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Pesquisa revela significados dos sonhos dos brasileiros na pandemia

Os primeiros resultados da pesquisa que compilou mais de 1,5 mil relatos de brasileiros revelam que estamos angustiados e criando distopias

Por Pedro Nakamura e Sílvia Lisboa
19 abr 2021, 12h00
Flores e nuvens saem do pescoço de uma figura feminina no lugar da cabeça
 (Vizerskaya/Getty Images)
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E

m uma madrugada de maio de 2020, Anna* sonhou estar em um prédio muito luxuoso e alto. Ela precisou sair depressa e não sabe bem o porquê, mas não podia usar o elevador. A caminho das escadas, percebeu que o prédio havia “se virado em seu eixo”, invertido os lados, e uma enorme fenda se abriu.

O acesso à escada ficara contra a parede e o vão impedia Anna de chegar aos degraus que agora não levavam a lugar nenhum. “Fiquei desesperada por estar encurralada e tive certeza de que não conseguiria me salvar. Meu sentimento era de pânico, muito real e até físico, tanto que acordei assustada e impressionada com os detalhes e a clareza com que eu vi minha morte”, descreve a executiva de 38 anos.

O relato de Anna é parte de um inventário onírico da pandemia compilado por psicanalistas e pesquisadores de quatro universidades públicas brasileiras desde que a Organização Mundial da Saúde declarou a emergência sanitária mundial, há um ano.

O resultado da primeira parte da pesquisa – mencionada em uma reportagem de CLAUDIA em junho passado – está compilado no livro recém-lançado Sonhos Confinados: O Que Sonham os Brasileiros em Tempos de Pandemia (Autêntica).

O grupo coletou, até o momento, mais de 1,5 mil sonhos e pretende chegar a 3 mil (a recepção do material segue aberta, e qualquer um pode mandar o seu relato por escrito pelo perfil do Instagram @sonhosconfinados ou e-mail oniropolitica@gmail.com). “Queremos que esse inventário onírico, que funciona como ‘um sismógrafo da nossa vida psíquica’, fique disponível a pesquisadores que queiram entender os impactos na nossa vida interior deste momento traumático coletivo”, diz o psicanalista Gilson Iannini, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Na primeira etapa, os pesquisadores entraram em contato com 10% dos voluntários para refletir sobre o conteúdo com o sonhador. Anna foi uma delas. Após despertar do pesadelo descrito anteriormente, ela relatou ter associado a imagem do prédio distorcido aos objetos que se desmancham nas obras de Salvador Dalí, o pintor surrealista espanhol.

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O que era sólido e bem estruturado dissolveu-se como sua carreira, interrompida pela pandemia. A sensação de impotência, que pareceu tão real à executiva, simulava a falta de perspectiva frente às inúmeras incertezas que a Covid-19 trouxe à rotina e expôs, como o surrealismo, “a fragilidade do que chamamos comumente de ‘realidade’ ”, apontaram os pesquisadores.

“O que percebemos, como no relato de Anna, são sonhos muito angustiados em que ocorre um borramento das fronteiras entre o sonho e a realidade”, diz Iannini. “A realidade do que estamos vivendo se tornou tão surrealista como nossos sonhos”, completa.

Não à toa usamos com frequência os termos “surreal”, “inacreditável” e “pesadelo” para nos referir ao que ocorre no Brasil hoje, país com a pior gestão da pandemia do mundo, conforme o Instituto Lowy, com sede na Austrália, que analisou dados de quase 100 países.

Somos também o segundo em número de mortos, só atrás dos Estados Unidos, de acordo com o Painel Global da Covid-19, mantido pela norte-americana Universidade John Hopkins. Dar conta dessa situação-limite, minimizada no discurso oficial expresso na frase emblemática “E daí?” e muitas outras vezes depois, exige um esforço extra da cognição.

“Como não dispúnhamos de formas simbólicas nem de narrativas padrão ou de um repertório de imagens compartilhadas capazes de apreender tudo que se passava, nosso psiquismo teve que trabalhar mais. Processou dia e noite, sem parar, esse novo real. Os sonhos desempenham, nesse contexto, um papel decisivo em nossa saúde psíquica”, pontuam os autores na introdução de Sonhos Confinados.

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Para as mulheres, o isolamento social teve uma sobrecarga de sofrimento psíquico ainda mais intensa. Não à toa, 80% dos sonhos registrados foram delas. Segundo Carla Rodrigues, professora de filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que assina a obra com pesquisadores da UFMG, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e da Universidade de São Paulo, a maciça presença feminina na pesquisa representa pelo menos duas diferenças.

“Ocorreu uma substituição: se o espaço público ainda é difícil para as mulheres, o campo onírico, por ser livre, é mais habitável e acolhedor. Abraça as dificuldades de elaboração do trauma da pandemia, que incidiu de forma mais violenta sobre elas e as sobrecarregou mais do que aos homens. No Brasil, famílias que estavam acostumadas a delegar os cuidados domésticos, de idosos e dos filhos a cuidadoras e babás precisaram se reorganziar”, descreve Carla.

“Para nós, mulheres, a volta para a casa é um problema, já que ameaça a conquista do direito de habitar o espaço público”, explica. Dados sobre desigualdade de gênero em meio à pandemia da Fawcett Society, uma ONG inglesa especializada em direitos das mulheres, constatou que elas têm mais chances de perder horas de trabalho ou até o emprego em comparação aos homens. Nos Estados Unidos, em dezembro de 2020, as 140 mil vagas de emprego perdidas por causa da pandemia eram ocupadas por mulheres.

“Houve, pela via onírica, uma busca pela mãe para dar conta dessa atual sensação de desamparo
e insegurança extremas”

Gilson Iannini, psicanalista

 

Se na vigília elas foram as mais requisitadas para dar conta da exaustiva rotina pandêmica, nos sonhos também foram as protagonistas. Os pesquisadores compilaram, com a ajuda de um software, as palavras que apareceram com mais frequência nos relatos.

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Para a surpresa deles, não foi “vírus”, “morte” ou “pandemia”, mas “mãe” e “casa”. “Mãe é o paradigma do amparo, que assume na nossa sociedade a função do cuidar. Houve, pela via onírica, uma busca pela mãe para dar conta dessa atual sensação de desamparo e insegurança extremas”, revela o psicanalista Gilson Iannini.

Pano voa sobre montanhas
(Vizerskaya/Getty Images)

 

Bolsonaro até nos sonhos

A carência de proteção e segurança expressa nos sonhos não está apenas ligada ao vírus, mas à gestão da pandemia. O presidente Jair Bolsonaro e seus ministros apareceram com frequência na vida inconsciente dos brasileiros.

Como na obra Sonhos do Terceiro Reich, da jornalista alemã Charlotte Beradt, que constatou a participação assídua de Hitler nos sonhos dos alemães entre 1933 e 1939, e o estudo da psicoterapeuta Marta Crawford, que mapeou o ingresso de Donald Trump na cena onírica dos norte-americanos a partir de 2016, Bolsonaro invadiu nossa vida mais íntima.

“Fica claro que, ao trauma da pandemia, segue-se imediatamente a constatação de que o atual governo não tomaria medidas de proteção da população. Ausência de políticas econômicas, divergências na gestão do Ministério da Saúde e um negacionismo generalizado fazem com que se acrescente à experiência da pandemia, o trauma do desamparo oficializado. Assim, a invasão da política na cena onírica parece reproduzir o problema da invasão da política na cena traumática da pandemia”, analisa Carla. Hitler, Trump e Bolsonaro, conforme atestam as três pesquisas, são os políticos dos nossos pesadelos.

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Em um dos sonhos, uma mulher de 40 anos contou ter escutado a voz do presidente ecoando num carro de som. Bolsonaro incitava a população a se voltar contra um bispo da Igreja Católica que deveria morrer pelo fato de tê-lo criticado.

“Fiquei horrorizada com a fala dele, em choque pela violência. Eu me senti extremamente perdida e dividida entre essa sensação de terror e a preocupação com a saúde da minha mãe”, diz a voluntária, cuja mãe encontrava-se doente na época do pesadelo.

Em outro sonho, uma gaúcha associa o governo Bolsonaro ao de Hitler. Estava em uma loja de sapatos de nome alemão com mesas enfileiradas que pareciam reproduzir as filas de prisioneiros em campos de concentração nazista. Na véspera do pesadelo, ela assistira a um vídeo no qual um dos filhos do presidente descarregava um fuzil, e a imagem a chocou profundamente.

A situação de vertigem refletida nos sonhos dos brasileiros concentrou medos ancestrais e de catástrofe. Em um dos relatos, uma professora contou ter sonhado com o filho se perdendo em uma cidade grande. Ela o procurava e não encontrava. Após despertar, com uma sensação de angústia intensa, desabafou aos pesquisadores estar mal com a falta de perspectiva e a impossibilidade de fazer planos.

“O desencontro com o filho representava, em parte, esse amanhã incerto e difícil de ser imaginado”, diz a psicanalista Rose Gurski, professora da UFRGS e uma das coordenadoras do estudo. Outro voluntário sonhou com a cidade de sua infância totalmente destruída; em outro relato, uma jovem de 26 anos contou ter visto a cidade ser devastada por redemoinhos e os sobreviventes serem levados pelos ministros, por ordem de Bolsonaro – ela e a irmã sobreviveram ao serem alertadas por uma coruja enorme com cara e voz de mulher.

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“Os sonhos sempre são um pouco distópicos, mas muitas vezes eles também evocam nossas utopias de futuro. Pelos relatos que temos recebido, a distopia se mostra de forma clara, algo que costuma aparecer em momentos de grandes catástrofes”, diz Rose.

O cenário incerto do nosso cinema interno reforça o papel psíquico do sonho de decantar à noite o caos do dia a dia, um aspecto protetor. “Mas esse poder é limitado”, diz Gilson. “Parece estar havendo uma normalização, uma espécie de anestesia psíquica. Não quer dizer que o sofrimento ou a ansiedade sumiram; eles foram para outro lugar, viraram sintomas”, observa o psicanalista.

Se os sonhos dos primeiros quatro meses de pandemia eram angustiados, os mais recentes, que ainda passarão por análise mais profunda, são menos frequentes e menos vívidos. É um paradoxo: estamos na fase mais crítica da pandemia, mas nossa capacidade onírica parece ter banalizado a morte do outro.

Um dos aspectos mais curiosos é a palavra que irrompe nos sonhos de janeiro e fevereiro: pai. “‘Pai’ é aquele que franqueia o acesso do indivíduo ao mundo exterior, é a figura organizadora do que há fora de casa. Nas religiões, é a figura que tranquiliza; na política, um bom líder às vezes é reconhecido como um pai”, explica o psicanalista da UFMG. Freud sugere que os sonhos também são a realização disfarçada de um desejo inconsciente. Talvez, agora, eles estejam nos mostrando que estamos órfãos.

* Nome trocado a pedido da entrevistada

Estou com câncer de mama. E agora?

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