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Está na hora de assumir a sua parcela de culpa sobre o cenário atual

Não adianta apontar o dedo para o outro. A pandemia pode ter dado o empurrão que faltava para uma profunda reflexão pessoal

Por Isabella D'Ercole Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 20 jul 2020, 13h56 - Publicado em 17 jul 2020, 11h00

Não adianta apontar o dedo e buscar um culpado para tudo o que está acontecendo. É preciso aceitar que você também tem uma parcela de responsabilidade sobre cada um dos desafios que 2020 nos apresentou. A pandemia pode ter dado o empurrão que faltava para refletirmos sobre nosso lugar no mundo e o que desejamos mudar. Pelo bem da sociedade, é bom que sigamos com essa pensata daqui para a frente

 

As mesas estão dispostas na calçada. Grupos de quatro ou cinco pessoas se reúnem em torno de cada uma delas. A madeira do tampo tem manchas da água que escorre dos baldes de cerveja cedendo à noite carioca. Agitados, garçons circulam frenéticos para dar conta de atender os clientes de bares que estiveram proibidos de abrir por 100 dias. As ruas do Leblon, no Rio de Janeiro, estão cheias – inclusive de pessoas sem máscara. Assim como as da Lapa, da Barra. É a noite de reabertura dos estabelecimentos, momento que por tanto tempo ocupou nosso imaginário coletivo: nós saindo às ruas vitoriosos depois de derrotar a pandemia, abraçando entes queridos e fazendo brindes em um reencontro longo, repleto de comemoração e alegria. Um Carnaval fora de época. A imagem, apesar de bonita, é totalmente falsa. E já deveria ter se dissipado da cabeça das pessoas há um mês, quando completávamos 90 dias de isolamento e continuávamos esperando o pico da doença passar.

Naquela noite, a contagem diária de mortos no país chegou a 1 277, fazendo o total de vidas perdidas desde o começo da pandemia no Brasil ultrapassar 61 mil. Ainda não derrotamos o novo coronavírus. “Acho que a vacina já chegou ao Leblon e ninguém avisou”, comentava ironicamente a frase que mais circulou pelas redes sociais no dia seguinte. “Normalizamos a morte, a pandemia”, escreviam os mais revoltados. É de pensar: o que faz centenas de pessoas ignorarem os riscos de um vírus que se espalha rapidamente e deixa tantas vítimas mortais para beber cerveja na calçada?

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As respostas podem ser muitas, e não devemos generalizar pensamentos e sentimentos. Mas, com os números assustadores exibidos dia a dia, não dá para aceitar a hipótese, que se popularizou, de que as pessoas estavam exaustas de ficar em casa. Criaram até um termo para a sensação, fadiga de isolamento. Poder aderir à quarentena é um privilégio – por mais dificuldades que nos imponha, como aulas online, tarefas domésticas, relacionamentos conturbados. O simples exercício de olhar para o lado e reconhecer os desafios do outro – de quem não tem emprego fixo com salário, dos trabalhadores da área da saúde ou de serviços essenciais – já pode servir de estímulo para encarar a o momento de maneira mais positiva. É a boa e velha empatia. Ao mesmo tempo, sobram acusações de indiferença e egoísmo. Elas são aplicadas a outras circunstâncias, além da pandemia. São os casos de violência policial nas favelas e periferias, racismo, agressões contra crianças, a situação das pessoas morando nas ruas, sem ter o que comer. Fechar os olhos é uma escolha que fazemos frequentemente. “O individualismo é intrínseco ao sistema econômico em que vivemos. No capitalismo, é estimulada a competição entre as pessoas. E isso é tão forte que prevalece mesmo quando a sobrevivência depende do ato de pensar no outro”, explica Vanessa Oliveira, doutora em ciências humanas e sociais.

“Em vez de olhar para a situação com negatividade, eu escolho ser criativa na rotina e me manter resiliente. Quem faz isso e fica em casa pelo outro também é um herói do nosso tempo”

Claudia Santana-Feitosa, neurocientista
(Julia Rodrigues/CLAUDIA)

Esse individualismo não é resultado da pandemia, ele está apenas atraindo mais a nossa atenção. Sem a correria da rotina e a certeza que nos rondava, paramos para avaliar comportamentos – mais do outro do que o nosso, é verdade. Daí surgem os fiscais da quarentena, que cobram das pessoas padrões morais próprios. “O vírus e o que a gente faz em relação a ele revelam nossas estruturas de funcionamento, desvelam. As pessoas se divorciam mais, não fazem sexo, bebem mais, aumenta o número de suicídios. Aquela semente do medo e do luto, que estava mais ou menos contida no inconsciente, vem à tona”, explica a psicanalista Maria Homem. “A gente não tem controle sobre o tempo. Para tentar dominar essa realidade ou incidir sobre ela, evitando que seja tão imprevisível, fazemos planos trimestrais, semestrais, anuais. É a tentativa de atuar sobre a contingência da vida. Se não conseguimos, que é o caso agora, vira um momento disruptivo. Subjetivamente, é o ano menos perdido de todos. É agora que você questiona: ‘Quem sou eu em tudo isso e o que é o mundo, afinal? Quais são os mecanismos sociais mais prementes?’. É a chance de criar coragem para se interrogar como sujeito da própria vida e ator do coletivo”, completa.

“É como se a gente se apegasse a algumas estratégias retóricas para garantir a sobrevivência quando a fragilidade humana está posta”

Maria Homem, psicanalista

 

É inegável que a maioria de nós, reclusos e sem contato com o círculo social de sempre, passou por intensas reflexões. Começou com uma transformação física, na casa. O que era um lugar para descanso após um longo dia se tornou o espaço que abriga todas as vivências – da refeição à academia, passando pela escola e o trabalho. Identificamos falhas, sentimos falta da natureza, de um quadrado de grama para pisar ou de um quadrado de céu para olhar. Encarando a tela do celular, nos questionamos se é possível aguentar mais uma reunião por videochamada, mesmo que seja com os amigos. O tempo expôs nossas fraturas pessoais e sociais. “Tínhamos contato físico, mas não era de qualidade. Estávamos falsamente conectados, ficávamos ligados no celular. Agora, só com o aparelho, nos perguntamos sobre o que vale de verdade”, destaca a neurocientista Claudia Santana-Feitosa.

Segundo Claudia, é uma reação natural do cérebro, ao ser colocado em xeque, procurar um culpado. E essa responsabilidade geralmente é jogada para o outro. Isso explica porque vimos tantas atitudes preconceituosas e agressivas contra os asiáticos, como se eles fossem os culpados pela pandemia. Entretanto, é preciso superar esse raciocínio enviesado e preguiçoso para começar a refletir sobre a responsabilidade pessoal. “Eu adoro andar de bicicleta na montanha e correr ao ar livre. Mas o que importa agora é me manter saudável e cuidar dos meus pais. Em vez de olhar para a situação com negatividade, eu escolho ser criativa na rotina e me manter resiliente. Quem faz isso e fica em casa pelo outro também é um herói do nosso tempo. A chave está na maneira como você escolhe absorver o período que estamos vivendo”, explica ela. Claro que nem todo mundo vai viver esse processo igualmente. Para os jovens, essa reflexão leva mais tempo. “É um período de desenvolvimento cerebral que reduz a aversão ao risco. É por isso que eles bebem demais e demoram a aceitar a quarentena, por exemplo”, diz. Não foram poucas as filmagens e fotos que vazaram na internet das festas proibidas organizadas por jovens em todo o país. As aglomerações desrespeitavam ordens jurídicas e colocavam os frequentadores – e consequentemente seus familiares ou pessoas de seu convívio – em risco. “No outro extremo, há o idoso, cujo cérebro precisa ser orquestrado, algo semelhante ao que fazemos com crianças. Ele não consegue acompanhar o que está acontecendo. E, se a informação não faz sentido, ele sai de casa”, complementa Claudia.

(Julia Rodrigues/CLAUDIA)

Claro que faz diferença nessa equação, que combina formação cerebral e comportamento, o contexto em que as pessoas vivem. Para quem está mais afastado do epicentro da doença, não tem casos próximos e sofreu menos com os efeitos da pandemia, o novo coronavírus não parece uma ameaça real. “Os números são tão grandes agora que é como se estivéssemos em guerra. E as perdas não doem como antes porque é mais difícil de mensurar. Além disso, há subjetividade na interpretação dependendo de onde as pessoas moram. Quem está na Brasilândia (bairro de São Paulo que por muito tempo foi o recordista em mortes) encara o sofrimento de muitas mortes por dia. São amigos, parentes, vizinhos. Essa âncora na realidade não existe para quem vive em bairros de elite”, diz Vanessa.

“O individualismo é intrínseco ao sistema econômico que vivemos. No capitalismo, é estimulada a competição entre as pessoas”

Vanessa Oliveira, doutora em ciências humanas e sociais

 

Há ainda um terceiro grupo, que não é de jovens nem de idosos e mesmo assim insiste em não cumprir as regras de isolamento social: o dos negacionistas. Essa reação pode ter diversas origens, como crença religiosa ou ideológica extrema, que impedem as pessoas de irem atrás de dados e fontes confiáveis. Em vez disso, aceitam afirmações de quem consideram figura de autoridade. “Temos nesse caso um paradoxo, pois sair da negação exige tempo. E, quanto mais demora para as pessoas entenderem a necessidade de ficar em casa, mais o vírus se espalha”, alerta Claudia. “Só que não adianta você ficar apontando o dedo para o negacionista, tentando fazê-lo aceitar a ciência; ele continuará negando os fatos.” O melhor caso para exemplificar essa questão no momento é o discurso presidencial. Em diversas ocasiões, Jair Bolsonaro (sem partido) discordou de pareceres científicos e reduziu os impactos do novo coronavírus. Ele também participou de manifestações com aglomeração e sem máscara. Na posição de chefe de Estado, ele vira referência para muitas pessoas, que passam a repetir suas falas e atitudes.

Individualidade versus individualismo

 

Para Maria Homem, negar o vírus também tem a ver com a tentativa de manter a ideia de que somos onipotentes, capazes de resolver tudo. “É um grau de defesa quase psicótica, muito arcaica, regressiva. É como se a gente se apegasse a algumas estratégias retóricas para garantir a sobrevivência quando a fragilidade humana está posta”, afirma. Em uma lógica semelhante, para nos protegermos, nos organizamos em grupos de interesses e crenças em comum. “Ao sentir a ausência de amparo, o ser humano busca formar bolhas coesas e muito fortes. É o seu mundo contra o caos exterior, contra a vulnerabilidade. E colocamos um grupo contra o outro, como se ambos não pudessem coexistir”, diz, citando a organização de clubes, partidos e até da estrutura familiar. A psicanalista interpreta esses movimentos como reações pela dificuldade de aceitar a condição humana, que é ser só. Isso explicaria, por exemplo, a ascensão de grupos conservadores extremistas, como temos testemunhado. “Será que a gente conseguiria fazer o luto dessa organização e se enxergar como sujeitos com poder de atuação que se uniriam em grupos por afinidades, mas sem um elo tão rígido e limitante?”, indaga Maria. No fundo, nosso problema não é lotar os bares ou negar a ciência, e sim se deixar levar pela rotina a ponto de abandonar questões importantes, vitais até, sobre quem somos e como lidamos com o que nos cerca. O que a pandemia expôs é que a evolução tecnológica se sobrepôs à evolução humana, pois essa exige reflexão dolorosa e constante.

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