Seu corpo, ame-o ou deixe-o
O discurso de aceitação reforça que, na prática, é responsabilidade sua a de se aceitar ou culpa sua a de sofrer por conta do padrão de beleza
Melhor já começar com o pé na porta. Antes que você ache que essa coluna te fará acreditar que é preciso amar seu corpo, já adianto que não tenho fórmula mágica. Estamos vendo esse discurso de “você tem que se aceitar” cada dia mais presente entre as falas de pessoas que acreditam que isso é empoderamento. Normalmente na internet, esse discurso prega que se o capitalismo e o patriarcado te fazem odiar seu corpo para que você esteja sempre infeliz e siga consumindo, cabe à mulher “empoderada” se amar e se aceitar. E fim, acabou a opressão, gente.
Foi fácil, né?
Sinto informá-la que não, os caminhos maniqueístas que se apresentam diante de nós — aceite seu corpo ou viva sofrendo — não solucionam a questão maior. O primeiro motivo é porque o discurso de aceitação reforça que, na prática, é responsabilidade integral sua a de se aceitar para sair dessa, ou culpa sua a de sofrer por conta do padrão de beleza. Você que lute aí, sozinha.
Seria fácil virar essa chave com uma tomada de decisão após alguns anos de terapia, se você tivesse nascido em Marte antes do Elon Musk querer chegar lá, longe da influência da sociedade ocidental. Parece simples acreditar que basta uma decisão pessoal ou desejo individual, coisa que é muito forte no neoliberalismo, para co-criar a sua aceitação do corpo.
Vivemos mergulhadas numa estrutura que, há séculos, reforça que mulheres são seres sem capacidade racional, nos dando como única preocupação o cuidado do corpo e a reprodução. Você pode pensar que não é mais assim, que agora somos livres para escrever nossa história. Em partes, concordo.
Nas outras partes que não concordo, chamo a maravilhosa Rosa Cobo, escritora e professora espanhola, para nos ajudar a entender: “As estruturas de poder e as dominações nunca são inequívocas. Nunca se mostram. Sempre se ocultam”. Ou seja, em tempos de mudanças, o patriarcado tem que harmonizar o novo papel que foi atribuído às mulheres com uma definição normativa de como elas devem ser, sentir e se comportar.
Sabe quem ajuda bem a normalizar essa ideia de que “você tem que se aceitar”? As redes sociais. Quanta gente falando isso, postando foto seminua com legenda de impacto? “Ame-se” ou “meu corpo, minhas regras”. Eu dou risada alta. Gatas, as regras não são nossas. Acho ainda mais divertido quem quer brigar com o aplicativo para que o mamilo feminino fique à mostra — se esse fosse o nosso maior problema, tava tranquilo demais.
Felizmente existe um mindset (ironia) que aponta para uma luz no fim do túnel. A primeira saída para de fato olhar para seu corpo com mais entendimento é saber quem fez as regras e quais são elas. Meu corpo, regras do patriarcado neoliberal. E não sejamos ingênuas: a beleza é, sim, o maior capital da mulher, seguido pela juventude, que está intrinsecamente ligada à capacidade reprodutiva e, portanto, ao capital sexual. Só que, após anos e anos de discussão e levante da quarta onda feminista, não dá para o capitalismo falar “ame-se” na nossa cara como um manual de regras da boa moça. O discurso precisa se atualizar.
Saber onde você está inserida e quais são as estruturas de poder que operam silenciosamente parece ser a saída que ninguém nos apontou. Enquanto mulheres, não fomos socializadas para questionar, então comece daí. É bom desconfiar de qualquer discurso no imperativo. Nada é tão simples ou mandatório. Comandos, até onde eu sei, não nos empurraram para a paz interior, só reforçam a culpa. Não tem como aceitar esse corpo e dizer que somos “mais que esse corpo” quando nosso valor maior se dá por ele, ainda mais nessa sociedade visual.