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Afrofuturismo, o movimento que inspirou Beyoncé em “Black is King”

A pesquisadora Morena Mariah e o escritor Ale Santos explicam como o movimento conecta a ancestralidade africana com elementos futurísticos

Por Maria Clara Serpa (colaboradora)
Atualizado em 3 ago 2020, 21h19 - Publicado em 3 ago 2020, 20h39

Na última sexta-feira (31), Beyoncé lançou o álbum visual Black is King que, apesar de ainda não estar disponível no Brasil, levantou discussões importantes, como já é habitual nas criações da artista. Durante 85 minutos, o filme reconta a história do Rei Leão reposicionando pessoas negras como protagonistas da história e usando a África como pano de fundo.

Por meio do álbum, Beyoncé apresenta elementos da cultura ancestral africana e a trajetória contada pelos seus próprios descendentes, relembrando que ela não se resume apenas a escravidão, sofrimento e miséria, como é retratada na maioria das obras do entretenimento. Ao dedicar a produção à sua ancestralidade, a artista mergulha no afrofuturismo, movimento que vem ganhando força com a cultura pop, mas que é conhecido desde os anos 60.

Morena Mariah, estudiosa do movimento e criadora do Instagram Afrofuturo, explica que o afrofuturismo atua como uma resposta contundente ao esquecimento e esvaziamento da história das pessoas negras. “Existe um apagamento da história africana da época pré-colonial. Isso é um braço do racismo, porque os colonizadores queriam realmente que isso fosse completamente ignorado. O afrofuturismo surge como um resgate a essa ancestralidade e, a partir daí, conseguir criar uma ideia de futuro para esse grupo”, explica.

Basicamente, como possuem pouca perspectiva de presente – devido à violência da diáspora ao racismo atual – é difícil para que a população negra tenha uma perspectiva de futuro. O movimento, que é multifacetado, vem para quebrar esse paradigma e valorizar a cultura africana com o uso de elementos ancestrais para criar mundos futuros avançados. É a partir dessa projeção de futuro que conseguiremos realizá-lo de fato, então, o afrofuturismo é também uma maneira de buscar novas formas de viver, além de ser também uma forma de repensar e criticar o presente.

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Como surgiu?

Segundo Morena, o afrofuturismo existe desde que a cultura africana existe. Porém o termo em si só foi utilizado pela primeira vez nos anos 90, no texto Black to the Future, do estudioso Mark Dery – um homem branco. Pense bem: quantos protagonistas de filmes e obras de ficção científica famosas são negros? Esse foi o questionamento que fez Mark iniciar seu estudo para entender o porquê de o gênero ser tão embranquecido.

O que ele descobriu, através de entrevistas e conversas com pessoas negras da indústria, é que existe um processo de apagamento do passado desses povos, o que leva a uma falta de imagem do futuro, porque os próprios negros não foram possibilitados de se conhecerem. A situação se torna ainda mais crítica porque a indústria, que é racista como todo o resto da sociedade, não se esforça para mudar a situação e, nas raras vezes em que decide retratar uma pessoa negra, o faz como um bandido ou alguém com menos importância na trama.

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Depois dessa conclusão, Mark Dery vai em busca de obras de autores negros e percebe que, nelas, há características em comum que são, justamente, essa retomada da identidade do passado para criar a ideia de futuro. Assim, ele usa pela primeira vez o termo afrofuturismo.

O músico estadunidense Sun Rá foi um dos precursores do movimento e considerado pai da estética futurista ligada à negritude. Na literatura, um dos grandes nomes é Octavia Butler, a “primeira dama da ficção científica”, que possui protagonistas negros em todos os seus 15 livros publicados. O mais famoso deles, Kindred, conta a história de uma escritora negra que é transportada da Los Angeles dos anos 70 para uma fazenda escravocrata do sul dos EUA no século 19.

Nomes como Afrika Bambaataa, Janelle Monáe e, no Brasil, Xênia França e Natály Neri são outros expoentes do movimento na contemporaneidade. Em Metropolis (2007), seu primeiro trabalho solo, Janelle conta a história de seu alter ego, Cindi Mayweather, uma mulher do ano de 2719 e que vive em uma realidade distópica futurista. Na literatura, o movimento ainda não possui tanta força, mas por meio do apoio da cultura pop, com filmes como Pantera Negra – um dos maiores exemplos do afrofuturismo no cinema – e a própria criação de Beyoncé, ganha cada vez mais espaço.

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Em seus estudos, a doutora em comunicação e principal pesquisadora do assunto no Brasil, Kênia Freitas, elucida que o afrofuturismo é um espaço de autoria exclusivamente negra. Para ela, dentro da lógica de resgate histórico e pessoal do movimento, não faz sentido que haja propostas executadas ou pensadas por pessoas brancas.

Qual a importância?

Para Ale Santos, autor do livro Rastros de resistência: Histórias de luta e liberdade do povo negro, a importância do movimento está, principalmente, na representatividade. Ao conectar a ancestralidade africana com o futuro, criando utopias futurísticas afrocentradas, as pessoas pretas conseguem se imaginar no futuro.

“Praticamente todas as criações da ficção científica são feitas com um ideal de ego [conceito criado por Freud que trata, basicamente, da representação de si mesmo que procura aceder a representações idealizadas] de pessoas brancas, ou seja, imaginamos um futuro apenas com pessoas brancas. Como disse Neusa Santos Souza, no livro Tornar-se Negro, as pessoas afrodescendentes não têm esses ideais de ego, porque sempre são representadas como o alien ou o vilão. Com o afrofuturismo, conseguimos criar esse ego no negro, o que é extremamente importante”, explica Ale.

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Além disso, ao lutar contra o esvaziamento e esquecimento da história africana, o movimento também ajuda a população negra a sentir orgulho de suas raízes, a destruir a ideia de que o seu passado é composto apenas por coisas ruins e, com isso, também torna-se uma forte ferramenta na luta contra o racismo e a discriminação.

Aonde o movimento está na nossa cultura

Não é só Beyoncé e Pantera Negra. “Apesar de não ser declaradamente afrofuturista, Michael Jackson, por exemplo, foi claramente influenciado pelo movimento em algumas de suas músicas. No clipe de Scream, que foi o mais caro da história, ele e sua irmã Janet Jackson estão em uma nave espacial vagando pelo espaço. Isso pode ser considerado uma produção afrofuturista”, diz Ale.

Além de estar cada vez mais presente na cultura pop, o afrofuturismo também é bastante presente na chamada subcultura. “Surge como um movimento meio underground, não está na televisão ou nas salas de cinema, até porque são discussões contra-culturais, que vão na contramão do que é hegemônico. É bem mais presente em uma camada de artistas menores, pequenas editoras”, explica Morena Mariah.

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Como incluir o afrofuturismo no dia a dia

Apesar de discussões e reflexões teóricas sejam de extrema importância para mudanças estruturais na sociedade, o debate precisa migrar para o campo da ação. Sendo assim, é necessário pensar em como podemos incluir os ideais e pensamentos afrofuturistas no cotidiano. Morena conta que nunca pôde estudar sobre sua ancestralidade em instituições de ensino, simplesmente porque os assuntos não eram abordados e, por isso, passou por um processo de autoeducação para conhecer sua própria ancestralidade. “Com essa bagagem que consegui, tento muito visualizar o futuro a partir do que vivemos no presente. Me questiono sempre no que estou fazendo para que tenhamos um futuro diferente. Na minha visão, o mais importante é questionar se o que fazemos é contundente e o que estamos deixando de legado e positivo, como o que nos foi deixado até agora”, explica.

O pensador quilombola Nêgo Bispo diz que nós somos “início, meio e início” e não “início, meio e fim”. Morena leva isso para sua vida. “Isso significa que nós temos que pensar no que deixamos como início para a próxima geração. Somos arquitetos do futuro e devemos usá-lo como uma ferramenta de pensamento e forma de ver a vida, experienciando o presente”, finaliza.

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