Uma dança de corações e moedas ganha protagonismo nos consultórios de terapeutas por todo país. O amor leva muitas mulheres ao divã e, junto dele, cada vez mais, questões financeiras também. São assuntos diferentes, mas não rivais. A percepção é de cinco profissionais da saúde mental consultados pela CLAUDIA: Ana Suy, Fernanda Lopes, Monique Santos, Regina Madalozzo e Alexandre Coimbra.
Para eles, entre os principais conflitos estão a dependência financeira, a sobrecarga do trabalho de cuidados, a desigualdade salarial, os desentendimentos quanto ao uso do dinheiro, a intelectualidade invisibilizada e os impactos da relação na carreira de cada um.
“É sempre um motivo amoroso que leva as pessoas a buscarem análise e, claro, os seus desdobramentos”, afirma a psicanalista e professora Ana Suy, autora do livro A Gente Mira no Amor e Acerta na Solidão (Editora Paidós), entre outras obras.
“Homens já costumam abordar sobre dinheiro, mas entre mulheres ainda considero uma novidade. Tem muito a ver com o quanto elas conseguem ser independentes. Então, é como se o dinheiro pudesse, de alguma forma, colocá-las em uma posição que não seja tão miserável em relação ao quanto a gente precisa do amor do outro”, avalia.
Para Ana Suy, a independência financeira é um dilema contemporâneo e extremamente importante. “Não é a mesma coisa amar alguém de quem se depende financeiramente. São muitos os casos de pessoas que nem sequer queriam estar juntas, mas se mantêm no relacionamento porque são dependentes financeiramente. Isso pode encaminhar a vida para muito sofrimento”, diz.
“Além de ser amado pelo outro, se busca ter reconhecimento, dinheiro, coisas, filhos, seja lá o que for. Tudo isso também nos torna amáveis para o outro e, por consequência, que a gente se ame através do quão a gente acredita ser amável. Afinal de contas, o nosso amor-próprio não é tão próprio assim”, completa.
O que o psicólogo e podcaster Alexandre Coimbra Amaral, escritor de Toda Ansiedade Merece um Abraço (Editora Paidós), mais tem lidado no consultório, quando reflete sobre o recorte das cifras, também é o medo que a mulher tem de se separar e se tornar vulnerável financeiramente.
“Acontece quando o relacionamento minou a possibilidade de construir autonomia e a mulher se vê dependente. Muitas permanecem em um casamento, mesmo de forma tóxica, pela questão financeira.”
Não se trata de ela trabalhar ou não, mas sim de encarar as discrepâncias que existem na sociedade patriarcal brasileira, pondera o terapeuta de casais e de grupos. “Independentemente da classe social, é sobre o que a mulher conseguirá assumir quando está sozinha.”
A divisão financeira entre um casal e seus impactos
Outra questão que costuma se fazer presente na escuta de casais, na clínica de Alexandre, é a distribuição dos recursos e investimentos, pois também se trata de decidir o que cada membro do casal considera prioridade.
“Um projeto de vida a dois mescla duas culturas. Não é pouco comum, por exemplo, haver conflito para se decidir o quanto se paga por uma escola, ou o quanto destinar à família de origem para ajudar irmãos e pais”, afirma o psicólogo.
Se um acredita que o dinheiro deve ser usado no momento presente, outros preferem pensar no futuro. Esse é um tópico também apontado por Alexandre. “Falamos das angústias de agora e da insegurança sobre o futuro, dívidas ou espera, uma viagem, uma reforma. Parecem coisas pequenas, mas que já revelam fissuras do relacionamento.”
Alexandre defende que a terapia é a instância onde se busca entendimentos. Ele pondera, entretanto, que muitos dos conflitos estão acontecendo no presente, mas só são conhecidos após um término, num processo terapêutico individual.
“Muitas percebem que foram enganadas, que sofreram violência patrimonial, o que deixa um saldo na alma de humilhação, vergonha, medo e raiva. Muitas mães, por exemplo, estão se dando conta do que houve com elas a partir das situações enfrentadas pelas filhas”, diz Alexandre.
Números reforçam esse cenário. Uma pesquisa realizada pela organização não governamental Think Olga, voltada a equidade de gênero, mostrou que os âmbitos financeiro e profissional são algumas das áreas de maior incômodo para as mulheres.
O dinheiro afeta a saúde mental delas, seja por dívidas, remuneração baixa ou menor do que a dos homens, ou pela sobrecarga de trabalho. Hoje, 60% querem mudar sua situação financeira e 30% gostariam de mudanças no trabalho. Os índices são ainda piores entre mulheres das classes D e E, jovens, LGBTQIA+ e pretas e pardas.
Como os desafios financeiros impactam mulheres de realidades diferentes?
Segundo a psicóloga e psicanalista Fernanda Lopes, o dinheiro nunca é o primeiro dilema levado para a análise, mas a organização financeira, ou melhor, a falta dela, atravessa muitas outras questões.
“É a dificuldade da mãe solo, de quem se divorcia e de outras que vivem uma situação de desigualdade profunda. Independentemente da situação, a falta do dinheiro, ou de seu controle, afeta a autonomia da mulher”, afirma.
De acordo com ela, o processo de análise também passa por revisar padrões. Em sua clínica, onde a maior parte do atendimento é de mulheres negras, Fernanda se depara com situações diversas. Entre elas, as culpas somatizadas pela ascensão profissional, por exemplo.
“Muitas crescem na carreira e não conseguem, de fato, usufruir plenamente desta condição. Essa mulher se torna a responsável por cuidar dos pais e dos irmãos e, às vezes, de mais gente ainda. Então o seu dinheiro é para você, para os que vieram antes e para os que estão vindo depois”, explica.
Para além disso, existe a solidão. “O ambiente embranquece ao redor. E aí, como faz? Você não se vê mais pertencente de onde você veio e nem de onde você está, gerando um sentimento de inadequação.”
A escuta psicanalítica de Monique Machado também tem o intuito de acolher os atravessamentos que o racismo causa na psique da população negra, gerando adoecimento físico e mental.
“O primeiro dilema que aparece no consultório é referente à intelectualidade invisibilizada. Isso acontece quando os pensamentos dessas pacientes são desvalorizados pelas normas sociais, uma vez que não estão articulados nas lógicas padronizadas no comportamento do embranquecimento cultural”, avalia.
Regina Madalozzo é economista e foca a economia feminista em suas publicações e pesquisas acadêmicas. Ela também tem formação em psicologia sistêmica, com especialidade em psicologia junguiana. Acabou de lançar o livro Iguais e Diferentes: Uma Jornada pela Economia Feminista (Editora Zahar), em que oferece uma introdução acessível sobre a necessidade de olharmos a economia e o mundo pela ótica feminista.
A economista e terapeuta traz a importância de se refletir sobre o que está por trás das decisões do homem e da mulher. “A diferença é importante porque muitas vezes a gente escuta que as mulheres ‘desistiram’ de trabalhar e ‘preferiram’ ficar em casa. Que tipo de desistência eu estou falando? De alguém que participou do mercado de trabalho, mas que ao mesmo tempo tinha uma carga de trabalho de cuidado muito grande quando voltava para casa, que era responsabilizada caso acontecesse uma doença na família, uma criança que não ia bem na escola? E que, além de tudo, era discriminada no trabalho? Ela desistiu ou ela foi expulsa do mercado?”, pondera Regina.
O Fórum Econômico Mundial divulga anualmente o Global Gender Index Gap (Índice Global de Disparidade de Gênero). Neste ano, em sua 18ª edição, comparou a paridade de gênero em 146 países, fornecendo uma base para a análise em dois terços da economia do mundo. Nesse ranking, o Brasil ocupa a 70ª posição.
No quesito “Participação econômica e oportunidades”, entretanto, o país cai para a 88ª colocação. E quando falamos da disparidade na força de trabalho e salários, assumimos o 91º e 118º lugares. De forma geral, o mundo levará mais 134 anos para atingir paridade entre mulheres e homens. E precisará de muita terapia até lá.
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