“Marielle me fez ir à rua manifestar pela 1ª vez”, diz Janette Santiago
Mesmo sem ter conhecido Marielle Franco pessoalmente, a artista fala sobre as conexões de suas vivências, como mulheres pretas
A pouco mais de 400 km do centro do Rio de Janeiro, em São Paulo, no dia 14 de março de 2018, Janette Santiago entrou em estado de choque ao receber a notícia da morte de pessoas que não conhecia, mas que poderiam naturalmente ser alguém da sua família ou de seu ciclo de amizade. Naquela noite, a vereadora Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes foram executados quando a parlamentar saía do evento Jovens Negras Movendo as Estruturas.
“Fiquei anestesiada por conta da forma brutal que a vida deles foi tirada. Você fica sem entender, mesmo sabendo que vivo em um país genocida”, comenta a artista sobre o crime, que completa dois anos neste sábado, 14 de março. “Como mãe, mulher e preta, não tenho como não me identificar com Marielle, que também era ativista, periférica e resistiu a tantas coisas para lutar pelos nossos”, explica.
Quando você é negro e nasce em uma sociedade que se abastece diariamente do racismo estrutural, a vida passa a te dar uma espécie de carcaça de sobrevivência. Não é que deixamos de sentir dor a cada história que é encerrada brutalmente, pelo contrário, mas a morte inesperada passa a não ser uma novidade. E a execução da Marielle e de tudo o que ela representa veio como um grito de desespero.
Assim como a Janette, lembro que vi a notícia no celular enquanto voltava da faculdade de ônibus. O punho da blusa já não dava conta das lágrimas que não paravam de escorrer e o corpo tremia, colocando pra fora todo descontrole e medo. Será que cobrar por garantias básicas como saúde, moradia, estudo e segurança para pessoas que são menos protegidas pela lei mata? Me perguntei, mas já sabendo a resposta.
Marielle não estava no dia a dia da Janette, nem no meu e de muitas outras mulheres e pessoas que se conectaram com ela de alguma forma, seja pelo gênero, etnia, lugar onde mora, orientação sexual ou valores. Mas a cada intersecção em que alguém se reconhecia, a força de atração à sua história aumentava de forma particular. O que explica a sensação de vazio e luto, como se fosse a perda de uma amiga ou familiar.
“Só me vinha revolta. Quando soube do ato no dia 15 de março de 2018, não tive dúvidas de que estaria presente. Cancelei minha aula. Disse que através do meu corpo ia resumir o que estava sentido, só que não conseguia. O único movimento que fiz foi pegar o sling, colocar meu filho e ir pra rua gritar”, relembra a coreografa e mãe do Jamal, que na época tinha 1 ano.
Sobre os palpites por ter levado o filho ao ato, Janette desabafa: “Ouvi dizer: ‘você vai expor seu filho dessa forma, no meio da multidão’. Sim, já me exponho todos os dias nessa sociedade racista e preconceituosa. Fui pra rua por ele, por mim, pelas que vieram antes de nós, pela minha mãe, por todas as mulheres que são mortas diariamente, por Anderson e Marielle”.
Nos vagões do metrô de São Paulo, a presença intensa de mulheres a caminho do ato, que aconteceu em várias cidades brasileiras, emocionava e acolhia. Aos poucos, as quadras da Avenida Paulista já estavam tomadas de manifestantes embaladas pelas batidas do Ilú Obá De Min, bloco afro formado só por mulheres. Naquelas 24 horas, o ódio se fez presente em muitos momentos, mas ele foi transformado gradualmente em conforto e força a cada abraço e olhar de compaixão, principalmente entre as mulheres.
“Foi a primeira vez que fui pra rua manifestar. Não tive medo, sabia que a minha presença e do meu filho era um ato necessário. Surpreendentemente, naquela gritaria, ele dormiu no meu colo. Era como se entendesse que eu precisava daquele silencio pra poder de alguma forma somar no meio daquelas mulheres. Foi uma troca de amor e entendimento de que sigo fazendo a coisa certa, que é lutar, resistir e mais do que isso, persistir. Quem matou e quem mandou matar Marielle e Anderson?”, questiona Janette com as mesmas lágrimas que caíram sobre seu rosto há dois anos.