Sempre é tempo de desfrutar
Para nossa editora e colunista Liliane Prata, nossas conquistas, mesmo que antigas, merecem ser saboreadas no nosso momento presente
Chega pelo correio a segunda via da minha carteira de motorista, que eu tinha perdido. Abro o envelope e, depois de verificar rapidamente se os dados estão corretos e julgar minha foto 3X4 – é sempre assim: quando o cabelo fica bom, o rosto fica esquisito, ou vice-versa –, deixo o documento na mesa da sala e vou fazer outra coisa.
Então paro no corredor.
E volto para a sala, e pego o documento novamente, e me lembro do ano de 1999, quando passar no exame de direção era um dos meus maiores objetivos nesta vida de meu Deus. Na verdade, era quase uma obsessão e, como toda obsessão, vinha junto com medo. Meu pai não dirige e, por causa disso, eu temia não conseguir dirigir (sim, sem sentido, eu sei). Além do mais, minhas amigas e meus dates nunca tinham carro, e meu pai já tinha falado que me daria um. Foi muito frustrante não passar no meu primeiro exame, e não segurei as lágrimas de alegria quando finalmente passei na…
… segunda tentativa? Ou terceira? Segunda, né? Não lembro. Não lembro nem o local do primeiro exame, aquele de onde saí arrasada.
Hoje, dirigir é algo que faço tão no automático, tão sem pensar. Em 1999, eu adorava me imaginar entrando no meu próprio carro, escolhendo uma música legal, botando meus óculos escuros (risos)… Eram imagens tão doces para mim. Agora, por mais que eu goste de dirigir, o hábito foi tão incorporado à minha rotina que é difícil enxergá-lo como um sonho que se tornou realidade.
Nada de mais. O tempo vai passando e vamos atualizando nossos sonhos. Comemoramos com a família e os amigos quando acabamos de realizar nossas conquistas, curtimos os primeiros dias de vida nova… E então nos concentramos nos próximos projetos. E nos próximos, e nos próximos. Certo?
Certo. Mas, pelo menos de vez em quando, é prazeroso lembrar. E não dirigir olhando só para frente, mas sorrindo com a imagem vista pelo retrovisor.
É prazeroso entrar no meu carro, botar meus óculos escuros, escolher uma música gostosa e dar a partida não com automatismo, mas com a sensação de sonho realizado. É mais que prazeroso: é essencial, ao menos se fazemos questão de olhar com carinho e gratidão o tempo, as experiências que vivenciamos e as nossas conquistas.
Entrar em casa, que até outro dia estava com um monte de caixas no chão e latas de tinta espalhadas e fiação a ser instalada, e ficar em pé diante da porta, admirando o cenário por alguns instantes, em vez de irromper nele e dar logo o telefonema que precisamos dar, pagar a conta que precisamos pagar, guardar as compras.
Olhar o marido que deu tanto trabalho para encontrar (risos parte dois) e lembrar não só de perguntar se a dor nas costas passou/como foi a reunião/ se ele lembrou de falar com a irmã… Mas lembrar de quando você ligou para a sua amiga falando: putz, tô bem animada com esse cara. Lembrar como foi bom anos atrás, quando você se deu conta de que esse encontro de vocês dois não havia sido um encontro qualquer.
Olhar seu trabalho como no dia da contratação, quando você pulou de alegria e abriu um vinho especial à noite.
Olhar seu filho dormindo, tão bem acomodado no bercinho que você escolheu e seu marido parafusou. Por semanas, o berço ficou vazio e sem vida, esperando um bebê chegar e se deitar nele. E não é que o bebê chegou? E agora está ali, deitado nele?
Olhar não só para os nossos planos, mas para a nossa vida atual, do jeitinho que ela é, com uma serenidade alegre. Com paz. Com gratidão. Pelo menos às vezes. De preferência, muitas vezes.
(Vira e mexe, fico com os olhos marejados observando o papel de parede do quarto da minha filha enquanto ela dorme. Eu tenho uma coisa com esse papel de parede. Eu me lembro tão bem de como foi descobri-lo entre as centenas de opções da loja, há cinco anos. Lembro do rolo guardado no armário, do funcionário que veio colá-lo, da minha mãe falando que não sabia se tinha gostado dele – tudo quando a Valentina estava na minha barriga. De repente, aqui estou eu, vendo a minha filha enorme, dormindo, cabeceira da cama encostada no papel de parede.)
Alguns sonhos são deixados para trás, outros são realizados e é vida que segue. Nada mais comum e esperado do que atualizar nossos objetivos ao longo do tempo, planejando os próximos passos, cedendo espaço a novos desejos. Mas é maravilhoso quando, além de conquistar, a gente consegue desfrutar nossas conquistas. Quando a gente encontra, no meio do movimento incessante dos nossos dias, algumas pausas para contemplar o que já mereceu nossa preocupação, nossa energia, quem sabe algumas noites de sono… E hoje merece, ao menos por alguns instantes, nosso olhar mais terno.
Liliane Prata é editora de CLAUDIA e escreve aqui no site toda quarta-feira. Para falar com ela, clique aqui