decorrência do coronavírus é de homens. O que vai acontecer, então, com as famílias que contam com eles como arrimo? A incerteza é coletiva – e não só feminina. Mas, como mostra a história, caberá às mulheres o papel de recolher cacos e reconstruir após a pandemia. E tudo isso se dará durante uma onda intensificada de machismo, com a possível perda dos bons avanços que o feminismo tinha feito.

 

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