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Pesadelos na quarentena podem revelar respostas para a vida pós-pandemia

Cientistas tentam desvendar os medos e as angústias dos pesadelos da pandemia para achar respostas para a vida pós-quarentena

Por TEXTO Sílvia Lisboa e Pedro Nakamura COLABOROU Juliana Coin IMAGENS Pedro Jardim
Atualizado em 5 jun 2020, 10h00 - Publicado em 5 jun 2020, 10h00

São inúmeros os impactos da pandemia sobre nós. Uma descoberta recente revela que o novo coronavírus mexeu não só com o sono, mas com nossos sonhos também. Agora cientistas tentam desvendar no mundo onírico os medos, as angústias e as respostas para os desafios da vida pós-quarentena

 

“Estou no sítio da minha família com todos: pai, mãe, tias, minha avó, que já morreu. Em volta da piscina, nos sentamos em cadeiras de praia, como sempre fazíamos quando eu era criança. De repente, surgem muitas cobras, enormes, verdes. Elas estão por todos os lados. É difícil conseguir enxergá-las porque elas se confundem com a grama. Aos poucos, se aproximam. Entram na piscina, tocam nossos pés e uma pousa no colo da minha avó”, descreve a publicitária Fernanda Kraemer, 35 anos, de Porto Alegre. “Sinto um pavor que me aperta o peito. Não vejo de onde elas vêm, mas tomaram tudo. Não há o que eu possa fazer.” Elas são como um vírus.

O pesadelo de Fernanda tem características muito particulares, mas ela não está sozinha nas noites intranquilas. Uma busca pelas palavras “sonhei” e “coronavírus” no Twitter apresenta uma centena de posts com relatos sobre sonhos bizarros e pesadelos vívidos de brasileiros confinados há mais de dois meses por causa da crise da Covid-19. “Sonhei com o coronavírus (…) eu o visualizava em tamanho maior e o entendia. Ele me mostrava como funcionava. Acordei me questionando se esse vírus está dentro de mim e tentando se comunicar comigo”, descreveu uma usuária, que admitiu ter despertado angustiada. “Sonhei que a gente tinha que mastigar pétalas de rosa para evitar o contágio do coronavírus”, contou outra. “Tenho sonhado com ondas gigantes, que estou sendo perseguido por alguma coisa ou alguém, que estou cercado. Sinto uma sensação de agonia que vai crescendo”, compartilhou um estudante.

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A profusão de relatos, que invadiram as redes sociais e as sessões de terapia, chamou a atenção de pesquisadores. Pelo menos quatro grandes universidades públicas já estão envolvidas em mapear os pesadelos da pandemia para descobrir como a maior crise sanitária em um século está afetando a saúde mental dos brasileiros – e o que esses sonhos podem nos contar sobre esse período tão crucial como caótico na história do país e do mundo. “As teorias de sonhos mostram que eles cumprem uma função fisiológica de preparar o sujeito para desafios importantes no futuro”, explica a psiquiatra Natália Mota, pesquisadora do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Primeira brasileira indicada a um prêmio da Nature, a mais citada revista científica do mundo, Mota usou um software desenvolvido por ela para identificar sinais de sofrimento mental em relatos de pacientes por meio da análise de padrões de fala. Para esse novo estudo, reuniu as descrições de sonhos de 67 voluntários e os comparou com um banco de sonhos pré-pandemia. A diferença ficou evidente. “O resultado revela que os sonhos estão refletindo as mudanças no cotidiano das pessoas, como os novos hábitos de higiene e o medo de contrair a doença”, detalha. Os depoimentos após o início da pandemia exibem mais tristeza e raiva, com maior proporção de narrativas associadas às ideias de contaminação e limpeza.

(Pedro Jardim/CLAUDIA)

Médicos e psicólogos sabem há algum tempo que guerras e catástrofes provocam alterações no sono e pesadelos, como comprovam estudos feitos após o 11 de setembro nos Estados Unidos. Dependendo da exposição do indivíduo, ele pode inclusive desenvolver a síndrome do estresse pós-traumático. Nela, sonhos recorrentes são um dos sintomas mais comuns. “Estamos vivendo pelo menos duas situações de altíssimo estresse. É uma ameaça de morte por causa de um vírus altamente contagioso somada ao isolamento, o que agrava essa sensação e traz novos problemas”, atesta o neurologista Luciano Ribeiro, diretor da Associação Brasileira do Sono. Ele explica que, quando dormimos e entramos na fase do sono REM (sigla em inglês para rapid eye movement, ou movimento rápido dos olhos), áreas do nosso cérebro ligadas às emoções e à memória são ativadas enquanto a atividade do córtex pré-frontal, responsável pelo raciocínio e a lógica, diminui. Ou seja, nossa racionalidade se desliga e ficamos à mercê dos sentimentos que acumulamos durante o dia e que nesse momento fluem sem freios pela mente. A pandemia da Covid-19 não necessariamente aumenta a produção de sonhos, mas mexe com as emoções. Estamos vivendo algo que remonta ao nosso medo ancestral de morrer ou de perder alguém próximo. “O sonho é um oráculo probabilístico que originalmente, por milhões de anos, lidava com três variáveis: matar, não morrer e procriar. A ansiedade que o animal tem em uma floresta de não encontrar comida, ser atacado ou não ter uma parceira quase não existe no nosso mundo hoje”, detalha o neurocientista Sidarta Ribeiro, diretor do Instituto do Cérebro da UFRN. “Se você está com fome, vai a um restaurante; se não tem namorada, baixa o Tinder etc. Mas agora esse medo ancestral voltou, estamos temendo a morte”, conclui o autor de Oráculo da Noite: História e Ciência do Sonho (Companhia das Letras), lançado em 2019.

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Uma das maiores aliadas para interpretar nossos sonhos – e usá-los para ter respostas sobre questionamentos nossos e do mundo – é a psicanálise. Não à toa, um dos grandes estudos que estão sendo feitos sobre os sonhos da pandemia é capitaneado por psicanalistas de três universidades públicas, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Para Freud, o pai da teoria, os sonhos são a janela para uma parte oculta da mente: o inconsciente. “Carregam uma percepção de elementos que o sujeito não sabe que sabe. Podem trazer percepções e compreensões que lancem novos sentidos ao dia a dia”, diz a psicanalista Cláudia Perrone, uma das coordenadoras da pesquisa.

“Os sonhos podem ser pensados como um sismógrafo do tecido social. Em períodos de negacionismo, a narrativa deles abre possibilidades para que algo novo aconteça”

Rose Gurski, psicanalista

 

A própria psicanálise teve origem nos sonhos de Freud. Após noites sonhando com familiares, colegas, pacientes e memórias traumáticas de sua infância, o neurologista percebeu que as imagens escondiam algo profundo sobre a mente humana e concebeu a obra seminal A Interpretação dos Sonhos, publicada no final do século 19. “Eles funcionam como proteção psicológica e atenuam os efeitos de situações críticas. Com cenas parecidas com alucinações, permitem identificar a origem de traumas e das angústias que causam”, afirma a professora Rose Gurski, da UFRGS, uma das pesquisadoras do estudo.

Para Fernanda Kraemer, o medo do coronavírus apareceu durante o sono em forma de cobras. “Não é só na cena do sítio da minha família. Vou entrevistar uma pessoa para uma vaga de estágio. No final da conversa, ela mostra que traz consigo uma cobra numa caixa de papelão. Depois, vou para a faculdade e lá surgem mais cobras. Vou para casa, caminhando, e no percurso as cobras me seguem. Aparecem rastejantes, enrodilhadas, vermelhas, pretas, brancas”, relata. Fernanda, que é também estudante de psicologia, logo compreendeu que os pesadelos representavam o medo e a impotência diante da pandemia. “Os bichos e o vírus surgem do nada, em todos os lugares. Isso faz com que sejam especialmente assustadores”, diz. “Nos sonhos, tento expulsar as cobras, mas é inútil”, resigna-se. Essa sensação de estar de mãos atadas também invadiu as noites da jornalista Natália Collor Aguiar, 23 anos. “Eu andava na rua, de máscara, e encontrava um casal. Tentava manter distância, mas os dois iam seduzindo e drogando as pessoas no caminho. Era um sequestro em massa. Eles queriam matar todo mundo junto, e eu descobria o plano deles enquanto fugia, porém não conseguia tirar as outras pessoas da situação”, conta ela. Nos últimos meses, seus sonhos viraram o tema principal da terapia.

Resolvedor de problemas

De certa forma, os sonhos preparam os indivíduos para lidar com situações inéditas e difíceis. A psicanalista Claudia Perrone diz que o material onírico, que opera no inconsciente, articula diferentes tempos, elaborando o passado no presente e, por meio dessa operação, produz algo novo para o futuro. Esse aspecto premonitório dos sonhos talvez seja um dos mais intrigantes – e o que pode nos mostrar caminhos para além da pandemia. Sonhos do Terceiro Reich, um clássico da jornalista Charlotte Beradt, é uma compilação de sonhos de alemães de diferentes classes sociais durante o nazismo e hoje serve de referência para os estudos da pandemia da Covid-19. A obra permite perceber que os alemães anteciparam os horrores da Segunda Guerra e o controle despótico de Hitler. Há o sonho de um médico em que todas as casas da Alemanha deixam de ter paredes por decreto do governo e o de uma garota que tinha pesadelos com uma máquina de leitura de pensamentos criada pelos nazistas. “Dá para fazer história cultural premonitória baseada em sonhos, porque eles são um grande integrador de impressões. Pegam tudo o que você percebeu, sobretudo inconscientemente, e transformam numa imagem, numa metáfora”, resume Sidarta Ribeiro. “Em diferentes culturas, sonhos serviram para descobrir o que vai acontecer no futuro e também para resolver problemas”, detalha.

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(Pedro Jardim/CLAUDIA)

Os especialistas acreditam que os sonhos da pandemia podem inclusive nos apontar caminhos. Não só para cada um dos sonhadores, mas para resolver os grandes desafios que a humanidade tem agora. O fundador da psicologia analítica, Carl Jung, acreditava que a psique humana possuía uma camada mais profunda e universal, o inconsciente coletivo, também acessível pela via onírica, que conteria conteúdos idênticos e atemporais para todos, conhecidos como arquétipos. Um exemplo é a ideia de divindade, uma representação que todos os povos conhecem por meio de diferentes entidades, seres e imagens. “Para Jung, existem sonhos maiores, arquetípicos, que nos informam dos acontecimentos em um nível mais amplo e coletivo, e isso vem em uma linguagem metafórica, simbólica, que precisamos aprender a ler”, explica a psicóloga Joyce Werres, diretora do Instituto Junguiano do Rio Grande do Sul. Na interpretação de Joyce, a angústia coletiva que a maioria está vivendo com a crise do novo coronavírus, traduzida em pesadelos, é uma espécie de “correção” de rota: o mundo precisou parar e refletir como podemos cuidar mais do outro. “Os sonhos podem ser pensados como um sismógrafo do tecido social. Em períodos de negacionismo, a narrativa deles abre possibilidades para que algo novo aconteça”, acredita a psicanalista Rose Gurski. “Alguns dizem que os sonhos são como um cinema privado do sujeito”, completa.

Em vez de afastar os pesadelos, o ideal é conversar sobre eles com amigos e terapeutas, sem tentar evitá-los. Sidarta sugere que as pessoas façam um esforço, inclusive, para retomar a arte de sonhar. “Antes de dormir, mentalize: ‘Hoje quero sonhar com uma solução para o problema que não estou conseguindo resolver’. Ao despertar, escreva o relato”, orienta o neurocientista. Nosso cinema privado pode ter as respostas que tanto buscamos atualmente.

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