Johanna Stein e a literatura enquanto ferramenta de educação
A sua Gato Sem Rabo, com livros de mulheres, pessoas trans e travestis, é prova da importância da discussão intelectual enquanto ferramenta de transformação
Era junho de 2021, e uma euforia marcava o passo do coração dos que estavam na fila para entrar no número 352 da Rua Amaral Gurgel, no Centro de São Paulo. Ao contrário do que você possa imaginar, o motivo de tal furor não era a espera de um restaurante badalado da região, mas a abertura da Gato Sem Rabo, livraria idealizada e comandada por Johanna Stein, 31, com catálogo composto de livros escritos por mulheres. Para um país com baixíssimos índices de leitura (apenas 52% dos brasileiros leem)* e uma gama majoritariamente masculina assinando as histórias, conceitos e visão de mundo (70% dos livros publicados no país são escritos por homens)**, é, realmente, algo a se celebrar.
Quase dois anos depois desse dia, algumas mudanças e reorganizações no percurso — hoje, são contemplados também os títulos assinados por pessoas trans e travestis —, Johanna firma a @gato.sem.rabo como ponto turístico-intelectual da maior capital da América Latina. “Uma livraria é um catálogo vivo que nunca está pronto. Estamos sempre ventilando as estantes porque o diálogo acontece a partir da própria produção literária, de compreender o passado e como chegamos até aqui, e o que está sendo feito hoje”, conta ela que, desde a concepção, lá em 2018, tinha interesse em enfatizar diferentes áreas do conhecimento: poesia e romances, crítica literária e cultural, estética e teoria da arte, filosofia, educação e ciências sociais. “A curadoria tem muita cautela, é uma pesquisa ativa e enriquecedora, a nível pessoal também. Mas ainda temos um longo caminho pela frente, desmistificando essa noção de que as mulheres não escrevem ou não têm propriedade para falar de determinados assuntos.”
E nada passa batido pelos olhos sensíveis e atentos da livreira. Até o ambiente físico, desenvolvido junto com o escritório de arquitetura Vapor, foi pensado para os encontros serem possíveis. A atmosfera acolhedora, nessa mistura de luz baixa e móveis confortáveis com o sorriso e a sabedoria da equipe ali presente, faz qualquer um se sentir em casa — há certa magia em ver a cidade passando entre os livros que contrastam na vitrine.
“O prédio em que ficamos esteve fechado durante 20 anos — e esse é um dos maiores problemas do bairro. A infraestrutura é de centro de cidade grande, mas a questão é o abandono e o quanto ele é capaz de deteriorar um quarteirão inteiro. Ainda assim, a Vila Buarque tem uma vida de rua muito ativa. É uma vizinhança que resistiu e, agora, retoma a vocação de ser um ponto cultural.”
Não à toa, em 2022, Johanna começou a organizar círculos de debate semanais em torno de temas e lançamentos — inclusive, em parceria com a CLAUDIA, nasceu o Circuito de Leitura de Escritos de Mulheres. “Esses eventos nos fizeram entender quem é o público que nos frequenta, e a resposta tem sido muito boa. Tentamos dosar entre autoras contemporâneas e nomes que são pouco discutidos e comentados, tal qual Ruth Guimarães e Maria Firmina dos Reis”, explica ela, que tateia com sabedoria o potencial pedagógico de seu espaço. Um comportamento que nos remete às antigas livrarias de rua, principalmente as dos anos 1920, que tinham esse propósito da busca e troca de conhecimentos — resgate que tem sido feito por outras mulheres, aliás, em todo o Brasil.
NASCE UMA IDEIA
Não é desde a infância que Johanna cultiva sua relação intensa com a literatura. Foi mais velha, ali na adolescência, que caiu nas palavras dos autores latino-americanos — “homens” [risos] — e, pouco depois, já na faculdade de artes visuais, se debruçou sobre autoras que pensavam corpo e gênero.
“Queria saber quem eram as mulheres em condições geopolíticas parecidas com as minhas, mas sentia dificuldade de encontrar esses livros. Era sempre uma escavação, já que nas seções de filosofia ou ciências humanas a maioria dos títulos era de homens, brancos e europeus”, conta.
Essa falta de oferta acendeu um alerta para ela, que, assim como suas amigas próximas, queria consumir mais do pensamento feminino. A partir da ânsia pessoal, listou alguns livros, depois fez um catálogo singelo até chegar no que seria a Gato Sem Rabo. “Eu não conhecia ninguém do mercado editorial, tive que estudar muito, conversar com as editoras e os editores, e me aproximar do assunto até conseguir formatar e abrir a livraria, em 2021”, relata.
Hoje, ela administra 180 editoras, 4 mil livros no catálogo — uma bibliodiversidade de respeito — e uma equipe composta por cinco pessoas. “Foi muito bom fechar 2022 entendendo como a curva se comporta depois do hype, que é quando vem o maior desafio. Estamos todos os dias por lá, com escala de equipe, pensando esse espaço para que ele siga existindo e pulsando diante do fato de não sermos mais novidade.” Ideias não faltam, claro, mas não há braços o suficiente para tudo (ainda).
Outro desafio que se apresenta é a falta de articulação do nicho de mercado. “É difícil exigir, enquanto categoria, que a gente tenha uma proteção com livros no Brasil, não é fácil. Sorte que temos editoras e pessoas que se identificam com a nossa causa e naturalmente estão mais próximas, o que facilita a união de forças.”
Nesse tempo, também ficou clara a importância da literatura na vida das pessoas. “Para mim, ela foi capaz de provocar uma revolução individual interna. E a gente, livreiro, sabe o quanto isso realmente funciona: os livros mexem com as pessoas. Eu fico emocionada de pensar o quanto esses relatos nos transformam, o quanto essa profissão é quase como um cuidado, uma mediação. Sempre sinto que estou dando um presente para alguém”, diz ela, citando um pensamento de Alice Walker: existem períodos do nosso crescimento que são tão intensos que ficamos cansados ou deprimidos, até que nos damos conta, por um livro ou uma pessoa, que aquilo é um processo de crescimento.
Dentro de casa, não é diferente. Mãe de duas meninas, Johanna busca introduzir no dia a dia o exemplo para as pequenas poderem explorar as inúmeras formas de expressão (artística, arquitetônica, das palavras…). “As duas leem mais do que eu lia na idade delas. Mas isso nem me preocupa, porque meu companheiro e eu estamos sempre com um livro na mão. Isso é uma base que vai influenciar elas e a forma como enxergam o mundo. Porém, são duas pessoas diferentes de mim. Eu tenho até um limite do que posso oferecer e dou as ferramentas: se elas vão usar ou quais vão escolher, é uma decisão delas. O imaginário que está sendo formado é feito por pessoas que gostam de desenho, arquitetura, diários, leituras. Então, certamente algo vai ficar ali dentro”, compartilha.
Entre viagens para perto da natureza e exposições de arte, a família curte o tempo livre também nos momentos de silêncio, longe da sociedade do consumo. Claro, os livros sempre vão junto. “A literatura tem função vital de nos iluminar. Ela fala por aqueles que não encontraram a habilidade de colocar para fora e mostra às pessoas que elas não estão sozinhas.” De fato não estamos, e isso dá o calor necessário para a nossa existência ser menos difícil do que naturalmente já é. Ainda bem que existem os livros, ainda bem que existe Johanna e a sua Gato Sem Rabo. Quem nasce (e renasce) com os livros, como eu, agradece.
*Dados da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, com dados de 2015 a 2019. **Levantamento do Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da UnB, comandado pela professora Regina Dalcastagnè, com dados analisados nos períodos de 1965 a 1979; de 1990 a 2004; e de 2005 a 2014.