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Neca Setubal: “Não há como falar em democracia sem olhar para os recortes”

Socióloga fala sobre engajamento nas questões mais urgentes do país e reflete sobre política, filantropia e os desafios da conjuntura brasileira

Por Paola Carvalho
Atualizado em 16 out 2024, 09h55 - Publicado em 15 out 2024, 17h31
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  • Neca Setúbal: “Não há como falar em democracia sem olhar para os recortes”
    Socióloga comenta sobre lançamento de autobiografia que revela a ilustre tragetória social de mais de 40 anos (Nellie Solitrenick/Reprodução)

    “Ser mulher é uma construção que se faz e se atualiza ao longo da vida.” Essa é uma das frases que nos fazem parar e refletir a partir da narrativa que a socióloga e filantropa Maria Alice Setubal, nome intrinsecamente associado à elite financeira do Brasil, constrói em sua autobiografia Minha Escolha Pela Ação Social – Sobre Legados, Territórios e Democracia (Editora Tinta-daChina Brasil). 

    O prefácio da obra, publicada em junho, é da filósofa, escritora e ativista antirracismo Sueli Carneiro. Desde o lançamento, o livro passa pelo olhar de mulheres que estão virando páginas e se identificando ora com recortes sobre educação e política, ora com passagens inteiras da vida de Neca, como é conhecida.

    “Cresci em ambiente masculino, mas a construção do feminino foi forte em mim. Eu tive o privilégio de ter tido uma mãe, nos anos 50, com muita personalidade, opinião própria e autonomia, ligada às mais diferentes artes. O ‘Setubal’ chegava antes da ‘Neca’, como uma marca pejorativa, de socialite conservadora. Eu tive de ser aguerrida para construir uma liderança feminina diferente”, afirmou Neca. 

    Ela é filha de Olavo Setubal (1923-2008), o fundador do Itaú, atualmente o maior banco privado brasileiro — que foi prefeito de São Paulo (1975-1979), nomeado pela ditadura militar (1964-1985) e ministro das Relações Exteriores (1985-1986) durante o governo Sarney, indicado por Tancredo Neves — e da filantropa Tide Setubal (1925-1977), que faleceu de câncer precocemente, quando Neca tinha 26 anos. 

    Foi dela que veio o ímpeto inconformista de empregar recursos na transformação do que acredita para o mundo. Aos 73 anos, em meio a seis irmãos que se encontram sistematicamente todos os meses para jantar, Neca é mãe de três filhos e avó de sete netos.

    Uma trajetória contra a correnteza

    Nas quase 200 páginas do livro, Neca recupera o contexto político desde a sua formação, numa Universidade de São Paulo (USP) inflamada pelo movimento estudantil e pela oposição ao autoritarismo.

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    O início de sua trajetória já apontava para o que faz questão de defender veementemente até hoje: embora tenha nascido em uma família com muito dinheiro, ela optou pelo trabalho social. Ela foi em frente, mesmo que contra a correnteza. 

    Tem mestrado em ciência política pela USP e doutorado em psicologia da educação pela PUC-SP. Em 1987, fundou o Centro de Estudos e Pesquisa em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec), atualmente uma das principais instituições dedicadas à qualidade e à equidade na educação pública, e em 2005, a Fundação Tide Setubal, quando tomou a decisão de atuar por meio de uma instituição própria, inspirada no legado de ação social que recebeu de sua mãe.

    Nos anos 1990, ela trabalhou no escritório da Unicef, em Bogotá, e entre 2021 e 2023 foi presidente do conselho de governança do Grupo de Fundações, Institutos e Empresas, o Gife, que congrega as maiores iniciativas privadas de investimento social e tem importante papel na filantropia no Brasil. 

    À frente do Gife, durante a crise da Covid-19, ela coordenou ações de combate aos efeitos econômicos da pandemia sobre as populações mais vulneráveis. As doações articuladas fizeram com que o país se elevasse a um novo patamar na área filantrópica, atingindo 5,3 bilhões de reais em 2020, um recorde histórico.

    Como reforça Sueli Carneiro no prefácio, a liderança feminina pode transformar as opressões históricas e atuais em forças potentes, que respondam de forma mais acurada aos desafios contemporâneos. 

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    No livro, Neca não foge das tantas contradições e complexidades de ser uma Setubal em um país profundamente desigual e discute como entendeu que ser herdeira poderia ser tanto um peso, quanto uma oportunidade. Para ela, o verdadeiro legado não está no poder ou no acúmulo de riquezas, mas nas transformações sociais que uma pessoa é capaz de promover ao longo da vida.

    Neca Setúbal: “Não há como falar em democracia sem olhar para os recortes”
    “A transformação social só pode ocorrer a partir do entendimento das desigualdades e de um trabalho incansável para reduzi-las” (Nellie Solitrenick/Reprodução)

    “A transformação social só pode ocorrer a partir do entendimento das desigualdades e de um trabalho incansável para reduzi-las”, afirma em sua autobiografia. 

    Neca é uma das idealizadoras do Pacto Nacional pelo Combate às Desigualdades, iniciativa liderada pela Ação Brasileira de Combate às Desigualdades (ABCD), que recentemente lançou o Relatório do Observatório Brasileiro das Desigualdades, com cerimônia no Congresso Nacional. O documento mostrou que o Brasil reduziu a proporção da população na extrema pobreza, de 2,8% do total de habitantes em 2022 para 1,7% em 2023.

    Entretanto, o rendimento dos mais ricos cresceu na mesma medida dos mais pobres, mantendo as desigualdades estruturais praticamente inalteradas. Na ocasião, ela declarou que o Brasil corre o risco de atingir o “ponto de não retorno” na desigualdade e defendeu que essa não é uma questão dos pobres, mas sim da sociedade brasileira.

    A narrativa de Neca Setubal está repleta de momentos que evocam o papel da educação, não apenas como uma ferramenta de ascensão social, mas como um mecanismo de emancipação. 

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    Sua visão está ligada à ideia de que é preciso formar indivíduos críticos, capazes de compreender o contexto ao seu redor e agir sobre ele. Ela relembra, por exemplo, o impacto que teve o contato com a pedagogia de Paulo Freire, cujas ideias sobre educação popular marcaram suas escolhas futuras e moldaram seu entendimento sobre democracia participativa e justiça social.

    Participação na política

    A atuação de Neca não se limitou às discussões acadêmicas ou aos círculos fechados de debates sobre educação e política. Ao longo de sua vida, ela se envolveu diretamente com a implementação de projetos sociais voltados para populações vulneráveis, especialmente nas periferias urbanas. 

    O trabalho com o Cenpec é um dos pilares de sua trajetória, no qual combina teoria e prática, entendendo que o campo social exige muito mais do que boa vontade. “É preciso conhecimento, estratégia e, acima de tudo, escuta”, afirma. “É necessário um envolvimento direto, construindo pontes entre a sociedade civil, o Estado e as comunidades”, reitera.

    Na Fundação Tide Setubal, dedica-se hoje a um projeto de investimento para melhorar todos os indicadores de desenvolvimento sustentável de um território específico, localizado no distrito de São Miguel Paulista, na Zona Leste paulistana: o Jardim Lapenna, comunidade de 12 mil habitantes que vive em condições precárias, encravado entre indústrias, uma linha da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) e a rodovia Ayrton Senna. 

    Foi em São Miguel que sua mãe havia começado seu trabalho social, e retornar àquele território, que abrigava um hospital e uma escola chamados Tide Setubal, pareceu uma “escolha necessária”.

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    A partir dos resultados, a serem mensurados até 2030, Neca conta que pretende-se formular uma metodologia que possa ser replicada em outros territórios da periferia urbana brasileira — metodologia que não se resume ao financiamento, mas é sobretudo uma articulação e um diálogo profundo com a comunidade.

    Neca Setúbal: “Não há como falar em democracia sem olhar para os recortes”
    Capa de autobriografia “Minha Escolha Pela Ação Social – Sobre Legados, Territórios e Democracia”, escrito por Neca Setubal (Editora Tinta da China Brasil/Divulgação)

    Ela também discute a importância de uma abordagem interseccional na luta por justiça social, destacando como as questões de raça, gênero e classe se entrelaçam nas diferentes experiências de exclusão vividas pelas mulheres negras, indígenas e de periferia. “Não há como falar em democracia sem olhar para esses recortes”, escreve Neca, enfatizando que a democracia só será real quando for capaz de abraçar todas as diversidades.

    Vida política

    Na década de 2010, embarcou em uma nova experiência: a política. Juntou-se a um grupo que buscava criar uma alternativa para o polarizado quadro eleitoral brasileiro à época.

    Ela acompanhou Marina Silva em duas eleições presidenciais e na criação da Rede Sustentabilidade. Com disposição para se colocar diante da conjuntura, declarou publicamente seu apoio ao então candidato Luiz Inácio Lula da Silva nas eleições de 2022. 

    Participou do governo de transição, foi cotada para o Ministério da Educação e atualmente faz parte do “Conselhão”. Se posiciona a favor dos instrumentos de tributação sobre grandes fortunas, propostos pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT).

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    “Vivemos múltiplas crises. As três principais, para mim, são: meio ambiente, democracia e desigualdades. Eu estou, pessoalmente, muito focada nessas pautas. Acredito que as lideranças femininas têm de estar alinhadas a esses assuntos. O que pode fazer a diferença é a potência da singularidade de cada uma de nós, articulando-nos ao coletivo, construindo laços de confiança, rompendo padrões que não se adequam mais à sociedade contemporânea”, diz Neca. 

    Mais do que uma autobiografia, o livro sobre a vida de Neca é um convite de reflexão sobre a responsabilidade que vem com uma posição privilegiada e sobre como cada um de nós pode contribuir para um mundo mais justo, transformando o privilégio em mudança concreta. 

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