Como os homens podem apoiar a luta feminista através do consumo
Até na seara cultural as mulheres tiveram suas presenças impedidas. A virada dessa história depende também de homens que consumam o olhar feminino
Tem rolado pela internet, em versões diversas de cor de fundo e fonte, uma imagem que alerta: “Não confie em homens que dizem amar mulheres e não leem mulheres, não admiram mulheres, não escutam mulheres, não acreditam em mulheres, não encorajam mulheres. Não confie em homens que dizem amar mulheres, mas só amam homens”.
Poderia até passar batido entre as toneladas de conteúdo que chegam a nós todos os dias pelas telas, mas essa é uma reflexão válida, especialmente no cenário atual. Passamos – ou deveríamos ter passado – daquela época em que clamavam que feministas eram inimigas dos homens.
É uma desfiguração absurda do conceito, que, na verdade, rebate o sexismo. Na atual conjuntura social e política, precisamos do homem como aliado, o que já prevê paridade na relação. A figura que se encaixa na descrição do meme é um machista. Essa não encontraria mais lugar em uma sociedade justa.
Evitando simplismos, há algumas questões que devem ser levadas em conta. Mulheres não têm o dever de educar homens – o Google, as bibliotecas e o esforço pessoal estão aí para isso –, mas o acesso deles a produtos culturais criados por elas pode transformar visões de mundo e gerar empatia.
Conversamos com quem se dispôs a investigar e se despir de conceitos. Para nenhum deles o mundo continuou o mesmo lugar depois de ouvir a palavra feminina.
Choques no dia a dia
“Em casa, fui criado sob aqueles chavões de que menino usa azul, tem tal moto ou carro. Consumir produtos culturais feitos por homens era natural, nunca tinha parado para pensar sobre isso até que entrei para o mundo da arte. Foi assim que eu transgredi essa barreira pessoal.
Nos diálogos, me permiti escutar com atenção sobre as dores e amores dos outros, me conectei e internalizei sentimentos e situações antes de reagir. Aos poucos, senti que mudava, até o dia em que resolvi experimentar uma saia, peça que sempre me falaram que era exclusiva das mulheres – uma ignorância sem tamanho. Foi maravilhoso. É confortável, não aperta.
Comecei a sair de saia para todo canto, quase não uso mais calça. Tem um lugar que adoro ir, um clube de golfe, e lá os homens andam de camisa polo e bermuda. Eles olham apavorados quando entro de saia, mas eu vou tranquilo. Quando vi que gostava disso e não me sentia menos homem dentro do perfil que eu havia traçado para mim mesmo, entendi que bobagem era ficar preso a definições.
Busquei livros e informação. Li Quem Tem Medo do Feminismo Negro, da Djamila Ribeiro
(@djamilaribeiro1). Vi que minha ideia de feminismo era rasa e aprendi sobre o sofrimento da mulher negra, que lutou por muito mais do que espaço no mercado de trabalho, mas pelo direito de existir, de ser considerada um ser humano.
Isso mexeu muito comigo, porque vim de uma mulher negra. Fiquei pensando no que minha mãe já passou, em tudo que eu carrego comigo como histórico familiar das experiências dela.
Cresceu a minha empatia. No dia a dia, reflito sobre o que vejo na rua. Encontro uma mulher correndo de manhã ou na praia sozinha e penso nos perigos que ela corre, em como é absurdo não poder fazer nada sem o medo de ser assediada ou estuprada.
Uma vez, perguntei a uma amiga o que ela faria se o machismo acabasse e ela me respondeu: ‘Nadaria no mar à noite’. Uma coisa tão básica e que coloca mulheres em risco.
Gosto muito de conversar com outros homens sobre isso, de despertar esse olhar. Vou no amor, na paz, não batendo de frente. Não quero só gerar incômodo, mas reflexão. Questiono se ele acha legal tomar certa atitude, falo sobre essa permissão não dita de falar certas coisas, mandar nudes ou comentar de mulheres quando só há homens.
Tenho também um grupo em que discutimos isso. Reverberamos coisas que acontecem no dia, dividimos angústias e atitudes. Tem sido prazeroso. Destaco que o combate ao machismo é benéfico para os dois lados. A opressão que sustentamos também é prejudicial para nós.”
David Junior (@davidjunior), 35 anos, ator e cocriador do desenho infantil Hora do Blec
Escutar é o maior ganho
“Hoje, faço uma leitura de que a cultura heterossexual é homoafetiva, no sentido de homens nutrirem amor por outros homens quando falamos em admiração e construção de conexão. A gente faz um pacto invisível de se apoiar, de consumir o que o outro produz, de estimular. A maioria dos homens reserva sua admiração e seu respeito para seus semelhantes. É uma coisa enraizada e que alguns passam a vida sem perceber.
Até pouco tempo atrás, se eu fosse indicar livros ou filmes, eles normalmente eram produzidos por homens. A situação começou a mudar com essa discussão do feminismo nas redes sociais, que me impactou, me levou a me aprofundar no tema.
Existe um estereótipo, que eu acreditava, de que a mulher só escreve romances leves ou faz livros sobre maternidade e trabalho. Bastou eu estar aberto e disposto a ouvir para ver que é completamente diferente.
Ao dar esse passo, senti minha visão de mundo expandir, furei a bolha. Minha leitura está prismada pelas minhas vivências, minha criação, minha posição na sociedade. Se eu desejo ir além disso, explorar outros pontos de vista, preciso consumir produtos culturais feitos por mulheres e ainda fazer mais um recorte, que é o das mulheres negras, que possuem outras lutas. Tenho muito claro, para mim, que isso é um ato político, a disponibilidade para a construção de um futuro mais igualitário. Quanto mais diverso, mais rico vai ser.
Alterno livros de autores homens e mulheres, mas também busco informações em fontes femininas para formar minha crítica. Confio na Jéssica Miranda (@petit_oiseauu), socióloga que produz conteúdo na internet, e no Papo de Preta (@papodepreta).
Fiz cursos de arte com a Luisa Duarte (@luisamduarte). A conversa foi muito além do feminismo. Assim como nas lives da Teresa Cristina (@teresacristinaoficial) durante a quarentena, tratando de cultura, política e saúde mental. O olhar delas, não limitado a discutir questões de gênero, mas colocando essa ótica em outros assuntos, enriquece a minha vivência.
Tento estimular amigos a se permitir entrar por esse caminho mais aberto, mas é comum bater numa barreira. Vejo que os homens percebem a situação e escolhem ficar numa redoma. Isso acaba levando ao paternalismo, reação que pode até parecer, aos olhos deles, um cuidado, mas é, na verdade, um impedimento na mudança do processo.
Fui criado para me posicionar, levantar a voz, expor meus pontos. Aprendi a me calar para escutar, porque isso vai me trazer mais ganho em algumas discussões. Digo que me afastei da cultura da fragilidade masculina. E isso mudou também minhas relações. Notei que, no trabalho, existe uma diferença entre discordar de alguém ou ser rígido de forma assertiva e lúcida e assumir posturas tradicionais masculinas antiquadas.”
Thomaz cividanes (@thocividanes), 33 anos, assistente de direção em projetos audiovisuais
Ideias colocadas em prática
“Comecei a fazer teatro aos 15 anos, uma atividade politizada em que discussões como a da importância da presença feminina aconteciam com naturalidade. Fui levado por esse caminho de consumir produções de mulheres desde então.
O livro da minha vida é Um Defeito de Cor, da Ana Maria Gonçalves. Lembro de sentir cheiros que ela descrevia, de ficar incomodado com passagens pesadas, como a cena em que ela é estuprada, mesmo não conseguindo compreender o que é essa dor na totalidade. Ela escreve de uma forma em que você entende a mensagem racionalmente, mas depois transporta aquilo para uma compreensão sensível e que marca.
Duas das cineastas que mais admiro e acompanho são Ava DuVernay (@ava) e Anna Muylaert
(@annamuylaert). Acompanho pensadoras políticas como a Lilia Schwarcz (@liliaschwarcz), a Djamila Ribeiro, a Conceição Evaristo (@conceicaoevaristooficial). Mesmo já tendo esse olhar para o feminino naturalizado, nos últimos cinco anos, com o feminismo mais em pauta, fui atrás de literatura especializada para compreender. Li Chimamanda Ngozi Adichie (@chimamanda_adichie) mais recentemente, mas já gostava do TED dela que viralizou, O Perigo de uma História Única.
O que talvez eu devesse fazer mais é recomendar livros, filmes, séries para amigos ressaltando a importância de ser um conteúdo produzido por mulheres. Eu já sugiro que eles entrem em contato com esses títulos que gosto, mas não puxo pelo viés da autora feminina.
Junto com a Tânia Rocha, tenho a produtora Lata Filmes e essa perspectiva também é importante pra gente desde que fundamos, há cinco anos. Nossos sets sempre têm um percentual maior de negros e mulheres.
Também olhamos para a questão da idade, procurando profissionais mais velhos e capacitados que não são absorvidos pelo mercado. Acredito até que a qualidade dos projetos dependam um pouco disso. No meu filme mais recente, Medida Provisória, procuramos encaixar mulheres em posições que não são tão comuns a elas, como microfonista.
O que eu penso é que por muito tempo contamos histórias sob a ótica de um grupo de pessoas. Agora, estamos tendo a oportunidade de mudar isso, de permitir que sejam apresentados outros pontos de vista. Isso é muito rico.”
Lázaro Ramos (@olazaroramos), 42 anos, ator, escritor e diretor
Mudança através dos livros
“Foi na faculdade que comecei a ter conversas mais profundas sobre a temática da diversidade; não era um assunto recorrente na minha casa. Ainda assim, foi sob uma ótica mais voltada para, por exemplo, a proporção de professores homens e mulheres.
Só depois que fundei o Bookster que direcionei essa avaliação para a literatura. Eu não tinha essa consciência antes, não compreendia como os filtros do mercado editorial acabam dificultando a entrada de mulheres e outros grupos nesse âmbito.
Quando prestei atenção às minhas leituras, vi que os homens dominavam e iniciei um processo de conscientização. Foi natural levar isso aos seguidores, às pessoas que me acompanham. Pedi que prestassem atenção ao que estavam lendo, que olhassem para as estantes em casa e fizessem essa reflexão. Muita gente se surpreendeu com a desproporção e também abraçou o processo de mudança.
Todo ano, faço desafios literários com um tema específico. Em 2020, sugeri só livros de mulheres e de vários gêneros. Foi possível confirmar a quantidade de autoras incríveis brasileiras e estrangeiras.
Ao mesmo tempo, em alguns gêneros, foi mais difícil encontrar um título. Não é porque os homens escrevem melhor, mas porque não há oportunidade de publicação para elas. E a mídia não as divulga tanto, não são comentadas.
Exigiu um trabalho maior de pesquisa da minha parte, mas foi muito legal. Recebi devolutivas incríveis dos participantes. Acredito que, quanto maior a diversidade das suas leituras, melhor você sabe lidar com o outro, ganha repertório. E acho que, de alguma forma, mostra a importância das editoras repensarem a forma de operar, de trabalharem pela diversidade e representatividade.
Tem gente que reclama, fala que é o politicamente correto, mas geralmente é quem está em posições de privilégio. Procuro abrir a comunicação de um jeito amigável, assim o diálogo vai mais longe. Se a gente não olhar para as injustiças e desigualdades e falar delas, não veremos mudanças.
E isso invade seu dia a dia depois que você se mostra aberto a observar. Entro numa reunião com executivos ou conselheiros e noto que há poucas mulheres; num tribunal, percebo que há menos desembargadoras. Fico feliz com o aumento de mulheres prestando concurso para desembargadoras, por exemplo. Tomara que, daqui para frente, vejamos cada vez mais mulheres ocupando vários espaços.”
Pedro Pacífico (@book.ster), 28 anos, advogado e criador do Bookster, perfil de trocas sobre literatura no Instagram
Despertar para outras visões
“Antes da pandemia, eu frequentava um grupo terapêutico para homens, conduzido pelo psicólogo Alexandre Coimbra. Toda semana, sentávamos para discutir temas do momento e quase sempre acabávamos caindo no machismo.
Há um ano, isso se tornou um grupo no WhatsApp e, mesmo nesse espaço com homens abertos a repensar padrões, é comum que surja alguma coisa inadequada. Aí tem alguém que corrige, que propõe uma reflexão. O legal é que a pessoa está disposta a aprender. Mas é totalmente diferente do meu grupo do futebol, por exemplo. Lá, a chance de ser escutado é mínima e só rola besteira.
Vejo que a mudança não é tão fácil. Tenho um filho de 4 anos e é impressionante como ele já reproduz falas machistas, não quer usar rosa. Tem que ensinar o tempo todo e dá trabalho nadar contra a maré.
Às vezes, fico observando os desenhos que ele assiste e quase não tem personagens meninas ou, se tem, é tudo cor-de-rosa. Ainda assim, sei que a geração dele já vai ser bem mais desconstruída do que a nossa.
No fundo, acho que o caminho é dificultado porque exige autoavaliação e dói. Há alguns anos, ao conversar com uma pessoa negra para uma vaga, me dei conta de que nunca tinha entrevistado um candidato negro.
Desde então, tornei isso obrigatório nos meus processos seletivos. Também fui me informar do assunto, visitei um coletivo negro de uma faculdade. Li Pequeno Manual Antirracista, da Djamila Ribeiro. Queria aprender sob o viés dela. Compreendi que mulheres negras formam o grupo mais oprimido, com lutas que o feminismo branco não abarca.
Durante a pandemia, acompanhei bastante a tirinha Confinada, que é feita pela Triscila Oliveira (@soulanja) e o Leandro de Assis (@leandro_assis_ilustra). No começo, via no Mídia Ninja; depois, passei a ler na página da Triscila. Apesar do conteúdo visivelmente carregar muito das vivências dela, eu notei que o canal do Leandro tem mais seguidores.
Ela é superativista e aprendo muito com ela para além das tirinhas. Em uma das histórias, fiquei chocado com a atitude antirracista da personagem e percebi que eu nunca reagi a comentários do gênero feitos na minha frente. Isso foi um soco no estômago. Mas serve para me realinhar.
Ao mesmo tempo, às vezes, sou impactado por produtos culturais feitos por mulheres que só depois paro para pensar na relação da mulher com o assunto. Quando assisti Que Horas Ela Volta?, da Anna Muylaert, não fui com a intenção de ver um produto feito por uma mulher, mas um homem jamais faria aquele filme, nunca teria aquela visão sobre o trabalho doméstico. A mesma coisa com Democracia em Vertigem, da Petra Costa. Poderia ter sido feito por um homem, mas não possuiria a mesma abordagem por retratar a história de uma mulher na política.”
Douglas Cantu (@douglas_cantu), 34 anos, relações públicas
Leia as matérias do nosso especial de março:
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