Olimpíadas: por que esporte ainda é território para desigualdade de gênero?
São culturais os fatores que nos fazem ver atletas mulheres com outros olhos.
Pela primeira vez da história em terras brasileiras, as Olimpíadas quebram um recorde esse ano: terão o maior número de atletas mulheres já inscritas em uma só edição. Apesar de hoje serem imprescindíveis, mulheres nem sempre puderam participar do evento: foi só na segunda edição dos Jogos Olímpicos modernos, em 1900, que lhes foi concedida essa permissão. Se hoje parece evidente que essa proibição nunca deveria ter acontecido, há desigualdades que ainda não foram questionadas dentro do esporte. Será que diferenciar o esporte masculino do feminino, por exemplo, ainda faz sentido?
Yin e yang, testosterona e estrógeno
Nos esportes de alto rendimento – como é o caso das Olimpíadas, em que os atletas participantes são todos profissionais -, a distinção entre modalidades femininas e masculinas se justifica pela diferenciação biológica entre as mulheres e os homens. Fatores físicos explicariam o fato de Marta, portanto, nunca jogar oficialmente contra Neymar. “Homens acabam crescendo mais, desenvolvendo mais a musculatura, tendo recuperação mais rápida, por questões hormonais”, explica Luiza dos Anjos, professora de Educação Física e pesquisadora na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Mas, se a questão parece se encerrar por aqui, é bom ressaltar: é só o começo. Orientadora de Luiza e professora da UFRGS, Silvana Goellner explica: “Não há biologia do corpo que determine tudo”. A questão biológica existe, mas não sozinha, flutuando no espaço sideral: ela ao mesmo tempo sustenta e é sustentada por questões culturais. Com essa relação, a sociedade determina, tanto para as mulheres quanto para os homens, o que “pode” e o que “não pode“. Independentemente das habilidades “biológicas”, que um indivíduo pode adquirir ao longo da vida, portanto, existem regras sociais ditando os espaços em que ele pode ou não circular. Até pouco tempo atrás, não era sequer permitida a presença da mulher no mundo dos esportes. Hoje em dia, quando a seleção de futebol feminina aparece na TV, percebe-se que a realidade muda a passos lentos. “Assistindo essa semana a uma partida, fiquei reparando nos comentários dos narradores: ‘olha, elas vão entrar maquiadas’, ‘são bonitas, são femininas, apesar de jogarem futebol’“, conta Silvana. E se elas não estivessem maquiadas? O mundo do futebol não recebe bem as mulheres – o que explicaria o foco na beleza, na maquiagem e, às vezes, até na maternidade das atletas. “Quando se extrapola uma suposição do que seja a feminilidade, logo se joga essa interpretação: ‘não é uma mulher de verdade'”, propõe a professora.
Tudo junto e misturado
Apesar de parecerem opostas, as questões culturais e “biológicas” dessa confusão se interceptam: a cultura, afinal, sempre arranja um jeitinho de se manifestar em nossos corpos. No caso do hipismo – em que, mesmo em nível profissional, homens e mulheres competem diretamente entre si -, é possível observar essa dinâmica de forma explícita. O fato de serem competições “mistas” sugere que todos teriam, ali, a capacidade “biológica” de se enfrentar de forma justa. Mesmo assim, a presença ou ausência de mulheres em diferentes modalidades do hipismo provam que os aspectos culturais realmente afetam as possibilidades que atribuímos ao corpo.
Atletas femininas estão menos presentes nos esportes que envolvem velocidade do que em modalidades como o adestramento, por exemplo, nas quais cavalos desempenham uma espécie de “coreografia”. “Há uma construção da ideia que se tem de seu próprio corpo. Isso dará condições (ou não) para ser determinado esportista”, explica a psicanalista Paula Salomão. Assim, o biológico importa cada vez mais, porque vai sendo constantemente reafirmado pela cultura.
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O começo de tudo
Bem longe do esporte profissional, é já na escola, quando somos pequenos, que todos esses fatores começam a agir em nossas vidas. Nas aulas de educação física, o que importa não é a competição, mas a vivência e o aprendizado que o esporte nos traz. Mesmo assim, já costuma ser rara a mistura entre meninos e meninas em uma mesma atividade.
Pesquisadora há cinco anos do Museu do Futebol, em São Paulo, Aira Bonfim já conheceu muitas iniciativas esportivas. Um dos que se lembra com carinho procura enfrentar de frente esse paradigma: o Futebol de Rua. “É uma prática que desconstrói as regras do futebol, e que faz muito sucesso na mediação de conflitos entre adolescentes de bairros periféricos”, conta. Diferente do tradicional, o Futebol de Rua é jogado em três tempos.
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No primeiro, as duas equipes que vão competir entre si se encontram para decidir, de forma conjunta e democrática, quais serão as regras da partida. “Um gol marcado com a participação de todos pode valer dois pontos, por exemplo, e um de quem faz tudo sozinho, um valor único”, sugere. Para as competições, é estimulado que os times sejam sempre mistos, com meninos e meninas compartilhando espaço. “Se vai ser o caso ou não, são eles que decidem – mas sempre por meio do debate”, explica.
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O segundo tempo consiste no próprio jogo. “Tem equipes mistas que decidem: ‘um gol de menina vai valer dois pontos!’ – mas as meninas destroem! Em um jogo em São Paulo, no ano passado, a equipe de uma menina ganhou de 20 a 4”, brinca Aira.
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No terceiro tempo, então, os jovens voltam ao debate. “Pensando na colaboração, na solidariedade e na visão de que o seu adversário não é seu inimigo, e sim uma peça fundamental para o jogo acontecer, os pontos do jogo são discutidos. Com isso, é definido coletivamente quem foi a equipe vencedora”. E não: nem sempre quem ganha é quem fez o maior número de gols.
Cultura, cultura; biologias à parte
O esporte é parte integrante da sociedade e, por isso, costuma levantar debates relevantes, como os do pessoal do Futebol de Rua. A realidade esportiva desses jovens, democrática e educativa, está com certeza bastante distante da intensa competitividade das Olimpíadas. “O Futebol de Rua, inclusive, é um lugar empoderador de meninas”, diz Aira. “Se ela não joga bem, pode também ser uma peça chave nos debates, representar a equipe”. O esporte de alto rendimento e sua cobertura midiática ainda são majoritariamente divididos e marcados pela desigualdade de oportunidades. A atenção dada a homens e mulheres é diferente, e, quando uma atleta feminina se destaca, é comum ouvirmos por aí que ela “jogou como um homem”.
O fato de as diferenças biológicas ainda nos parecerem imutáveis não quer dizer que não há nada a fazer para mudar os aspectos culturais que arrancam perspectivas na vida das meninas. “Marta é Marta e Neymar é Neymar”, afirmou a própria jogadora, essa semana. Com isso ela reforça, sim, a diferença entre eles, mas não por ele ser homem e ela ser mulher. Marta é Marta e Neymar é Neymar: se os dois são atletas incríveis, por que reduzir um em comparação ao outro?