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Estas pequenas escolhas diárias podem garantir uma vida mais sustentável

Mudar hábitos pode ser desconfortável, mas há que afastar a sensação de impotência e tomar decisões mais justas para o planeta e a sociedade

Por Letícia Paiva Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 15 fev 2023, 11h37 - Publicado em 18 set 2020, 16h00

São remotas as chances de você se lembrar exatamente por onde andou, as roupas que vestia ou o sabor de suas refeições no longínquo 19 de outubro de 1998. O mundo era outro. Naquela manhã, os jornais noticiavam os três gols de Romário, então jogador do Flamengo, marcados contra o Vitória na véspera, e também destacavam os elogios do cubano Fidel Castro à atuação do presidente brasileiro Fernando Henrique Cardoso em um congresso que reuniu líderes mundiais em Portugal. Romário atualmente é senador e o tal encontro político internacional se mostra impensável nos dias de hoje. As mudanças, ao que parece, foram muitas, mas alguns itens triviais e menos memoráveis – que nem saíram nos jornais – mantiveram-se praticamente inalterados com a passagem do tempo. Isso é o que preocupa. Também naquele dia de outubro, um pacote de batata chips era registrado na fábrica com a data de produção. Posteriormente, passaria pelas mãos de um consumidor até chegar ao destino em que ficou por mais de 20 anos: o solo do Parque Nacional da Tijuca, no Rio de Janeiro. A embalagem foi resgatada por uma jovem que caminhava pelo local e compartilhou o achado em seu perfil no Twitter (@darkwside). Devido ao material plástico laminado, de difícil reciclagem, o pacote permanecerá na Terra por mais tempo do que quem comeu a batatinha naquele final dos anos 1990. Os tipos de polímero mais comuns, como os que compõem garrafas, sacolas e tecidos, podem levar até 400 anos para se decompor – a longevidade é estimada, já que essa indústria surgiu nos anos 1930.

Sem a intenção de alimentar a culpa ou a sensação de impotência, refletir sobre como esses bens, consumidos de forma tão efêmera, tornam-se, em contrapartida, permanentes para o planeta pode nos ajudar a entender os reflexos dessas decisões corriqueiras a longo prazo. O nosso tempo na Terra é suficiente para deixarmos marcas, seja por meio de nossos descendentes, que irão conviver com o que relegamos, seja pelos plásticos que consumimos e logo descartamos – imagine isso multiplicado pelas cerca de 8 bilhões de pessoas no mundo hoje. O material envolve problemas mais amplos e conectados entre si, que têm em comum o consumo como catalisador econômico. Em pouco tempo, ele foi capaz de revolucionar nosso estilo de vida, barateando certos bens e aumentando a segurança sanitária. No entanto, a produção de plástico virgem no século 21 ultrapassa tudo o que foi gerado entre 1950 e 2000, e a perspectiva é de que aumente em 40% até 2030, segundo estudo publicado pela Science Advances em 2017. Desse bolo, apenas um terço ainda está em uso. O restante foi descartado sem ser reciclado, virando lixo, resultando em preocupação redobrada ao chegar aos oceanos (esse é o destino de 8 milhões de toneladas ao ano).

Em contato com a água, o plástico se degrada, transformando-se nos chamados nano e microplásticos, partículas de polímeros minúsculas que também são liberadas na lavagem de tecidos sintéticos e em cosméticos. “Esse material tem recebido grande atenção recentemente por afetar o organismo de animais pequenos, que o ingerem sem perceber”, explica a oceanógrafa Manoela Romanó de Orte, pesquisadora do Carnegie Institution for Science, em Washington, que investiga esses efeitos nos mexilhões. Além disso, o plástico deriva de combustíveis fósseis, cuja queima intensifica o aquecimento global, e recebe substâncias poluentes, como as tintas. Mas quem dera a preocupação socioambiental se desse apenas em torno dele. Entram na conta o desmatamento desregrado de áreas de floresta para agropecuária, uso de conservantes artificiais em cosméticos e produtos de limpeza, as precárias condições de trabalhadores que produzem nossos objetos de desejo… A lista é enorme. Portanto, é preciso tomar fôlego e respirar fundo para entender o nosso papel e descobrir o que é possível mudar o mais rápido possível, considerando que não existe solução fácil e um basta abrupto geraria outros impactos socioeconômicos.

Futuro viável

Antes de continuar, não podemos deixar de mencionar a necessidade de haver verdadeiro e volumoso empenho de governos e empresas para interromper o desgaste em curso – e isso precisa ser cada vez mais exigido por nós. Temos assistido a um processo de tomada de consciência e ação, puxado por uma geração jovem, que nos pressiona a repensar hábitos e assumir responsabilidades. Esse comportamento transborda na figura da ativista sueca Greta Thunberg, 17 anos, mas começou a se delinear há algumas décadas. Durante a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento de 1992 (Eco-92), foi pontuado de forma explícita o papel do consumidor em brecar o aumento da temperatura do planeta. Mais recentemente, entendeu-se que essa transformação não está simplesmente nas mãos de um indivíduo que compra e gasta, mas na sua tomada de partido. “Fazer mudanças quando se é o único empenhado tem pouco impacto, mas não quando há um movimento que você ajuda a engrossar. Pode parecer individual, mas não é”, afirma Kavita Hamza, especialista em consumo e sustentabilidade, professora da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (USP). Ela explica que essa alteração de valores, deixando de ser tendência isolada, é sentida pelas grandes empresas como uma ameaça de que, se elas não se renovarem, correm o risco de não sobreviver. “Não só perdem consumidores como deixam de atrair para setores estratégicos os jovens, que saem da faculdade preocupados com o propósito”, afirma, dando ênfase à palavra, que é sinalizadora desses tempos.

Em posicionamentos mais ou menos coesos, os setores de moda e beleza tiveram de se dar conta dessa urgência. Para se distanciar do conceito de velocidade, que simboliza a produção descompensada, grandes varejistas – como a espanhola Zara, a francesa L’Oréal e as brasileiras Renner e O Boticário, além da referência Natura – passaram a manter linhas e escopos permanentes autodescritos como sustentáveis. Esse tipo de oferta em larga escala oferece uma espécie de meio-termo – o poliéster dá vez ao natural liocel, tecido feito com celulose, ou pasta de madeira, mas as indústrias ainda estão a vários litros de gasolina distantes dos pontos de venda. “É comum que, ao promover modelos mais sustentáveis, o produto se torne mais caro, mas precisamos questionar se o que é muito barato remunera os trabalhadores e não é tão destrutivo. Faz mais sentido comprar menos, porque esses bens duram mais do que uma estação”, diz Kavita.

“Fazer mudanças visando engrossar um movimento pode parecer uma decisão individual, mas não é”

Kavita Hamza, especialista em consumo e sustentabilidade

 

Nas empresas menores, a movimentação chega quando jovens encampam esses valores em seus negócios desde o início. Entender o produto como um modelo de resistência, buscando ir além da superfície, move o trabalho da estilista Flavia Aranha. Ela mantém, desde 2009, uma grife que é referência de cadeia justa na moda. Mais do que escolher matérias-primas que poluem menos, ela busca refletir sobre como gerar abundância e regeneração, usando, por exemplo, plantas nativas e dando apoio às comunidades que as cultivam. “Eu enxergo minha empresa como a serviço de uma mudança, ainda que pequena. Apesar desse esforço, entendo que minhas roupas são caras. Por isso, sempre falo que só haverá sustentabilidade de fato quando os agricultores e as costureiras puderem comprar”, afirma Flavia. Em sua loja, uma calça custa 594 reais e há a indicação de que o linho usado não exigiu irrigação ou agrotóxicos e de que o tingimento industrial foi feito à base da árvore acácia-negra, que contribui para a revitalização do solo. “Mas não acredito que nosso papel como indivíduos seja apenas o de comprar de marcas responsáveis. Nós nos posicionamos nas redes sociais e como ativistas, e isso conta muito”, afirma a estilista, que crê no potencial de influenciar pessoas a curto prazo para, no futuro, enxergar mudanças mais amplas.

Nesse sentido, para além de abandonar compras de determinados produtos ou empresas, é mandatório engajar-se. Assim, avançamos das etapas de redução e substituição para servirmos como fomentadores. Aqui, cabe pensar no setor de alimentação, entrando no campo da disputa sobre a expansão das fronteiras agropecuárias – no caso brasileiro, tanto por causa do gado de pasto quanto pela produção de grãos. A última não necessariamente exigiria o desmatamento de áreas de floresta, especialmente de preservação, mas, no intuito de conter a degradação, são fortalecidos movimentos de redução de ingestão de itens de origem animal. Modelos de veganismo, vegetarianismo e flexitarianismo têm se tornado mais populares – segundo pesquisas, o brasileiro consome, em média, 40 quilos de carne bovina por ano, além de outros derivados.

No setor alimentício, também se interseccionam outras preocupações ambientais, como o gasto de água (a agricultura usa 70% do recurso no Brasil, mas metade é desperdício, segundo o Fundo das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação), a emissão de gases de efeito estufa (nesse caso, o metano) e, novamente, o lixo de embalagens e restos orgânicos. “Essa discussão é muito justa, mas, quando falamos em salvar a Amazônia, precisamos pensar não só no que vamos deixar de comer mas em como fortalecer os moradores dessa região, até para que eles não dependam de uma economia que explora os recursos naturais”, alerta a engenheira ambiental Aline Matulja, que implementa em seu estilo de vida mudanças para unir esses elos. Atualmente ela está trabalhando em um sistema que irá reunir bens de pequenos produtores espalhados pelo Brasil.

Continuando na mudança pelo prato, Aline recomenda incluir alimentos que contribuam para a região amazônica, como o açaí, que movimenta 600 milhões de reais e tem característica de cultivo familiar. Outras possibilidades, porém, estão disponíveis na plataforma Origens Brasil, que escoa as produções indígenas. As compras nas feiras de bairro simbolizam a valorização do que é local (portanto, exige menos deslocamento, polui menos) e até mais saudável. “A questão para muitos é a falta de tempo, mas, para fazer essa troca, precisamos buscar meios, como as cestas de assinatura que existem em algumas cidades ou mesmo entrar em contato diretamente com os produtores e encomendar”, recomenda Aline. Apesar da ligação com modos de vida mais naturais que esse empenho pode proporcionar, ele se relaciona com a vida urbana, e é nas cidades que essas permutações precisam acontecer. “É irreal pensar que boa parte da população de um país como o Brasil irá fazer mudanças bucólicas para o campo. Já há uma discussão de ocupação da cidade, em busca de verde e atividades ao ar livre, que vem dessa geração preocupada com o planeta”, diz Adriana Levisky, sócia do escritório homônimo, que propõe soluções sustentáveis em arquitetura.

Nos supermercados das grandes cidades, também há como fazer escolhas, observando os selos de orgânico (indica não ter havido uso de agrotóxicos), agricultura familiar (muitas vezes, também é orgânico), Eureciclo (demonstra que a empresa se responsabiliza pela logística reversa) e do Sistema B (certificação de empresa com padrões de sustentabilidade). Certamente, essas são tarefas a mais dentro de vidas atribuladas, mas, por ora, fazer parte da transformação exige pesquisa, mudança de hábitos e abrir mão de comodidades. Para se livrar do lixo, talvez seja necessário buscar uma cooperativa de coleta de recicláveis ou fazer compostagem, por exemplo.

“Quando falamos em salvar as florestas, precisamos pensar em como fortalecer os moradores”

Aline Matulja, engenheira ambiental
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Com a tomada de consciência, esse processo pode começar com iniciativas mais simples e ir avançando – desde deixar de usar canudos de plástico, que na conta final não tem um peso tão grande, até se envolver em alguma causa específica (como a das tartarugas, para ficar no caso dos canudos). Há cerca de uma década, Marcella Zambardino iniciou esse trajeto trocando marcas, buscando supermercados que vendessem mais produtos locais, indicando cooperativas para os estabelecimentos. O processo foi se aprofundando com o tempo até chegar aos produtos de limpeza, que dizem respeito ao famigerado plástico, mas também a substâncias corrosivas, além de conservantes e perfumes; a alternativa, frequentemente, era manipular os próprios produtos. Ocupando um espaço vago no mercado em 2016, Marcella cofundou a empresa Positiv.a.

“No começo, era muito difícil dar conta de todos os detalhes, como usar apenas embalagens recicláveis tendo uma produção pequena, o que atualmente já é possível. Também não tínhamos perfume e era mais complicado fazer a distribuição”, conta ela. A empresa hoje tem pontos de venda em todos os estados e faturou na casa dos 5 milhões em 2019. Agora, os deslocamentos são o principal empecilho na cadeia de carbono neutro que ela tenta equacionar. Em agosto, a gigante Ypê lançou um sabão sem substâncias de origem animal nem perfumes e corantes, além de biodegradável. “Isso acaba sendo muito positivo, porque surgem mais opções até para o consumidor comparar o preço do meu produto com um similar, e não com um que é completamente despreocupado e por isso tem custo baixo”, diz Marcella.

Embora abrir empresas tenha se tornado um caminho para muitos daqueles que primeiro se engajaram como consumidores, há outras opções para financiar a mudança do sistema, como selecionar em quais companhias investir seu dinheiro. Nessa seara, ganham terreno os ESG (sigla em inglês para critérios socioambientais e de governança), que passaram a estar presentes no rol de critérios de muitos gestores de recursos na escolha de ativos, endereçando outras prioridades além do lucro; e a B3, a Bolsa de Valores de São Paulo, que tem um índice para avaliar empresas com boas práticas, servindo de norte. Aplicar com essa preocupação, evidentemente, causa maior impacto quando se tem mais capital. Entretanto, em todas as opções de consumo, o simples poder de decisão é um privilégio reservado à menor parcela da população, com mais recursos, e, por isso, devemos usá-lo entendendo que nossas apostas são, em última instância, nossa responsabilidade.

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