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O amor na era do “EU”: quando tentamos (demais) fugir da dor

Enquanto procuramos conexões, criamos cada vez mais barreiras para nos proteger da paixão

Por Joana Oliveira
10 jun 2022, 08h32

A gente ama e a gente sofre por amor. Essa é uma das características da experiência humana e é quase impossível achar alguém que passe incólume por ela. E, apesar de toda dor ou desconforto que um relacionamento possa causar, seguimos firmes e fortes na busca por alguma relação romântico-sexual (por mais fortuita que seja). Prova disso é o crescente número de aplicativos de encontros e namoros e de seus usuários: são mais de 270 milhões de perfis em todo o mundo, de acordo com a consultoria Business of Apps, e só no Brasil esse número cresceu 215% durante a pandemia de Covid-19.

Feito o match, é hora de se arrumar (e se armar) para o primeiro encontro. Sim, psicanalistas, psicólogos e observadores de redes sociais têm notado o fenômeno: mesmo antes do date, muitos preparam a munição de lista de pré-requisitos e questionários que vão desde o mapa astral do possível par, até suas manias, gostos específicos e traumas mais profundos. Tudo para “garantir” que aquilo pode ir para a frente. “Essa é uma grande roubada, uma estratégia extremamente obsessiva de tentar controlar a reação do outro numa lógica de produtização da experiência afetiva. Como se fosse algo tipo ‘não gostei da comida, então quero meu dinheiro de volta’”, afirma o pesquisador e psicanalista André Alves, do Float Vibes. Ao lado do colega e também psicanalista Lucas Liedke, ele apresenta o podcast Vibes em Análise, no qual já falaram sobre essas “paixões bloqueadas”.

“É como se tivéssemos colocado no lugar da fantasia do amor a fantasia racional da compatibilidade. Mas afinidade tem a ver com convivência, essa entrevista no primeiro encontro vale pouco”

Maria Homem, psicanalista

Para Maria Homem, psicanalista e realizadora de cursos como O Enigma do Amor, esse fenômeno é o resultado do que ela chama de “paradigma da racionalidade”, que vem do embate milenar entre razão e emoção. Por isso, segundo ela, o apaixonamento virou quase um experimento científico: você conhece o objeto (no caso, a outra pessoa), encaixa-o, faz experimentos e prevê fenômenos e reações. “É uma espécie de test-drive, mas nenhuma interação humana pode ser subjugada pela razão, até porque não somos apenas razão ou emoção, mas também nosso inconsciente”, diz Maria.

A psicanalista explica que esse paradigma vem da crença permanente em nossa sociedade de que o amor é algo transcendental – com simbolismos que vão desde a flecha do cupido até as velas acesas para Santo Antônio –, enquanto, ao mesmo tempo, a racionalidade nos diz que a metade da laranja ou o encaixe perfeito entre tampa e panela não existe. “É como se a gente tivesse colocado no lugar da fantasia do amor romântico a fantasia racional da compatibilidade. Mas afinidade tem a ver com a convivência, então essas listas e pré-requisitos, essa quase entrevista de emprego no primeiro encontro vale muito pouco. Um questionário de 10 ou mais perguntas é quase primitivo diante da complexidade do que é o amor”, sentencia.

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“Essa postura de ‘todos estão aos meus pés, mas eu não me abro para ninguém’ é mais um sintoma do quanto as pessoas estão se afastando emocionalmente”

André Alves, pesquisador e psicanalista

Consumismo e utilitarismo

Estaríamos, então, perdendo a espontaneidade na hora de conhecer e se apaixonar por alguém? Para Ana Suy, psicanalista e autora do livro A Gente Mira no Amor e Acerta na Solidão (Editora Paidós), não. “Essa tentativa de calcular previamente o que seria um encontro amoroso é falha, porque a gente sempre só sabe depois. Podemos desejar antes, fantasiar, imaginar, tentar prever diálogos, mas o resultado daquele encontro só se revela posteriormente. Aí atribuímos culpa aos astros, às vidas passadas…”, ri.

Há 15 anos, Ana ouve as pessoas falarem de amor e desamor no seu consultório. Por isso, ela acredita que estamos vivendo um momento de reordenação do papel do amor na sociedade, uma vez que esse sentimento deixou de ser algo estritamente necessário. “Até recentemente, as mulheres precisavam da validação de um relacionamento amoroso estável para poder o básico, como trabalhar ou ter uma conta no banco. Agora, estamos redescobrindo a função amorosa, não mais respaldada pela normatividade, mas pelo desejo.”

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No entanto, amor e paixão não escapam da lógica utilitarista e neo-liberal, na qual amar e apaixonar-se tornam-se também uma tentativa de consumir e ser consumido. “Você se coloca como objeto para o outro. ‘Olha só como sou atraente, interessante.’ Aí a gente acaba pensando que amar é como escolher uma geladeira para casa, mas não funciona. Porque ninguém fica ileso ao contato com outra pessoa, por mais que tente se preparar antes”, garante a psicanalista.

No “supermercado de conexões” criado pelos apps surge também o que André Alves chama de “sexualidade serial”: o valor de uma pessoa é maior quanto mais gente esteja disposta a transar com ela. O “eu” se coloca como sendo o mais desejado por todos, enquanto se afirma imune à paixão pelo “outro”. Um fenômeno que o psicanalista observa, por exemplo, em músicas que são sucesso no TikTok. O hit Envolver, de Anitta, é um exemplo: “Eu não te vou envolver. Sei que vamos fazer [sexo] e você vai voltar [para mim]”, diz a letra em tradução livre. “Essa postura de ‘todos estão aos meus pés, mas eu não me abro para ninguém’ é mais um sintoma do quanto as pessoas estão se afastando emocionalmente umas das outras e reproduzindo esses distanciamentos em série.”

Para Maria Homem e Ana Suy é também uma tentativa de fuga da solidão que, segundo a psicanálise, é inerente à existência humana e se revela também (ou, quiçá, principalmente) no ato de amar. “A gente não se livra por completo do sonho do final feliz, mas o amor tem muito a ver com a perda, inclusive da imagem de quem nós somos e com as concessões que temos que fazer”, diz Ana. Ela identifica outro fenômeno, “a onda de não criar expectativas” e dos “relacionamentos leves” como antídotos à paixão: “O que seria essa leveza? Essa coisa de evitar criar expectativas para não sofrer não faz sentido, porque sem ter algo pelo que esperar, sem fantasiar, para que viver?”, questiona.

Império do autoamor

Já André Alves reflete sobre o que chama de “império do autoamor” como uma das principais barreiras construídas na preservação de um ego que não se deixa afetar por outra pessoa. O discurso de amor próprio que domina as redes sociais tem sido adaptado para conter também, além de toda a positividade que evoca, mais um pretexto para se proteger da vulnerabilidade intrínseca que é gostar de alguém. “O amor próprio é importante, porque se não conseguimos tolerar ficar a sós, usamos o outro como prótese do nosso ego. Mas ele é traiçoeiro se cairmos na armadilha de ‘não posso me permitir sofrer por ninguém’”, explica o psicanalista.

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Ana Suy concorda e lembra que é justamente das interações com outras pessoas que vem o nosso amor próprio. “A gente aprende a se amar sendo amado”, diz ela, numa frase que faz simetria com outra de Jacques Lacan, que revolucionou a psicanálise: “Amar é querer ser amado”.

Como bem lembra André, a gente se apaixona não só pelo outro, mas por quem esse outro pode ser e por quem a gente é na visão desse outro. O problema é que a era do “eu” e de um autoamor e um autocuidado embalados em coisas como rotinas de 55 passos de skincare subverte esses sentimentos e projeta um “mito da autenticidade” – estar constantemente se otimizando para entregar a melhor versão de si mesmo – e uma falsa expectativa de que as relações sejam simétricas. “As pessoas não querem aceitar que ninguém ama da mesma forma e com a mesma intensidade. Então, o que vemos são relações que viram quase uma planilha de Excel”, avalia o psicanalista.

Maria Homem considera que o amor é humanamente interessante justamente por criar conflitos com o outro e gerar, assim, autoconhecimento. E parte da graça é a possibilidade de encontrar alguém que cumpra todos os nossos pré-requisitos, mas com quem, de repente, o relacionamento não dê certo. Ela aposta na construção coletiva de “interações menos medrosas” para que (re)aprendamos a nos abrir para as conexões sociais, sejam quais forem. “Isso envolve desde a revitalização de espaços públicos de convivência até a criação de festas não-individualistas, sem que o conceito de festejar seja, por exemplo, usar uma droga para ter uma viagem solipsista.”

A psicanalista diz que não precisamos do extremo de ir para um primeiro encontro de pijama e com olheiras (no submundo dos apps, os chamados de dates desconstruídos), até porque dar a melhor versão de si também é um ato de carinho. O que podemos eliminar, por exemplo, são os rituais regrados que repetimos ao tentar conhecer alguém.

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“Gastamos um tempo querendo achar a pessoa certa, mas o trabalho começa mesmo é no depois, no processo de construir essa relação a cada dia”, resume André Alves. Porque assim é a vida. A gente ama e a gente sofre por amor.


“A gente acaba pensando que amar é como escolher uma geladeira para casa, mas não funciona. Porque ninguém fica ileso ao contato com outra pessoa, por mais que tente se preparar antes”

Ana Suy, psicanalista e autora do livro A Gente Mira no Amor e Acerta na Solidão
Relacionamentos
(|Foto: Pexels/Pexels)

 

 

 

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