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Primeiro romance de Clarice Lispector ganha nova edição com manuscritos

Prestes a completar 80 anos, 'Perto do Coração Selvagem' marcou novo momento na literatura brasileira

Por Joana Oliveira
6 dez 2022, 11h07

Aos 20 anos, Clarice Lispector começava a se aproximar do “selvagem coração da vida”. Foi com essa idade que a escritora escreveu sua obra de estreia, que seria publicada três anos depois, em 1943. Protagonizado por Joana, que narra sua história a partir de lembranças da infância e o início de sua vida adulta, Perto do Coração Selvagem acaba de ganhar uma nova edição da Rocco, que antecipa as comemorações dos 80 anos de publicação do livro que marcou um novo momento na literatura brasileira. “Na década de 1940, esse cenário estava marcado pelo regionalismo realista, e a única exceção feminina entre os aclamados escritores era Rachel de Queiroz“, lembra Maria Clara Bingemer,  professora de Teologia da PUC-Rio e estudiosa da obra clariceana. Ela assina um dos quatro ensaios inéditos da edição especial do livro, que traz datiloscritos originais da autora, com anotações feitas à mão. Ao estrear na literatura com um romance protagonizado por uma mulher questionadora que ousa olhar para si mesma antes de olhar para o mundo, Clarice desnorteou a sociedade da época.

Capa de 'Perto do Coração Selvagem'.
Capa de ‘Perto do Coração Selvagem’. (Rocco/Divulgação)

“Ela colocava muito de si nessas personagens femininas tão fortes e marcantes”, continua Maria Clara. Joana, uma força da natureza que marca Perto do Coração Selvagem questiona, por exemplo, todas as concepções de felicidade impostas às mulheres na época. Era, nesse sentido, um próprio reflexo de Clarice. Casada com o embaixador Maury Gurgel Valente, a escritora vivia às voltas com o papel de esposa e se incomodava em ter que interpretar uma espécie de primeira-dama internacional. Em 1959, ela decidiu desquitar-se do marido, 20 anos antes da lei do divórcio no Brasil.

Além da vanguarda temática, Perto do Coração Selvagem causou rebuliço pela estreia de uma escritora que já trazia um estilo muito próprio, único, não engessado como as normas estilísticas anteriores. Clarice escrevia frases que são interrompidas no meio do caminho e longas elucubrações num fluxo de consciências que, às vezes, parecia não ter fim. Em seu primeiro romance já está presente o tom intimista e existencial que dominaria toda a sua obra. “Ela se debruçou sobre o sentido da vida e o que significa ser humano, numa época em que só se falava de temas sociais como seca e pobreza. Acabou abrindo caminho para outras escritoras, como Lygia Fagundes Telles e Nélida Piñon”, lembra Maria Clara.

De acordo com Pedro Vasquez, editor que assina a edição do volume, a primazia dos questionamentos pessoais à frente das questões sociais é importante, porque estas últimas “são crises transitórias, que podem ser consertadas, principalmente por meio de políticas públicas”, enquanto as questões do “eu” são eternas. “É esse tom espiritual, mas não religioso, que marca muito dos escritos de Clarice. Uma coisa filosófica mesmo”, diz ele. A memória, outro tema recorrente em seus contos e romances, é mais um aspecto dessa espiritualidade literária. “E é também um traço da judeidade de Clarice, que, apesar de ter perdido a mãe muito cedo [aos 8 anos], assimilou a visão de mundo daquela religião”, acrescenta Maria Clara Bingemer.

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Pedro lembra que, apesar das críticas positivas, Perto do Coração Selvagem causou “certa aflição” entre alguns intelectuais da época, que acharam que, justamente pela escrita intimista, a jovem escritora estaria copiando o estilo de Virginia Woolf ou James Joyce. “No entanto, aos 20 e poucos anos, Clarice sequer tinha lido esses autores”, esclarece. A epígrafe de Joyce, que abre o livro e inspirou seu título, foi retirada d’O Retrato do Artista Quando Jovem [Ele estava só. Estava abandonado, feliz, perto do selvagem coração da vida] e foi sugestão de um amigo da escritora quando o romance já estava pronto.

Clarice já nasce pronta para a literatura”, ressalta Pedro Vasquez. “Mario Quintana dizia que sua literatura não evoluiu, que era sempre igual. Mas ele foi igual dentro da perfeição, assim como ela. A reedição dessa obra mostra que os escritos dela são até mais atuais hoje do que quando foram primeiramente publicados. Foi a sociedade que evoluiu, e uma prova disso é a celebridade que a escritora tem hoje”, acrescenta. Este ano, em comemoração ao seu centenário (que aconteceu em plena pandemia de Covid-19, em 2020), o Instituto Moreira Salles montou a Constelação Clarice, uma investigação poética da autora, que reuniu centenas de manuscritos, cartas, pinturas, fotografias e outros documentos. Em setembro, O Livro dos Prazeres foi adaptado ao cinema pela diretora Marcela Lordy. 

A obra de Clarice é atemporal e sempre dirá muito sobre o que nos constitui enquanto humanos, mas, principalmente, o que é ser mulher. “Desde a publicação de Perto do Coração Selvagem até hoje, mudaram apenas as circunstâncias, com importantes avanços nos direitos das mulheres, mas muitos outros ainda a serem conquistados. Mas essa aliança da mulher com a vida, da qual ela tanto escreveu, é perene”, diz Maria Clara Bingemer. A corporeidade da mulher, que encerra a possibilidade de gerar vida, sempre fascinou a escritora. “Estar perto do coração selvagem é estar perto do coração da vida, da matéria. Do mais íntimo e mágico do mundo”, explica Maria Clara. A mesma materialidade que aparece, por exemplo, em A Paixão Segundo G.H, quando a protagonista come uma barata e revela: “Comunguei no imundo da vida”. Clarice é assim: o belo e o podre, o sutil e o mais cruel, o profundo da alma humana. Nunca o banal. Por isso, nunca é cedo ou tarde mais para lê-la.

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