The White Lotus: os segredos por trás da construção da série da HBO
Uma análise minuciosa das referências e detalhes que você pode ter perdido ao assistir à série que conquistou público e crítica
A princípio, nada poderia combinar mais com uma coluna chamada “Pausa” do que uma série que retrata um grupo de pessoas de férias, por uma semana, em lugares cercados de natureza exuberante. Esse é o caso de The White Lotus (HBO), série criada, roteirizada e dirigida integralmente por Mike White. Mas, na verdade, essas pessoas não poderiam estar mais distantes do estado que nomeia a coluna. Angustiadas, ansiosas, adoecidas e atravessadas por muitos conflitos, que vão de luto a assassinato, estamos num mundo oposto.
A série, que é uma antologia e está na sua segunda temporada, tem sido muito bem recebida pelo público e pela crítica. A primeira temporada se passa numa ilha do Havaí, em Maui, enquanto a segunda se desenrola numa ilha da Itália, na Sicília. The White Lotus, o nome da série, é também o nome de uma rede fictícia de hotéis luxuosos e, em ambas as temporadas, acompanhamos um grupo de hóspedes — famílias, casais e outras pessoas — que vêm passar férias num desses hotéis.
Elogiada desde a sua estreia em 2021, a produção recebeu mais de cinquenta prêmios, entre os quais dez Emmys, nas principais categorias da premiação. Portanto, a nova temporada, que terminou no Brasil no último domingo (11) e, em outros lugares do mundo, na segunda-feira (12), foi aguardada com muita expectativa — em especial porque a personagem Tanya McQuoid, interpretada pela extraordinária Jennifer Coolidge, estaria de volta como hóspede da filial siciliana da rede de hotéis.
Em sua primeira temporada, The White Lotus garantiu um feito digno de nota: misturou o gênero suspense, propondo logo na primeira sequência duas perguntas inquietantes — quem matou e quem morreu —, a uma sátira muito aguda que tem como alvo a classe dos super ricos, no caso da série majoritariamente pessoas brancas, completamente alienadas de seus privilégios. Tudo isso em contraste com os bastidores do hotel e seus funcionários — com destaque para o excelente Murray Barlett, que interpreta o gerente Armond (uma das cenas mais famosas do episódio final, que ele protagoniza, é de fato impagável).
Temas como colonização, apropriação cultural, embate de classes, ascensão social e jogos de poder são explorados por uma ótica tão impiedosa quanto bem humorada, e a tensão que vai se montando tem como pano de fundo cenários paradisíacos. Essa combinação de elementos, se não inédita, é bastante rara de ser encontrada na televisão contemporânea com tamanha qualidade de roteiro, direção, atuações e demais elementos.
Agora, na segunda temporada, embora a mistura de gêneros e o eixo central continue o mesmo, outros temas ganham enfoque, acompanhando a localização do hotel da vez. Assim, a cultura italiana, em especial a cultura siciliana, bem como as referências à Antiguidade Clássica, entram em cena. Mike White vai fundo no universo de cada local em que as temporadas se desenrolam, tornando a série mais interessante por suas incontáveis entrelinhas, ambiguidades, subtextos e detalhes, que se passarem despercebidos não prejudicam a experiência de quem assiste, mas que, se puderem ser apreciados, sem dúvida a enriquecem — um pouco como Elena Ferrante faz na literatura, principalmente na tetralogia napolitana.
The White Lotus é uma série irresistível: inteligente, engraçada, misteriosa, incômoda e muito bem construída. Ter assistido aos sete episódios conforme foram saindo, uma vez por semana, também fez diferença. Quando maratonamos e consumimos (literalmente) obras audiovisuais como produtos, podemos acabar perdendo uma parte importante do que está à nossa frente. Com esse intervalo, me senti mais ligada às personagens, revendo cenas e episódios inteiros, pensando, pesquisando e especulando sobre cada pequena coisa.
Para escrever sobre a série, convidei uma amiga, a jornalista Isabela Discacciati, brasileira que mora na Itália há anos — é formada em Veneza, região onde vive com a família — e conhece profundamente a cultura italiana e história da arte. Ela é autora de dois perfis muito interessantes no Instagram — uma exceção na rede social —, o @passeiosemveneza e o @clubeferrante, que trazem ótimos conteúdos. Isabela e eu passamos sete semanas discutindo e esmiuçando os detalhes da série. Foi uma experiência tão divertida que fiz questão que ela assinasse essa coluna comigo.
Mas fomos tão longe na nossa “investigação” — para não dizer obsessão — que precisamos dividir o texto em duas partes. Portanto, em breve publicaremos a continuação, com outros itens a serem analisados, como a construção de personagens — com certeza, o ponto alto da série —, as outras obras que aparecem nos episódios (literárias e musicais, por exemplo), a questão da pulsão de morte (tão presente em algumas personagens, em especial na inesquecível Tanya); assim como algumas curiosidades que acompanham a série e seu criador, por exemplo a participação de Mike White no reality show Survivor e o que essa experiência incomum poderia ter trazido para a criação de The White Lotus, além de mencionar também o elenco italiano, que está extraordinário.
Mas vamos começar do começo e com muitos spoilers.
A abertura
A impecável vinheta de abertura da segunda temporada, com ilustrações feitas pelo brasileiro Lezio Lopes, que nasceu no Nordeste e atualmente vive na capital da Austrália, mostra detalhes que podem estar relacionados com a natureza das personagens e com a evolução do enredo. As imagens que aparecem na tela, ao som da hipnotizante composição de Cristobal Tapia de Veer (acrescentando algo novo, mas fazendo uma ligação com a música de abertura da temporada anterior, também ilustrada por Lopes), são inspiradas nos afrescos da Villa Tasca, que fica em Palermo, na Sicília. Na série, é a residência histórica, o palazzo de Noto, onde Harper Spiller (Aubrey Plaza) e Daphne Sullivan (Meghann Fahy) se hospedam por um dia e por uma noite. As imagens bucólicas do início da abertura se transformam em uma espécie de cenário apocalíptico com rachaduras, colunas que desabam, um edifício em chamas, cenas de sexo, caça e assassinato.
É interessante perceber que algumas delas parecem associadas aos nomes dos atores que interpretam as personagens. Um homem cortejando uma dama acompanha o nome de F. Murray Abraham (Bert Di Grasso), personagem que não perde a chance de flertar, por que não de assediar, qualquer mulher à sua volta. O nome do ator Theo James, que dá vida ao controverso Cameron Sullivan, aparece junto do desenho de um cachorro urinando numa estátua, como se demarcando território, algo que combina perfeitamente com a sua postura de macho alpha.
Já o nome de Simona Tabasco, que interpreta a ardilosa Lucia, aparece junto a um gato carregando um pássaro na boca. O nome de Jon Gries, marido de Tanya na série, aparece junto à imagem de um homem com uma mulher montados a cavalo, o que lembra a hilária cena de Tanya e Greg no passeio de Vespa pelas estradas da Sicília, no segundo episódio da temporada. A mitologia da Antiguidade Clássica também está lá, como na figura de Leda e o cisne.
É possível estabelecer muitos outros paralelos interessantes, mas deixamos o convite para que vocês revejam a abertura com atenção, depois de assistir a todos os episódios, para apreciar suas possibilidades na íntegra. Aliás, dizem que essa é uma das aberturas menos “puladas” por espectadores de plataformas de streaming, que ficam capturados pela riqueza de detalhes e pela ótima música. Mike White cuida com esmero de cada detalhe em cena.
As obras de arte
A segunda temporada de The White Lotus se vale da riqueza iconográfica da Itália para criar associações importantes com as personagens e o enredo da série. O hotel siciliano não é uma mera locação cenográfica, mas sim um hotel de fato, chamado San Domenico, da rede Four Seasons, a mesma do hotel havaiano em que foi gravada a primeira temporada. Construído em um antigo convento na cidade de Taormina, território que um dia foi a Magna Grécia, os quartos são decorados com obras de arte que muitas vezes exibem figuras religiosas e, se nos atraem pela beleza das pinturas, também podem causar certo mal-estar, pela dramaticidade dos acontecimentos retratados.
O quadro de Santa Luzia, com seus olhos em uma bandeja de prata, está na suíte de Bert Di Grasso. Lucia, como é conhecida a mártir na Itália, é uma santa siciliana perseguida por ser cristã. Condenada, sofreu diversas torturas e foi obrigada a se prostituir. Em algumas versões, seus olhos foram arrancados por seus algozes, em outras, por ela mesma. Na série, a imagem pode estar associada à personagem de mesmo nome, Lucia, uma jovem local que ronda o hotel, se prostitui e se relaciona, direta e indiretamente, com quase todos os núcleos da série.
O quadro que decora a suíte de Dominc Di Grasso (Michael Imperioli), filho de Bert, é um retrato de Santa Ágata, também personagem da história siciliana, que sofreu um martírio semelhante ao de Lucia e teve seus seios arrancados. A imagem de Ágata, que mais tarde seria venerada pela própria Santa Luzia, poderia, quem sabe, ser uma referência a Mia (Beatrice Grannò), melhor amiga da personagem, que sonha em ser cantora, se aproximando do universo do hotel e também do mundo da prostituição, o que aumenta a tensão e as possibilidades de desfecho trágico da série — isso não quer dizer que Mike White segue todos os caminhos apontados. Ao contrário. A ideia, também, talvez seja nos confundir.
No quarto de Albie (Adam DiMarco), filho de Dominic e neto de Bert, a pintura retrata o martírio de São Sebastião, com seu corpo atravessado por flechas. É uma imagem impactante. O corpo exposto do santo parece, no contexto da série, representar a beleza e o desejo, temas importantes dessa segunda temporada. No romance Memórias de uma máscara (1949), o escritor japonês Yukio Mishima menciona a atração do protagonista por um quadro de São Sebastião, pintado pelo artista Guido Reni, em 1615. A imagem, ao mesmo tempo angelical e viril, lhe provoca um prazer sexual. Outra curiosidade interessante é o fato de que São Sebastião teria sobrevivido ao primeiro martírio, tendo sido morto somente na segunda tentativa. É o que acontece com Tanya, que não é morta por seus algozes, mas acaba perdendo a vida numa cena, ao mesmo tempo, cômica e trágica no episódio final. Também podemos pensar que ela sobrevive à primeira temporada, mas, infelizmente, não à segunda.
Há muitas outras referências artísticas, como as cabeças de cerâmica chamadas “Teste di Moro”, que remetem a uma lenda siciliana sobre traição e assassinato. A peça merecia um verbete à parte, já que desde o primeiro episódio ocupa um lugar de destaque, mas são tantas as referências que escolhemos destacar aqui apenas algumas, principalmente as que não são diretamente tematizadas na série.
A máfia
Bert, Dominc e Albie chegam ao hotel com um propósito: conhecer a cidade de origem da família Di Grasso, Testa Dell’Acqua, e tentar encontrar parentes remotos. As três gerações fazem a estrada inversa de seus antepassados em um momento em que Bert, um homem na casa dos oitenta anos, não esconde sua fragilidade. Mesmo quase um século depois que o núcleo familiar migrou para os Estados Unidos, existe um forte vínculo associado à ascendência siciliana. No terceiro episódio, os três homens, acompanhados por Portia (Haley Lu Richardson), visitam o local onde foi gravado parte do filme O Poderoso Chefão (1972), de Francis Ford Coppola, considerado por Bert como o melhor filme norte-americano.
O episódio gera uma discussão bem contemporânea em que Albie confronta o avô, que, para ele, é um saudosista da solidez do patriarcado. O pai, Dominic, uma espécie de elo entre as duas pontas, mais pendente para o lado de Bert, se diz um defensor das mulheres, um feminista, embora esteja enfrentando problemas no casamento por conta de suas infidelidades. Entre falar e fazer, as três gerações parecem pouco coerentes — mesmo Albie, o mais jovem, que tem um discurso alinhado com as expectativas progressistas da atualidade, tem suas contradições.
A busca pela família siciliana termina de modo frustrado, quando eles chegam a uma casa em um lugarejo remoto e são recebidos por três mulheres de mesmo sobrenome, desconfiadas e pouco receptivas, os três homens acabam enxotados pela matriarca desdentada, que os ameaça com uma arma inusitada, uma alcachofra. No dialeto siciliano, a planta é chamada de cosca, um termo associado à máfia, já que as folhas da alcachofra escondem sua camada mais interna. O coração da alcachofra, que representaria o núcleo da Cosa Nostra, é o grande mistério que as camadas externas, aquelas suscetíveis à violência, protegem.
Outras referências à máfia aparecem ao longo da temporada, como por exemplo o episódio em que Bert assiste ao filme de Coppola no quarto, com destaque para uma cena que diz: “As mulheres sicilianas são mais perigosas do que armas”. E, depois, também com a entrada fatal de Niccolò (Stefano Gianino).
A comuna de Cefalù
Não é difícil perceber que Jack (Leo Woodall), o tal “sobrinho” de Quentin (Tom Hollander), esconde algo. Uma das pistas sobre a sua personalidade talvez seja uma tatuagem: o algarismo romano DCLXVI, que ele tem no peito, corresponde ao número 666, conhecido popularmente como o número da besta. Numa conversa com Portia, Jack diz que Quentin o teria tirado do que ele chama de um buraco muito profundo, o buraco mais profundo de todos — a expressão parece uma alusão ao inferno ou ao mundo de Hades, o que remete também ao mito de Perséfone, citado por Bert, quando visita o teatro grego de Taormina, em companhia da família e de Portia (no original, o episódio se chama “Abductions”, ou seja, abduções, raptos, sequestros). Hades também é mencionado por Quentin, no último episódio, em uma conversa sombria com Tanya, no iate. Para deixar o caminho livre para a emboscada armada, Jack leva Portia, assistente de Tanya, até Cefalù, prometendo um dia de diversão.
Essa pequena cidade próxima a Palermo, também na Sicília, abrigou o ocultista britânico Aleister Crowley nos anos 1920. Crowley, que se autodefinia a Besta 666, se estabeleceu na região, onde criou a Abadia de Thelema, sede de uma espécie de sistema religioso fundamentado na máxima “faça o que tu queres, pois é tudo da lei”. A frase nos soa familiar, já que está na icônica música “Sociedade Alternativa”, cantada por Raul Seixas nos anos 1970, onde ele cita ainda, em um dos versos, o nome de Aleister Crowley, associado ao número 666. Em seu templo em Cefalù, o ocultista e seus seguidores teriam praticado rituais de magia, sacrifícios e orgias sob efeito de entorpecentes.
A Thelema considerava o sexo — um dos principais temas da segunda temporada de The White Lotus — como fonte de poder mágico e o orgasmo, uma possibilidade do contato com o divino. Crowley pintou na Abadia de Thelema imagens pornográficas para habituar o olhar dos frequentadores às cenas, até que fossem capazes de controlar suas pulsões. Ele foi expulso da Sicília em abril de 1923, por decisão de Benito Mussolini.
Mas, se tudo indica que Jack seria um representante do mal, digamos assim, no final da série acabamos nos surpreendendo quando ele poupa Portia, com um aviso enfático para que ela vá embora e não enfrente as pessoas perigosas com quem Tanya acabou se envolvendo. É mais um ponto de tensão que Mike White constrói durante a temporada, e que poderia ter tido outro desfecho. Por um triz, Portia tem uma segunda chance. Ela, que buscava tanto por uma aventura siciliana, acabou conseguindo o que queria, talvez não nos termos em que havia imaginado.
O figurino
No início da temporada, quando o barco que traz os novos hóspedes chega ao píer do hotel, Lucia e Mia observam do porto e se surpreendem com a quantidade de malas transportadas pelos mensageiros, em especial as de Tanya. De fato, a figurinista da série, Alex Bovaird, não economizou nos detalhes, tendo uma gama de personalidades tão diferentes e peculiares para vestir. O contraste entre o guarda-roupa de Tanya e o de Portia, por exemplo, marca a clara divisão de classe e de geração entre elas. Enquanto Tanya exibe vestidos florais exuberantes e esvoaçantes de marcas estreladas, Portia tem uma estética confusa, que combina com a posição de sua personagem: uma garota perdida, estagnada, que não sabe muito bem o que quer fazer da vida e se sente presa a um emprego que despreza.
É interessante também perceber a transformação no vestuário de Harper, uma personagem que se sente deslocada desde os primeiros episódios, quando aparece com peças mais sóbrias, inspiradas na atriz Audrey Hepburn, o que pode indicar tanto um estilo mais discreto, como certa dificuldade de lidar com sua nova situação financeira — ela e o marido Ethan Spiller (Will Sharpe) enriqueceram subitamente e estão sendo confrontados com o que essa ascensão social significa.
O figurino de Harper começa a mudar quando ela passa a enfrentar novas turbulências no casamento e acaba se tornando, em resposta, mais sexy e provocante, até que, por fim, no último episódio, represente a vulnerabilidade a qual ela se entrega, usando um vestido delicado e ultrafeminino — Harper tem personalidade forte, humor sarcástico, é rigorosa nos julgamentos, uma advogada bem-sucedida e uma mulher inteligentíssima, que não está acostumada a jogos românticos e sexuais, e é desafiada pela convivência com o casal Cameron e Daphne, companheiros de viagem (Cameron é amigo de faculdade de Ethan), e de quem são praticamente opostos.
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Na próxima coluna, Isabela Discacciati e eu continuaremos a nossa análise, a partir de outros elementos. Nesse meio tempo, depois de ler esse texto, quem sabe você não se anime em rever alguns episódios?