Resenha do filme ‘Paloma’, a mulher mais feliz do sertão
Filme que conta a história real de mulher trans que sonha em casar na igreja estreia no 'streaming'
Paloma já tem um namorido, tem a casa numa cidadezinha do sertão nordestino, tem uma filha (cuja maternidade ela divide com outra mulher). E Paloma quer mais. Ela quer casar, e quer casar na igreja, como manda a tradição. A agricultora negra e analfabeta, muito romântica, ela sonha com vestido branco, véu e grinalda, tudo a que tem direito. Ou deveria ter. Apesar de católica fiel, com altar de santos em casa e tudo, como não poderia deixar de ser, Paloma é uma mulher trans. E a Igreja de sua fé não reconhece a existência de pessoas como ela, muito menos a aliança de seu amor em sagrado matrimônio.
Por mais que o padre de sua paróquia tenha boa vontade e tente ser acolhedor, não tem jeito: só o Papa pode mudar as regras. E isso não a desanima: Paloma continua economizando seu suado dinheirinho, faz bicos como cabeleireira e, se for preciso, é com o Papa mesmo que ela vai falar. “Eu vou ser a mulher mais feliz do sertão”, diz ela, com sorriso largo, antevendo a alegria do sonho realizado.
É essa história que se desdobra em Paloma, filme de Marcelo Gomes (diretor de Cinema, Aspirina e Urubus), que inspirou-se na história real que leu num jornal sobre a ira que uma mulher trans despertou numa pequena cidade sertaneja ao decidir se casar como manda a lei de Deus. O filme, que estreou no Festival Mix Brasil, já está disponível no Globoplay, após vencer o principal prêmio do Festival do Rio, em outubro, onde a atriz Kika Sena fez história ao tornar-se a primeira mulher trans a ganhar como melhor atriz.
Desde a cena de abertura, na qual aparece totalmente nua, banhando-se, Kika traduz e transmite, na pele de Paloma, todas as nuances dessa mãe trabalhadora, cumpridora de seus deveres, dos mais rotineiros aos espirituais, que se olha no espelho e se enxerga como o que é: uma mãe de família, uma mulher que ama e é amada, como outra qualquer.
Quando não está trabalhando como peã de fazenda, ela passa a maior parte do seu tempo cuidando da filha, de 7 anos, trocando carinhos com seu amado e conversando com suas amigas. Essa é sua família, um microcosmos no qual se sente segura e validada. E, apesar do desconhecimento da relação por parte da família do seu companheiro e de que ele não faça questão de torná-la pública para os próprios amigos e colegas de trabalho, o casal é feliz.
A sensação é de que Paloma é “acolhida” em sua pequena cidade. Ela faz até mesmo os penteados de casamento das noivas locais (essas, sim, autorizadas a receber a bênção no altar). Mas a dureza da realidade sempre está à espreita. Das risadas e comentários transfóbicos que ouve nas ruas até o motorista de caminhão que lhe dá carona e se exibe na beira da estrada ao seu lado —ele irá estuprá-la?—, os perigos do país que mais mata pessoas LGBTQIAP+ no mundo vão escalando até uma tragédia. Mas Paloma não desiste do seu sonho. Pelo contrário. É com força renovada que ela enfrenta o conservadorismo e preconceito de quem lhe aponta o dedo por ousar ser mais do que meramente tolerada.
Nem quando Paloma encontra um padre dissidente e sua pequena capela caseira e praticamente clandestina para casá-la, alcança a plenitude de um final feliz. Quando sua história ganha atenção na mídia, as pressões familiares e sociais sobre seu companheiro e, então surgem conflitos. Nesse filme que fala de família, fé, religião e amor, principalmente amor próprio, o desfecho pode ser considerado bruto, mas é realista. E, por isso mesmo, recheado de esperança. Em sua busca por felicidade, Paloma busca a si mesma. E é é sua maior força. Ela é uma mulher que tem a si mesma. Além da fé em Deus, eu si própria e no que é capaz de conquistar. Tem amor para dar e receber e força para correr atrás dos seus desejos. É já, por isso mesmo, a mulher mais feliz do sertão.