Erika Hilton: radiante empoderamento coletivo
Vivendo o que considera ser sua "renaissance", Erika Hilton se estabelece como um nome em ascensão na política, além de ícone fashion e modelo de beleza
Com as pernas longas cruzadas junto ao corpo, Erika Hilton se ajeita na cadeira, jogando os cabelos soltos para trás do assento, enquanto a beauty artist Marcela Hanna retira as extensões de fios usados no shooting. “Vou ser obrigada a gastar mais dinheiro comprando cabelo, porque não vou conseguir viver sem essa extensão!”, exclama ela, rindo.
A essa altura, Erika havia trocado a saia de látex sustentável justa e os saltos altíssimos que a transformaram na “diva pop” deste ensaio por uma combinação clássica e cool, com pantalona jeans, blusa cinza de gola alta, blazer branco e tênis. Mas quer na pele da deputada federal adepta de “uma boa alfaiataria” — “porque a gente tem de saber o que vestir em determinadas ocasiões”— ou na da jovem que gosta de badalar de “Nike, calça larga e cropped”, uma coisa não muda: Erika está sempre elegante. Na verdade, mais que isso. Erika é radiante.
“Vivo o meu instante de glória”, acredita. “Como Beyoncé, de quem sou fã, me sinto numa renaissance [título da turnê e do álbum mais recente da cantora]. Esse é o meu empoderamento feminino, mas também um momento de empoderamento coletivo, que acontece através do meu corpo, da minha fala, da minha história. Com a minha imagem, encorajo e inspiro outras mulheres, e não se trata de um achismo. As pessoas me falam isso pelas redes sociais ou quando me encontram. Minha figura representa uma intersecção de beleza, juventude, moda, glamour e ativismo. E a política, amiga, é difícil. Brasília é um lugar sufocante”, diz ela.
Aos 30 anos completados em dezembro, essa sagitariana frequenta há cinco meses o planalto central. Em outubro de 2022, tornou-se a primeira travesti eleita deputada federal por São Paulo. Desde então, acumula episódios históricos: foi a primeira mulher trans a presidir uma sessão da Câmara dos Deputados, é vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos e está entre integrantes da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI), que apura os atos golpistas de 8 de janeiro.
Seu brilho, no entanto, não se restringe às instituições. “Se não estivesse na política, poderia ser modelo e acho que me sairia bem também como influenciadora.” Só neste último ano, Erika estreou como musa do Carnaval carioca, no camarote da Arara, na Marquês de Sapucaí; atravessou a passarela da São Paulo Fashion Week, desfilando para, entre tantas grifes, a LED com uma faixa presidencial; e tornou-se estrela de ensaios de moda.
Num deles, durante uma sessão de fotos para uma campanha da grife Paula Raia — que a vestiu para a posse no Congresso Nacional —, Erika conheceu seu novo amor, o fotógrafo e diretor Daniel Zezza. “Ele acendeu um fogo em mim. Daniel e eu estamos juntos há sete meses, mas parece mais tempo. Ele consegue me captar de uma forma muito linda.”
Seja lá em qual versão, uma coisa é certa: Erika sempre será uma ativista. “Antes de estar nas instituições, fundei um cursinho para travestis e transexuais, e militei no movimento estudantil. Sou um ser político porque, para mim, essa é uma maneira de compreendermos nossa existência e qual é nossa contribuição para a sociedade. Não importa a área em que esteja, é preciso provocar, questionar e instigar a transformação.”
Paulista nascida em Franco da Rocha, Erika elegeu-se vereadora em 2020. “Tenho saudades da Câmara, que é um lugar vivo, orgânico, onde você tem contato com as pessoas e constrói frentes não só com os colegas da esquerda, mas com os da direita também. Foi ali que aprendi a ser republicana, a impor o desejo dos que votaram e me levaram até lá, porque não quero ser uma parlamentar do espetáculo de TikTok. Quero deixar um legado”, afirma.
Quanto a isso, não precisa se preocupar. Os acontecimentos que antecederam a sua primeira eleição, quando tornou-se a mulher mais votada do país, com 50 mil votos, estão registrados em Corpolítica, do diretor e roteirista Pedro Henrique França — coprodutor do projeto, ao lado de Marco Pigossi. Exibido em festivais no Brasil e no exterior, e escolhido Melhor Documentário no Festival do Rio, o filme entrou em cartaz em 8 de junho, dias antes da Parada do Orgulho LGBTQIAP+, que terá a participação de Erika.
No longa, Pedro acompanha quatro representantes da comunidade que concorreram ao pleito municipal de 2020: Erika Hilton e Mônica Benício, eleitas; e Andréa Bak e William de Lucca, que não alcançaram votos suficientes. “Conhecia muito pouco a Erika quando iniciamos o documentário”, lembra Pedro. “Ela tinha cerca de 30 mil seguidores no Instagram [hoje são 655 mil] e estava começando a despontar como liderança. Achava que ela tinha chance de vencer, mas nem ela nem ninguém esperava que seria uma eleição dessa magnitude. Erika superou todas as expectativas. Ela representa um novo capítulo da política brasileira em muitas camadas, e acompanhar esse processo é um privilégio imenso.”
Menina de família
Ainda que emocionem as cenas que flagram Erika ao descobrir ser a vereadora recordista de votos, nada se compara aos depoimentos de familiares, em especial o de sua mãe, Rosemeire de Jesus Santos. “Minha mãe é a mulher que faz meus olhos brilharem porque é diferente de todas as outras”, diz Erika. “Ela é belíssima, e sempre foi vaidosa, bem arrumada, usou diversos cabelos, tem um guarda-roupa enorme, com muitos sapatos, perfumes… Tem uma sensualidade só dela.”
Primogênita de três irmãs — Maria Eduarda e Maria Clara são as mais novas —, Erika cresceu como a “filhinha da mamãe”, centro das atenções de um clã de mulheres. “Sempre fui inteligente e amável, mas também era terrível: falastrona, curiosa, mandona, gostava de dar palpite na conversa dos adultos”, diz ela.
Entre as boas recordações, Erika se lembra que, aos 5 anos, disse à avó que queria ser presidente da República. Depois, sob a influência da igreja, que frequentava com a mãe, criou seu próprio “culto”, no quintal de sua casa, onde organizava procissões, expulsava demônios e falava em línguas. “Ao mesmo tempo, me sentia uma diva pop: colocava uma toalha na cabeça e saia batendo cabelo e dizendo que era a [atriz] Paola Bracho, da novela A Usurpadora. Desde a infância, sou sonhadora, feliz e brincalhona”, conta.
Nesse ambiente superprotegido, Erika foi uma criança livre. “Desconheço o que é fazer transição de gênero porque, para mim, isso ocorre com pessoas que têm inconformidade com a própria imagem, desconforto com as roupas. Eu nunca tive isso. Minha mãe me educou como uma menina e eu sempre exerci minha feminilidade. Roupas e corte de cabelo não significavam nada para mim, porque sempre soube que era menina, e ninguém falou o contrário.”
Essa harmonia desfez-se na adolescência quando, sob a influência de uma igreja que Erika descreve como “fundamentalista”, sua mãe passou a não aceitar o modo como ela se comportava e a colocou para fora de casa. Aos 14 anos, foi viver nas ruas, onde se tornou garota de programa. Com uma personalidade tão cativante quanto a da filha, Rosemeire trata desse período com pesar. Hoje, diz, faria diferente. “Se eu pudesse devolver a Erika para dentro do meu útero, colocar ela para fora e começar tudo de novo, ela não passaria por nada do que passou”, afirma no documentário Corpolítica.
Aprendizados
De Rosemeire, Erika não carrega mágoa e tampouco acha que lhe deve perdão. “Minha mãe foi seduzida pelo fundamentalismo religioso e se deixou levar pelo medo de que eu fosse para o inferno, morresse, me contaminasse com HIV ou me tornasse uma drogada, que eram as coisas que a igreja dizia que iam acontecer”, afirma. “Mesmo no fundo do poço, sem teto, sem comida, sem ninguém, nunca me convenci de que a rua, a prostituição e a miséria fossem o meu fim, porque fui uma criança amada, que recebeu carinho e uma base familiar. Nunca deixei de sonhar.”
Erika tirou dessa experiência os artifícios para suportar o que ela descreve como “os horrores da política”. Um deles causou indignação nacional, no último 8 de março, quando o deputado federal de extrema-direita Nikolas Ferreira (PL/MG) subiu à tribuna usando uma peruca de cabelos longos e loiros, e realizou um discurso transfóbico. “Nesses cinco meses de Congresso, aprendi que vou adoecer bastante”, diz Erika, que ficou um mês afastada de seu cargo após a fala de Nikolas na Câmara.
Quando o corpo se ressente, além da terapia, Erika dedica-se ao autocuidado: tem prazer em tratar da pele e dos cabelos, de ouvir música e praticar exercícios. Outra paixão são as compras, em especial de bolsas e sapatos. Entre suas marcas favoritas estão Versace, Fendi, Louis Vuitton e Coperni. Os encontros caseiros também são um santo remédio. “Adoro os churrascos na casa da tia Lu, uma mulher que cuidou de mim e que eu amo. Minha família é divertida e brincalhona. Povo preto, né?”, afirma.
Assim, não se amendronta diante dos desafios do Congresso. “Sou firme, mas não me perco na dureza da política nem permito que ela sufoque meu élan e vontade de viver.” Em meio à polarização, desenvolve estratégias para colocar seu programa de pé. “A extrema-direita faz com que algumas pautas gerem pânico moral, o que levou ao movimento anti-trans não só no Brasil, mas em outros países”, explica.
“Compreendi que precisamos sensibilizar as pessoas, combater as fake news e mostrar que não se trata de ferir princípios religiosos. É sobre dignidade humana.” Ela trabalha temas voltados ao enfrentamento da fome e crise climática e a empregabilidade de pessoas em situação de rua que incluem a comunidade LGBTQIAP+, e também perpassam questões raciais, de gênero, migrantes etc.
Erika sabe que quatro anos não serão suficientes para colocar tudo em prática. Por isso, vislumbra a reeleição, e considera a possibilidade de se candidatar ao Senado no futuro, mas sem ansiedade. “Nunca pensei que fosse envelhecer, porque a expectativa de vida da minha população é de 30 a 35 anos. Nunca me vi velha e não conheci mulheres iguais a mim com mais idade. Quero construir essa possibilidade para a minha e outras gerações. E quero ser uma velha bonita, uma perua, que as meninas olhem e pensem: ‘nós também podemos chegar lá.’”
- Texto: Adriana Ferreira Silva @driferreirasilva_
- Fotos: Larissa Zaidan @larizaidan
- Edição de moda: Bruno Pimentel @brunoptl
- Produção de moda: Juny Martins @junymartinsb
- Camareira: Íris Maurícia
- Beleza: Marcela Hanna @marcelahannaf
- Concepção visual: Eduardo Pignata @eduardopignata
- Assistente de foto: Ênio Cesar @enio.cesar
- Retoucher: Paulo Marinuzzi @paulomarinuzzi
- Luz: Locall @locall_cine_tv
- Locação: Casa Lúdica @casaludicasp