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Silvia Federici: “Vejo uma oportunidade de mudar a situação das mulheres”

Lançando mais um livro, a filósofa e feminista fala a CLAUDIA sobre os impactos da pandemia e a conscientização que pode levar à transformação

Por Isabella D'Ercole Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
21 mar 2021, 10h00
Silvia é uma mulher de cabelos curtos e grisalhos. Ela está sorrindo para a foto num cenário verde, de natureza.
 (Artur Renzo/Divulgação)
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Além disso, há dias eu vinha ansiosa pela entrevista com uma das grandes ativistas pelo movimento de mulheres (com 79 anos e produzindo), referência para mim. Mas assim que a câmera me mostrou o cenário de uma sala com paredes brancas, teto escuro e muitos livros e obras de arte espalhados e Silvia bem no centro, usando um lenço vermelho e roxo, relaxei.

Tem encontros que fazem isso com a gente, reenergizam. Fiquei com vontade de ser amiga de Silvia, de frequentar sua casa para continuar o papo, compartilhar opiniões sobre os dados que ela analisa há anos e que foram, por séculos, ignorados por historiadores, filósofos e antropólogos.

Autora de Calibã e a Bruxa e O Ponto Zero da Revolução (ambos da editora Elefante), Silvia lança agora, pela Boitempo, O Patriarcado do Salário, em que faz uma análise de como a baixa remuneração ou a falta dela em trabalhos realizados por mulheres tem um papel fundamental na consolidação do capitalismo. Apesar de suas teses serem duras ao revelarem as artimanhas para manter ativo o projeto consciente de opressão feminina, Silvia é carinhosa e apaixonada, capaz de inflamar qualquer ouvinte a juntar-se à luta.

Você ressalta em suas obras o perigo de limitar o conhecimento a uma parcela da população e de como é um risco que a juventude não tenha um senso histórico de um passado. Essa descrição me remete ao Brasil atual pelos nossos problemas com educação e também a desvalorização dos povos originários. Como isso afeta o movimento feminista?

Uma parte importante da luta é reconstruir a memória coletiva. Para entender o presente, devemos olhar para trás. Cada geração fará perguntas diferentes ao passado. Nos anos 1970, por exemplo, entendemos que a história das mulheres havia sido escrita por homens e passamos a nos reapropriar da nossa trajetória.

Descobrimos a caça às bruxas, um movimento que torturou e matou milhares de mulheres e havia sido estudado por pouquíssimos historiadores. Isso foi importante porque traçamos a relação entre essa perseguição e a divisão sexual do trabalho, a subordinação de mulheres na criação de uma nova ordem patriarcal e até com o levante violento contra elas hoje.

Também é fundamental olhar para o passado porque devemos prestar nossa solidariedade não só aos vivos, mas a quem já se foi. Somos as vozes e os olhos daqueles que não estão aqui, mas contribuíram com a nossa jornada. Nos últimos anos, junto com mulheres da Espanha e do Equador, temos feito essa visita ao passado, revirando arquivos para elucidar os acontecimentos atuais.

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Silvia é uma mulher de cabelos curtos e grisalhos. Ela está sorrindo para a foto num cenário de livraria, enquanto autografa livros
(Marina Valeriano/Divulgação)

A pandemia afetou principalmente as mulheres, tirou emprego e renda, levou ao acúmulo de serviço em casa e nos cuidados dos filhos e idosos. Potencializou o trabalho não-remunerado, que você aponta como um grave problema na situação feminina. Como enxerga as consequências dessa crise?

A Covid-19 intensificou e deixou mais dramática uma crise que já existia. Mas eu enxergo como uma possibilidade de virada e uma oportunidade para o movimento feminista falar da questão do trabalho doméstico. Não estou dizendo que há uma solução, mas precisa ser discutido.

Muito investimento hoje vai para as cadeias, a polícia, as armas. Quanto vai para mudar a condição feminina? Dividir as tarefas com os homens é uma excelente ideia, mas não é o suficiente.

Essa é uma questão de dar mais tempo às mulheres, de se reapropriar de recursos para causar a transformação. Um debate amplo, em diversos locais, pode fazer surgir estratégias diferentes, algo interessante para a alteração social.

Você acha que é uma oportunidade de expandir o alcance de discursos feministas e falar com mais mulheres?

Tem que ser. Mulheres estão em casa fazendo home office, cuidando de crianças porque as escolas estão fechadas. Outras são trabalhadoras essenciais e estão correndo riscos nas ruas. Ainda há o movimento das trabalhadoras domésticas, absolutamente desvalorizadas.

As mulheres não ganham dinheiro para pagar creche ou babá e isso nem seria a solução final. Estamos sendo empurradas de volta pra casa. Não se trata só dessa crise, pois não sabemos quando a Covid-19 vai passar, se vai passar ou se teremos outra pandemia.

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Mas precisamos abordar a questão da desigualdade, porque ficou provado que há agravantes na situação de algumas pessoas. A maioria dos mortos nos Estados Unidos são pessoas vulneráveis que têm imunidade baixa, nasceram num ar poluído, vivem em lugares sem investimento em sistema sanitário, consomem comida que não tem nutrientes, porque o solo está fraco e cheio de compostos químicos.

“Vivemos numa sociedade que tenta, o tempo todo, nos colocar uns contra os outros. Temos que brigar contra essa divisão”

 

Da última vez que você veio ao Brasil, em 2019, deu dezenas de entrevistas, foi a palestras, estava sempre tão disposta. Na pandemia, escreveu mais um livro. Como faz para manter o espírito de luta sem desanimar?

Eu também estou exausta. Faço muito trabalho doméstico, porque meu parceiro está com problemas de saúde. Nossa divisão não é a mesma de antes. Eu me levanto às 6 e deito às 2 da manhã.

Mas trabalho com um grupo de mulheres com quem tenho relações afetivas muito fortes. As que moram aqui perto, me trazem comida sempre. E, ao mesmo tempo em que meu trabalho exige esforço, também me dá energia. Eu entro numa entrevista esgotada e saio renovada, porque é revitalizante falar com mulheres que querem causar mudanças.

Em Calibã e a Bruxa, você fala que as caças às bruxas continuam hoje e não só na perseguição de curandeiros e pessoas de certas religiões e culturas, mas também na perseguição de mulheres que representam a resistência. A violência contra a mulher é uma tentativa de manter o sistema inalterado?

Sempre vejo a violência como institucional, mesmo se ela é doméstica, individual. Bater em mulheres não seria tão comum se o governo não tolerasse. Exigiu muita luta feminista para que ficasse claro que aquilo era uma agressão a uma pessoa. As desculpas eram várias. O homem era apaixonado, estava irritado.

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Após análise, concluiu-se que era suportada essa violência porque era funcional para a organização do trabalho doméstico, era uma forma de manter a disciplina. Em casa, as mulheres não alcançam o governo, o sistema capitalista; esse acesso fica restrito apenas através do marido. Não podemos olhar só para a violência física.

Quando um governo, como o de Bolsonaro, dá luz verde para corporações destruírem a terra e as fontes de água, isso é uma agressão. Ou quando cortam verba da saúde pública, das creches e cuidados com idosos. As pessoas podem ser mortas de muitas formas, nem sempre elas são óbvias. Colocar a vida em perigo é sempre uma violência.

Nós temos diversos movimentos de mulheres no Brasil e estão muito divididos. Você fala muito sobre como a cooperação é essencial para a mudança. Como unimos essas falas dissonantes?

Vivemos numa sociedade que tenta, o tempo todo, nos colocar uns contra os outros. Quando aprovam uma reforma que beneficia só um setor, é proposital, por isso nos afasta mais. O que precisamos fazer é mostrar que há um padrão repetitivo de exploração e interesse. E reafirmar nossos interesses em comum, apesar das diferenças.

Temos que brigar contra essa divisão e isso acontece quando nos dispomos a falar de racismo, gênero; quando lutamos por reformas que empoderam todos, sobem a régua para todo mundo.

A participação dos homens no feminismo é bem-vinda, na sua opinião?

Eu acho bom os homens quererem ser feministas. Precisam entender, contudo que, se quiserem trabalhar com organizações de mulheres, terão que aceitar as condições impostas por elas. Não é função das mulheres ensinar sobre feminismo, aliás, é um desperdício de tempo e energia. Eles que precisam procurar se informar. Nós ensinamos através dos nossos atos, dando o exemplo.

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A pandemia atrasa ou adianta uma revolução contra o sistema?

Essa é uma boa pergunta, mas eu não tenho a resposta. Eu espero que seja um momento de virada, mas sei que o capitalismo aprendeu a usar a crise para seus propósitos, para fazer mudanças de seu interesse.

Ao mesmo tempo, a Covid-19 serviu para alguns processos de conscientização. Expusemos para o mundo que o Jeff Bezos se tornou trilionário em um país com cada vez mais pessoas passando fome e vivendo nas ruas.

Nosso sistema de saúde virou notícia porque faltavam equipamentos corretos. No início da pandemia, algumas enfermeiras usaram sacos plásticos para se proteger. Isso é um escândalo. Muitas mortes poderiam ter sido evitadas. Não foi só a intensidade da doença que definiu nossa situação, mas a inadequação do sistema. As condições preexistentes não estavam no corpo, mas no sistema social.

No seu novo livro, há um parágrafo chamado “A revolução começa em casa”. Como o impacto do que estamos vivendo vai mudar a forma das futuras gerações lutar por direitos?

Aprendemos muito em casa. Eu me lembro de observar minha mãe e absorver coisas positivas e negativas. É o primeiro contato que você tem com questões de gênero e de divisão de trabalho. O que a juventude de agora está aprendendo é que o sistema atual é insustentável.

Não dá para mantermos essas horas de trabalho, é pior do que na Revolução Industrial. Espero que, ao ver isso, eles se comprometam a mudar e isso começa com escolhas diárias. Combatemos o sistema em decisões como consumir de pequenos negócios em vez de contribuir com essas corporações enormes, que criam impérios e controlam nosso tempo, espaço e corpo, que ganham poderes ditatoriais.

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Você faz parte do movimento feminista há muitos anos e já viu diversas organizações e momentos diferentes. Como analisa o atual?

Eu me sinto muito encorajada ao ver esse movimento novo que vem se desenvolvendo na América Latina. Há muita força nas organizações de mulheres da Argentina e do Chile, por exemplo.

E é um feminismo que pensa de forma mais ampla nas questões de trabalho, mostrando como isso se reflete no corpo, na casa, questionando o colonialismo, o capitalismo, as divisões raciais, a perseguição a populações nativas, as ameaças ao meio ambiente. É muito forte. Recomendo muito o livro da Verénica Gago, A Potência Feminista, Ou O Desejo de Transformar Tudo.

Leia as matérias do nosso especial de março:

Neste mês de março, celebremos as mulheres

Depoimentos de leitoras e celebridades sobre ser mulher

Feministas de várias gerações contam como renovam as forças para lutar

Jovens revelam as dificuldade de continuar lutas de antepassados em uma nova realidade

Mulheres que ergueram outras mulheres na carreira

Os homens precisam escutar mulheres, ler mulheres, assistir filmes de mulheres – e apoiá-las

Como feministas encontraram nas suas redes apoio e acolhimento através dos tempo

 

Como conviver com endometriose

 

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