Thiago Amparo: “Ser ativista é lutar por mudanças no bairro e no mundo”
Professor, advogado e comentarista, Thiago Amparo conta a CLAUDIA como equilibra o lado profissional e social com outras paixões, como a arte e o Carnaval
Na plantação de tabaco, símbolo dos Estados Unidos do século 19, o jovem Hiram Walker tem sua força de trabalho explorada e sua existência usurpada. Usando a memória afetiva da mãe, uma mulher negra escravizada, como um superpoder, ele escapa das terras do pai, homem branco e senhor de escravos, em busca da emancipação em todos os sentidos.
O enredo de A Dança da Água (Intrínseca), do escritor afro-americano Ta-Nehisi Coates, embalou os momentos de fuga do advogado, professor e colunista Thiago Amparo durante a pandemia. Na epígrafe, Coates ressalta que seu papel foi “contar a história do escravo. Para a história do senhor, não faltam narradores”.
O protagonismo da narrativa negra, aliado à fantasia do romance, serviria também para revelar a jornada de Thiago na profissão, no ativismo do movimento negro e LGBTQIA+ e no seu modo de vida. “Essa combinação permite que a gente fale de questões duras e historicamente importantes, como a escravidão nesse caso, mas por meio de uma mágica que nos deixa sonhar e construir o futuro”, diz ele, à frente de sua recheada estante de livros.
Na infância, a leitura era refúgio para a timidez. “Os livros me deixavam menos solitário, criavam novos mundos. Até hoje, por intermédio deles, saio do lugar onde estou e viajo. A proximidade com a leitura e depois com a escrita me levou a pensar em trabalhos nos quais poderia utilizá-las”, lembra Thiago sobre seu primeiro filtro profissional.
A segunda influência se deu pelo convívio familiar. Almir de Souza Amparo, seu pai, cursara direito e tinha um pequeno escritório de advocacia em Osasco, na Grande São Paulo, onde conheceu Rosana da Silva, secretária, que tempos depois se tornaria sua esposa.
“Minha mãe dizia que o escritório parecia uma ONG. Eram várias pessoas que não conseguiam pagar advogado, mas precisavam de ajuda. A felicidade deles ao chegar em casa depois de mudar a vida de alguém me encaminhou para o direito”, revela o professor, que no primeiro ano da faculdade pensava em ser juiz.
Os planos ganharam novos rumos quando estagiou no Fórum de Franco da Rocha. “Olhava processos de adolescentes em medidas socioeducativas que envolviam casos de maus-tratos e tortura. Isso me impactou muito. A experiência me abriu um leque e vi que era o queria: mudança por meio da prática da minha profissão”, conta Thiago sobre o encontro com os direitos humanos, que após a graduação o levou a Budapeste, na Hungria, onde fez mestrado na Central European University.
Anos depois desse início inesperado, segue falando do tema em salas de aula, palestras e meios de comunicação. O advogado também foi secretário-adjunto de direitos humanos e cidadania na Prefeitura de São Paulo entre janeiro e maio de 2017.
Este ano, a rotina, que já se apertava para dar espaço às múltiplas atividades, ficou ainda mais intensa no isolamento. “Assim como muitas pessoas, descontei toda a minha energia no trabalho. Mas vi que não daria para levar desse jeito”, conta o docente da Fundação Getulio Vargas, em São Paulo.
Com a ascensão do debate antirracismo e contra a violência policial, motivado pela morte de George Floyd, nos Estados Unidos, e de João Pedro, no Rio de Janeiro, Thiago passou a contribuir frequentemente para programas jornalísticos da GloboNews.
A porta de entrada foi a pauta identitária, mas a pluralidade da sua bagagem acadêmica e profissional também possibilitou a participação na cobertura da emissora sobre as eleições presidenciais norte-americanas. “Estou tão feliz de cada vez mais falar de direito internacional e constitucional comparado, não só de racismo. Ou melhor, de tudo isso”, comemorou em seu perfil no Twitter.
Na rede social, o advogado ganhou status de influenciador, principalmente entre pessoas negras e aliados. Os tuítes revelam um lado mais incisivo, mas não menos diplomático. Em poucos caracteres, ele usa sua didática para desconstruir devaneios, como as alegações de racismo reverso após o Magazine Luiza anunciar seu trainee exclusivo para negros, e analisar atitudes de representantes públicos nacionais e internacionais.
O jogo de cintura e o posicionamento foram desenvolvidos desde a infância no Conjunto Habitacional (Cohab) de Carapicuíba, onde viveu até os 6 anos, e depois na rua sem saída em que morou com os pais até o final da juventude, em Osasco. “Brincava com os meus amigos e vivia na casa dos vizinhos. Criou-se um sentimento de companheirismo por todos”, conta.
“Não precisa de carteirinha, ativismo é pensar e atuar em conjunto para uma mudança social, seja no bairro, seja no mundo”
Thiago Amparo
Dentro de casa, também tinha os pais como exemplo de potência para acreditar em si mesmo. “Eles me ensinaram respeito, mas não de subserviência. Entendi que não preciso baixar a cabeça por ser pobre e negro, só que, ao mesmo tempo, isso não significa pisar nas pessoas. É uma confiança sem arrogância”, define, entregando o que considera uma das maiores lições que aprendeu e carrega até hoje.
Para ele, o ativismo reflete essa equação e é alimentado no coletivo. “Todos nós podemos ser ativistas. Não é necessário ter uma carteirinha. Ativismo é saber o nome das pessoas que trabalham no mesmo lugar que você, inclusive as que ficam na portaria, é pensar e atuar em conjunto para a mudança social, seja no bairro, seja no mundo”, considera.
A porta de entrada livre para o ativismo não é sinônimo de um caminho sem percalços, claro. Mesmo assim, lidar com causas sociais não é um peso. “Certamente, você sente a história e as injustiças sofridas. A luta pode gerar um cansaço por nos colocar em uma posição contrária à maré, só que não estamos sós. Aprendi que, por a luta ser coletiva, cada um pode ter a sua atuação, nem tudo está sobre os nossos ombros. Há momentos em que é necessário parar um pouco, não ser protagonista e deixar que os outros ajudem para que andemos para a frente”, aconselha.
O desgaste, para o ativista, é mitigado com as vitórias e por esse suporte das redes de solidariedade. “Desabafo ligando para amigos e com a escrita, que é terapêutica, porque permite que eu escute aquela voz que está dentro de mim.”Se o refúgio da mente está nos livros e na escrita, o do corpo está nos encontros da vida. Thiago não é de conversas superficiais, o que o encanta e abastece é o olho no olho. “O melhor jeito de estar no mundo é não estar sozinho, quer pelas relações afetivas, quer pelas amizades. Nossa responsabilidade é compartilhar a experiência humana. Isso é que faz a vida valer a pena”, afirma.
“Quando saí do armário, foram os meus amigos que serviram de solidez para que eu conseguisse ser quem eu sou. Assim como amigos negros também me ajudaram no reconhecimento da minha etnia”, celebra o advogado, que alerta para a necessidade de furar as bolhas. “Encontrar a humanidade em comum fez com que eu respeitasse mais os outros, inclusive aqueles de quem discordo. É importante entender que as pessoas vivem de maneiras diferentes e tudo bem”, diz.
Uma das maiores carências de Thiago durante o isolamento foi suprida um pouco antes desta entrevista em um lugar familiar: o Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Masp), vizinho da faculdade em que leciona. Estava em cartaz a exposição A Dança na Minha Experiência, com trabalhos do brasileiro Hélio Oiticica.
Para Thiago, a vida nas telas digitais é incompleta e empobrecida por não satisfazer todas as necessidades e desejos humanos. “Sentia falta de notar a beleza do mundo e de mergulhar em outras realidades, coisas que só a arte proporciona”, revela. A saída também foi uma forma de se reconectar socialmente. “Até então, passeava com meu cachorro e já ficava ansioso se alguém chegasse perto. O isolamento gerou uma apatia pelo estranho, que é prejudicial. Estar no mundo contemplando diversas formas de arte e socializando é o que enriquece a jornada”, reflete.
Apesar das pequenas doses de afeto advindas das paixões, deve demorar para Thiago satisfazer outro de seus desejos. Folião assumido, ele anseia por dias pós-vacina com serpentina, uma dose de aglomeração e música. “Sonhamos com um grande Carnaval depois da pandemia, porque temos a necessidade de estar entre pessoas e livres”, aponta o ativista, que é do time que prefere a festa na rua com os blocos. “Mas volto para descansar em casa, não fico direto”, confessa, rindo.
Para ele, a imersão no lúdico e fantasioso por alguns dias ainda alivia um pouco a dureza da realidade. “O espírito do Carnaval está nisso: em compartilhar. É uma forma de existência democrática e autônoma, já que a vida também se faz no espaço público, que não é meu nem do outro, mas de todos”, afirma.
Contrapondo-se à efusão de energia das festividades carnavalescas, a busca pela quietude, nos outros momentos, tem sido o seu ponto de equilíbrio. “É importante esse movimento de experienciar o silêncio e diminuir o ritmo do tempo das informações para saborearmos o momento como se fosse um bolo de chocolate, de forma tranquila, para trazer leveza. A gente quer construir um mundo onde a leveza seja possível e, para isso, é necessário um esforço para encaixá-la na rotina”, aconselha ele, livre de qualquer culpa, mas ciente de seus compromissos.
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