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Aquilombando-se, pessoas negras potencializam existência com semelhantes

Com outros afrodescendentes, elas encontram conforto e segurança para falar sobre saúde mental, sexualidade, trabalho, entre outros assuntos além do racismo

Por Ana Carolina Pinheiro Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
25 nov 2020, 16h30
aquilombamento
 (Getty/Reprodução)
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Os caminhos para Kalunga, Ivaporunduva, Palmares e outros quilombos no Brasil eram percorridos por aqueles que ansiavam por dias menos dolorosos. Entre os séculos 16 e 19, negros escravizados fugiam e encontravam na organização coletiva teto, comida e acolhimento social para resistir à violência constante.

O fim da escravidão não garantiu, na prática, acesso a direitos básicos para toda a população afrodescendente. Assim, os quilombos seguem como espaço de resistência e abrigo dessas comunidades até hoje. Mas não só eles. Com a mobilidade, novas configurações trouxeram a possibilidade de aquilombar-se em estruturas não delimitadas por um território. As motivações atuais para nos congregarmos podem ter contextos diferentes dos nossos antepassados.

Entretanto, a busca tem o mesmo sentido: potencializar força e conhecimento por meio do afeto, sentimento tão barrado na vivência de pretos e pardos a partir da diáspora africana. Na tentativa de recuperá-lo, a psicóloga e psicanalista Ana Carolina Barros Silva, 30 anos, de Cuiabá, procurou colegas de trabalho negras para compartilhar a alta procura de pacientes afrodescendentes por atendimento.

Assim nasceu a Roda Terapêutica das Pretas, rede de profissionais de saúde mental. “Refletimos que lugar a psicologia ocupa e a inacessibilidade não só financeira mas territorial, já que a maioria dos consultórios estão no centro”, diz Carolina Cristal, 27 anos, de São Paulo, outra integrante do coletivo.

A Roda Terapêutica das Pretas foi o primeiro lugar onde Ana, Carolina e as demais participantes puderam compartilhar experiências e questionamentos profissionais e pessoais sem receio. O encontro delas inspirou Ana Carolina a criar um espaço físico de resistência e resguardo da ancestralidade, a Casa de Marias, localizada na zona leste de São Paulo.

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“A iniciativa é a contraposição do discurso hegemônico da ciência psicológica. Das 14 profissionais, 13 são negras, todas nascidas na periferia de diversos estados do país”, explica Ana sobre o coletivo, inaugurado em fevereiro deste ano. Majoritariamente negros, os pacientes têm à disposição atendimentos individuais, familiares e coletivos. Com a pandemia, as consultas e reuniões virtuais foram a saída para dar continuidade às atividades.

Em 2009, a socióloga estadunidense Patrícia Hill Collins definiu esse tipo de iniciativa como a criação de espaços seguros. No contexto do seu país, ela considera que “esses novos significados ofereceram às mulheres afro-americanas ferramentas potencialmente poderosas para resistir às imagens controladoras da condição da mulher negra”.

Jaqueline Conceição, psicanalista pelo Instituto Ionene e doutoranda em antropologia social na Universidade Federal de Santa Catarina, também vincula a importância dos grupos afrorreferenciados à economia. “São iniciativas culturais, sociais e econômicas em que as pessoas afrodescendentes podem ser acolhidas e acessar a produção de conhecimento da sua comunidade étnico-racial”, pontua.

Esses movimentos ainda fomentam estratégias de mercado e empreendimento. “A comunidade se fortalece quando tem autonomia econômica para investir em seus projetos”, afirma Jaqueline, que também é fundadora e diretora executiva do Coletivo Di Jejê, plataforma de ensino de feminismo negro criada há sete anos e com mais de 10 mil mulheres negras formadas nos cursos virtuais e presenciais oferecidos na Casa Preta, em Florianópolis. A meta da iniciativa para os próximos anos é se transformar em uma faculdade e constituir sede em São Paulo.

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Mesmo sem o olho no olho, as conexões virtuais também têm seu poder de atração genuína, porém nem sempre os caminhos são nítidos. Em busca de um relacionamento afrocentrado, o educador social Lázaro Silva, 30 anos, do Rio de Janeiro, percebeu a dificuldade em encontrar homens negros que se declarassem homossexuais no grupo do Facebook Afrodengo, espaço de flerte amoroso e construção de amizade entre pretos e pardos.

“Jeferson Silva e Fernando Machado, que conheci na rede, também notaram isso e decidimos criar o Afrodengo LGBTT+. Afrocentrar é aquilombar nossos afetos e interesses. No grupo, ainda falamos sobre outras coisas, como vagas de emprego, conteúdos de saúde mental e bolsas de estudos. Do mesmo modo que as relações, ter uma parte psicológica estruturada, conquistar independência financeira e adquirir conhecimento são passos essenciais”, considera.

Assim como Lázaro, foi na internet que Kenya Odara, 22 anos, de São Paulo, estreitou vínculos e ganhou conforto para falar de assuntos que antes evitava. Ela é uma das criadoras do coletivo Siriricas CO, que nasceu como um grupo no WhatsApp, em 2018, que reunia mulheres para falar de sexualidade sem tabu. Algumas integrantes foram saindo até que ficaram nove, todas negras. “Ganhamos mais intimidade e percebemos que esse impacto poderia agregar outras mulheres pretas”, revela.

Quatro meses depois, elas criaram o podcast e a conta no Instagram. “Não é só um perfil para viralizar. Interagimos com as publicações das seguidoras, deixamos nosso espaço aberto para elas divulgarem seus conteúdos e buscamos sempre manter essa conexão o mais real possível”, ressalta a estudante de direito. Os temas do Siriricas CO vão de insegurança por causa de manchas escuras na virilha a produtividade na quarentena.

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coletivos negros
(Getty/Reprodução)

Não somos todos iguais nem falamos só de racismo

A identificação étnico-racial não é sinônimo de opiniões e vivências homogêneas entre pretos e pardos. A quantidade de melanina impacta na discriminação sofrida e no reconhecimento da sua identidade, o que chamamos de colorismo. “Sou uma mulher negra de pele clara; há uma complexidade que atravessa nossa questão familiar. Eu me descobri negra na universidade com os movimentos sociais e raciais, porque até então frequentava espaços majoritariamente brancos”, lembra a psicóloga Carolina, que, além de fazer parte da Roda Terapêutica das Pretas, é aluna da Casa de Marias, onde se prepara para o mestrado.

Segundo Jaqueline, o ponto de origem da classe reflete na compreensão da própria realidade. “A produção profissional e a pessoal têm uma influência diferente se a pessoa vem da periferia, de um bairro central ou intermediário”, pontua a respeito de referências que não devem ser negadas e hostilizadas.

Negra retinta, Kenya nunca teve dúvidas em relação à sua raça, mas essa identificação sólida não a privou de desencontros consigo mesma. “Não alisei o cabelo porque fui incentivada pela minha mãe desde pequena a ver beleza nas minhas características. Só que, fora de casa, era cercada por brancos e tentava me encaixar em um estilo próximo ao deles, que não era o meu. Olhava para os grupos de meninas negras nos Estados Unidos e sonhava em participar de um igual aqui”, lembra a integrante do Siriricas CO.

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Para Jaqueline, a juventude negra tem mais facilidade em criar novas configurações de iniciativas, fazendo com que portas sejam abertas. “Não adianta partirmos de um conhecimento afrorreferenciado se a forma de disseminação não for de uma perspectiva que pessoas negras consigam acessar. Conteúdo preto em forma branca atinge quem?”, questiona. A pesquisadora ainda reforça que a acessibilidade se faz necessária pela diversidade de experiência, não por falta de competência técnica dos afrodescendentes.

“É uma estratégia política pensar e estudar sobre a gente e cuidar de nós”

Carolina Cristal

Com nosso difícil cenário social, a cobrança para falar de determinados temas, como casos de racismo, ou a obrigação velada de ser didático com brancos cansam independentemente da idade. “Nossa formação já é um posicionamento. Então queremos aproveitar esse espaço para nos distrair e falar de dicas de produtos e lugares para comer, por exemplo”, explica Kenya.

Ana Carolina vê a Casa de Marias como um ponto de apoio crucial. “Podemos olhar para nossos pares e nos sentirmos pertencentes, discutir questões técnicas e profissionais com mais naturalidade. Você sabe que vão entender sem que tenha que se desgastar explicando obviedades. Partimos de um lugar em comum. A Casa das Marias é esse quilombo: acolhemos pessoas, mas também somos acolhidas”, celebra.

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Cuidar de quem cuida é uma consideração feita por Carolina também. “Há uma exigência de força contínua tanto para com os negros quanto para com os profissionais de saúde. Por isso, é uma estratégia política pensar e estudar sobre a gente e cuidar de nós. Quem atende precisa igualmente receber cuidado e se fortalecer”, afirma. O conforto para ela é saber que a rede de apoio não termina com o curso. Estar com os nossos vai além de uma simples escolha, é uma potência política.

Jaqueline concorda e acredita que, por esse motivo, os encontros afrorreferenciados pedem organização e estratégia. “Infelizmente, estamos em uma posição histórica em que não podemos nos dar ao luxo de viver sem resistir politicamente, mesmo que não seja de forma partidária. Para a pesquisadora, só a presença de afrodescendentes em espaços elitizados e brancos não é suficiente para romper o sistema racista.

A resposta do processo do mestrado de Carolina sairá no começo do ano, mas ela compreende que a jornada coletiva ao lado de suas companheiras negras já foi a principal conquista. “O mais importante, nesta reta final, é a evolução emocional que identifico, construída em meio a uma pandemia, mas dentro de aquilombamento afetivo. Não sinto obrigatoriedade de passar, mas, com a ajuda do grupo, consegui realizar as tarefas a que me propus e me sinto muito mais preparada. A entrada vai ser uma consequência.”

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