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“Após 12 anos entendi que o estupro não foi minha culpa”, fala atriz

Aos 18, a atriz Juliana Lohmann foi estuprada por um diretor; depois, agredida pelo namorado. Ela quer se libertar da culpa e apoiar mulheres em risco

Por Juliana Lohmann
Atualizado em 3 ago 2020, 12h26 - Publicado em 13 jul 2020, 18h00

“Tenho trinta anos. Aos onze comecei a trabalhar na televisão. Vi meu corpo se modificando enquanto trocava o figurino. Demorou pra eu entender que não podia mais sair abraçando os colegas de trabalho ou sentando em seus colos, como antes. Aos dezoito, fui sexualizada em um ensaio fotográfico pra que me dessem “papéis mais adultos”. O amadurecimento da mulher era representado pelo crescimento dos seios. Em nenhum momento ouvi, mesmo de pessoas mais próximas, que eu não precisava mostrar o corpo pra provar ou conseguir nada. Era o que tinha que ser feito, não havia questionamento.

Na mesma época, fui convidada para fazer um teste por um famoso que dirigia seu primeiro longa. Ele me ligou e me chamou diretamente. Era em São Paulo e eu sou do Rio de Janeiro. Perguntei se podia levar minha mãe. Não, ele não poderia pagar mais uma passagem. Pediu desculpas. Fui mesmo assim. Era a primeira vez que viajava sozinha, me senti uma desbravadora de novos horizontes, pronta pra fazer cinema. Passei a madrugada estudando a personagem, cheguei com a cabeça cheia de ideias e perguntas. Me instalei no quarto do hotel e, em seguida, a convite dele, nos encontramos em seu apart, no último andar desse mesmo hotel, pra conversarmos um pouco sobre o roteiro enquanto esperávamos um sinal dos produtores para a realização do teste. O papo foi mais sobre outros assuntos do que sobre o próprio filme, ele se mostrou divertido e parecia querer me deixar à vontade com suas tiradas de humor.

Passamos o texto duas ou três vezes já no fim da tarde. Ele concluiu que a personagem exigia “mais loucura” e me sugeriu que fumássemos maconha pra que a cena fosse relida posteriormente, argumentando que dessa forma descobriríamos novas nuances. Fiquei reticente, mas acabei aceitando. Dizer não para um diretor não é algo que uma atriz de dezoito anos sabe exatamente fazer. Um trago foi o suficiente pra que eu ficasse completamente chapada. Em determinado momento, percebi que o contato que ele fazia comigo excedia o profissional. Minha inexperiência com a erva não me deixou em condições de avaliar com mais clareza o que de fato estava acontecendo. Ele veio me beijar. Eu me assustei, disse que não queria. Foi uma completa surpresa acreditar que aquele homem, com sua boa imagem midiática de família margarina, pudesse se aventurar com outras mulheres. E ainda mais comigo. Não fazia a menor ideia de que eu seria atraente pra um homem como ele. Nós, mulheres, somos acostumadas a medir nosso valor de acordo com o desejo masculino. Era pra eu estar feliz por aquele homem poderoso, bonito e tão desejado estar me desejando. Mas eu não queria e não sabia como fazer pra me desvencilhar do diretor do filme cujo teste, àquela altura, iria acontecer somente no dia seguinte, por causa da disponibilidade dos produtores.

Ele disse algumas vezes que aquilo não havia sido premeditado, que ele estava ali de forma estritamente profissional, mas que eu o havia encantado. Eu o tinha deixado maluco, não havia o que ele pudesse fazer. Peguei o texto e, muito nervosa, pedi que voltássemos à leitura. Ele tirou o roteiro da minha mão e me apertou com força contra o corpo dele. Eu pedi pra parar, mas ele me apertou mais forte. Fiz força para sair e não consegui. Imobilizada, eu disse que ia gritar. Ele respondeu em um tom doce que, se eu gritasse, ninguém iria ouvir. Pensei em gritar mesmo assim, mas, se alguém escutasse e fosse me socorrer, seria um escândalo. Todos iriam saber que eu estava ali, com aquele homem casado e famoso em seu apart hotel. O que eu tinha ido fazer lá? Eu tinha me colocado naquela situação. Tinha aceitado viajar sem minha mãe, tinha fumado maconha com essa pessoa, tinha um ensaio sensual meu na internet. Eu tinha provocado. “Fica calma, eu só quero dançar com você”, ele disse. E, ainda me imobilizando, me jogou calmamente de um lado pro outro.

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Eu fui tentando respirar e acalmar o pânico do pensamento de que eu estava a centenas de quilômetros de casa. Entendi que não tinha saída. Fiquei quieta. Fiz o que ele queria. Tive que insistir muito pra ele pelo menos colocar a camisinha, o que fez somente depois de algum tempo de penetração. Havia um quadro na parede em cima da cama. De trás do quadro ele retirou um saco plástico com alguns preservativos. Aquilo me deu a sensação de que eu não era a única pela qual ele “tinha se encantado”. Colocou a proteção, mas retirou logo em seguida, ejaculando dentro de mim. Insistiu pra que eu dormisse com ele. No dia seguinte, de manhã, fui acordada por seu membro invadindo minha vagina. Lembro de ficar na mesma posição, deitada de lado, e apenas enfiar meu rosto no travesseiro pra que ele não percebesse as lágrimas que caíam sem controle. Ele ejaculou dentro, de novo.

Ele me contou que lembrava como eu o tinha olhado na primeira vez que nos vimos, antes dessa ocasião. Falou que eu tinha lançado a ele um olhar de desejo, deixando-o louco. Sorri por não saber o que dizer. Eu nunca havia feito aquilo. Ao se levantar, disse que o teste realmente não iria rolar porque os produtores estavam ocupados novamente. Começou a se arrumar pra sair, sacou um cheque e me perguntou quanto tinha dado. Eu fiquei atônita. “Da passagem”, ele explicou, já com a caneta em mãos. Havíamos combinado que eu arcaria com esse custo e depois seria ressarcida. Eu disse o valor. Ele assinou o cheque, me entregou, me levou até a porta, colocou a mão no meio queixo e disse: “Uma delícia você. Vou querer mais.”

Ao chegar no meu quarto, o cartão não abria a porta. Eu nunca tinha visto aquilo de cartão abrir portas, não sabia o que fazer e voltei ao apart dele. Ele já tinha ido embora. Desci até a recepção. Segundo a atendente, já passava de meio-dia e minha diária havia expirado. Lembro de quase implorar pra que eles estendessem em vinte minutos, disse que precisava apenas tomar um banho rápido. Eu estava imunda e sozinha em uma cidade que, para mim, era gigantesca. Enfim liberaram. Nunca vou me esquecer daquele banho. Eu me esfreguei com sabão inúmeras vezes, em todos os orifícios, com vontade de vomitar. Nem a água e nem o sabão tiravam de mim aquilo que eu queria que saísse. E eu mal sabia que aquilo nunca na minha vida iria, de fato, sair.

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Ele me ligou outras vezes dizendo que tal dia os produtores estariam lá, que poderiam me testar. Eu parei de atendê-lo. Não sabia como dizer que não me sentia bem pelo que havia acontecido. Silenciei seu chamado e a memória que ele retinha.

Anos mais tarde, toda vez que sentia um pouco de agressividade numa relação sexual, engatava num choro compulsivo. Quando tive coragem de contar esse episódio à um namorado, ouvi que se eu realmente não quisesse ter transado, eu teria jogado um abajur na cara do sujeito. “Você quis”, ele dizia. Eu e esse namorado tivemos um relacionamento relativamente duradouro por volta dos meus 20 anos, no qual constantemente sofri violências psicológicas, verbais e físicas. Sempre muito ciumento, ele me tolhia no meu modo de dançar, de me vestir, de trabalhar e de me comunicar com as pessoas. As violências físicas começaram aos poucos: recebia apertões fortes e disfarçados quando ele queria que eu parasse de falar na frente de alguém e, quando estávamos à sós, ao se irritar, levava a mão fechada em direção ao meu rosto, mas socava a superfície atrás de mim. Uma vez, ele me empurrou no chão e caí uns três ou quatro metros depois. Fiquei mancando alguns dias, o que me fez ter que inventar uma desculpa no trabalho. Ele colocou a tesoura no meu pescoço e disse que ia me cortar inteirinha. E me trancou no banheiro de uma festa e ameaçou jogar uma garrafa de whisky na minha cabeça.

Em uma madrugada, voltando da casa de uns amigos, ele me socou três vezes no rosto, dentro do carro, logo após ter feito “roleta russa” nos sinais de uma das mais movimentadas avenidas do país, até perder o controle do carro e bater em uma banca de jornal. Ao chegar na casa dos pais, tentou se jogar da varanda na frente da família. Foi quando seus parentes souberam um pouco do que se passava. Eu lidava com tudo sozinha.

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Qualquer ação ou inação minha podia desencadear uma situação perigosa. Ele dizia que ia me matar, me machucava, depois dizia que ia se matar. E eu tinha que acudi-lo em vez de me acolher. Depois, ele voltava com flores, dizia que ia mudar, eu aceitava. Tive muito medo de morrer. Tinha medo de pedir ajuda, de contar pra alguém. Achava que ele precisava de tratamento psicológico. Uma noite, ao sair do trabalho, ele me ligou e disse que por minha causa iria se matar. Eu o achei bêbado pela rua quase andando contra os carros e tentei interná-lo em uma clínica psiquiátrica, sem sucesso. Ele precisava tomar soro, então fomos a um hospital. Quando ele finalmente acalmou no leito, desmaiei.

No término da relação, descobri que estava com uma DST. Eu só havia transado com ele durante a nossa relação. Na época, a ginecologista me disse que por causa disso talvez fosse difícil engravidar por vias naturais, caso um dia eu quisesse. Até hoje não se sabe até que ponto minhas trompas foram obstruídas.

Eu tinha perdido todo dinheiro que havia juntado do meu trabalho até aquele momento, principalmente por causa do nosso relacionamento. Quando consegui me libertar, tentei estabelecer uma boa relação com ele, que se mostrou amigável. Era um alívio que tudo tivesse finalmente acabado. Eu o via pelas redes sociais com a nova namorada e seu novo ótimo relacionamento, e achava que o horror tinha se estabelecido só no nosso encontro. Pronto: a culpa também era minha. Anos mais tarde, descobri que ela também estava sofrendo vários tipos de violência. E não, nada tinha acabado. Quanto mais eu me distanciava dos ocorridos, mais percebia que os danos psicológicos ainda reverberavam dolorosamente.

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Faz muito pouco tempo que tive a certeza de que de fato nunca houve teste nenhum a ser feito em São Paulo. Eu passei doze anos, quase metade da minha vida até aqui, na dúvida. Eu me questionei se realmente eu não quis, me questionei se de fato não foi premeditado o interesse dele por mim, se realmente não havia o teste que, por um “infortúnio”, foi cancelado. Doze anos não ouvindo o que havia dentro de mim. Doze anos vivendo como se nada disso tivesse acontecido, ou como se tudo isso estivesse muito bem resolvido dentro dessa mulher tão bem resolvida que sou.

A desigualdade de gênero e de raça, por si só, já coloca o homem branco numa posição de poder em relação à mulher, que, dentro dessa sociedade racista e patriarcal, está condicionada à subordinação, obediência e submissão. A mulher negra mais ainda: enquanto a mulher branca negava, através do pensamento feminista, o lugar de fragilidade que lhe era imposto, a negra estava na cozinha, servindo os brancos e cuidando de seus filhos.

Este diretor usou de sua posição de poder, não só por ser um homem branco muito mais velho, mas principalmente por ser o diretor do filme, responsável por decidir se eu trabalharia ali ou não. Eu, uma atriz de dezoito anos recém-feitos e que ainda começava a entender como me posicionar profissionalmente sem minha mãe por perto. Ele me enganou, me drogou e me estuprou, violando minha dignidade sexual e deixando marcas que carregarei pro resto da vida. E o namorado a seguir também se utilizou da sua posição para me violentar física, verbal e psicologicamente, me fazendo acreditar que o amor é exatamente a submissão, o silenciamento e a destruição de toda potência, liberdade e beleza feminina.

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Tais crimes não são acontecimentos soltos. Tais crimes acontecem o tempo inteiro e os abusadores estão espalhados aos montes pela sociedade, travestidos de bons moços. Obviamente os homens também estão expostos ao próprio machismo porque são obrigados a performar uma masculinidade tóxica, cujo termômetro da macheza é constantemente avaliado. Mas não nos esqueçamos quem são as vítimas: enquanto homens sofrem por terem sua personalidade distorcida pelo patriarcado, mulheres são assassinadas. O Brasil teve um aumento de 7,3% nos casos de feminicídios em 2019, segundo um levantamento feito pelo site G1. O que é assustador é que, à medida que mulheres estão debatendo mais o feminismo e se empoderando, estão morrendo mais também.

Eu poderia não estar aqui contando essa história. Mas estou, e é por isso que não me silenciarei mais. Exponho esse relato no intuito de que outras mulheres possam ler, talvez se identificar, e refletir sobre suas existências e seus relacionamentos. E, falando sobre o meu ofício: nós, atrizes, que trabalhamos com a exposição de nossos corpos, precisamos ser protegidas e respeitadas de fato. Não pode mais haver espaço para que sejamos assediadas por diretores, atores, produtores, ou qualquer homem que esteja em uma situação de poder maior que a nossa, seja pela desigualdade estrutural de gênero ou pela posição hierárquica que habita. Somos acuadas tanto pela constante invalidação do nosso pensamento dentro do afazer artístico, quanto sofrendo assédios já absolutamente naturalizados. É preciso que falemos sobre esse assunto. É preciso que falemos sobre as estruturas e relações de poder às quais todas as mulheres, em diferentes formas e intensidades, estão invariavelmente submetidas.

Eu não consegui prestar queixa na época do primeiro evento e, depois, durante essa relação abusiva, porque não entendia o que estava se passando, nem quais eram os meus direitos como mulher. Quando finalmente elaborei os acontecimentos vividos, soube que tais crimes, para a justiça, já haviam prescrito. Perdi meu direito de ter direitos sobre minhas dores. Talvez, se eu tivesse lido um relato como esse, pudesse ter compreendido melhor a situação e eles não estariam impunes. Talvez a namorada seguinte do meu ex não tivesse sofrido o que sofreu. Também tenho certeza de que não fui a única a ser violentada sexualmente naquele quarto de hotel em São Paulo. Quanto tempo será necessário pra que a gente se liberte, pra que essa dúvida, essa maldita dúvida, filha do patriarcado, deixe de crescer como parasitas em nossos corpos, tomando nossa consciência e nosso poder? As marcas, se não compartilhadas e transformadas, aumentam através dos tempos. A minha libertação não é só minha; ela encontra eco e força em outras vozes que vieram antes de mim, e também faz coro às que virão depois.

Eu não sei quem é você que me lê. Não sei em que situação você está. Pode ser que esteja vivendo um relacionamento abusivo e não saiba como sair. Pode ser que esteja sob ataques e crimes de violência doméstica. O que é mais triste é que não posso dizer pra você simplesmente ligar 180 e denunciar, porque pode ser que você não tenha dinheiro pra comprar comida sem a ajuda do seu violentador. Pode ser que você esteja totalmente dependente desse homem e não veja pra onde fugir. Mas isso não pode te calar. O que posso te dizer é: acalme-se. Procure ajuda de parentes, de vizinhos ou de pessoas próximas. Trace um plano caso precise sair com urgência de casa. Procure proteção do Estado. Há várias plataformas na internet que podem te orientar, como o Mapa do Acolhimento. Não aja sozinha.”

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