“Aquele sangue derramado será honrado com amor”, diz irmã de Marielle
Em 2019, Anielle Franco escreveu com exclusividade sobre toda sua trajetória de vida ao lado da irmã
Desde a infância, Marielle foi inspiração. Quando eu tinha 8 anos, era ela quem me levava da escola para o treino de vôlei e para o cursinho de informática. Eu tinha o máximo de respeito a ela por isso. Admirava sua esperteza e desejava crescer como ela. Eu olhava e pensava: “Uma menina ainda, mas já com tantas responsabilidades”.
Minha mãe tinha confiança nela e dava instruções para que cuidasse da caçula de maneira correta. Tínhamos cinco anos de diferença. Cheguei aos 13 anos, e era ela quem cuidava da minha merenda, comparecia às reuniões de escola – meus pais trabalhavam em três horários –, me levava para tomar vacina e arrumava minha mochila.
Aos 16 anos, ganhei uma bolsa para morar, jogar vôlei e estudar nos Estados Unidos. Marielle era a única da família que arranhava um pouco da língua inglesa e foi ela quem traduziu documentos e contratou uma professora particular para que eu não viajasse sem saber nada.
Supostamente, ficaria apenas dois anos, mas, como era estudiosa e boa atleta, passei mais de 12. Fiz duas faculdades e dois mestrados. Ela me recebia toda vez que eu vinha de férias com muito orgulho, com a Luyara no colo, e espalhava pra todo mundo que tinha uma irmã mestra e com inglês fluente, que jogava vôlei nas universidades americanas.
Para ela, aprender inglês sempre fora difícil. Eu tentei ensiná-la, mas santo de casa não faz milagre. Tínhamos um sentimento de gratidão enorme uma pela outra. Embora digam que irmãs brigam, conto nos dedos as discussões que tivemos. Foram 34 anos de parceria e cuidado.
Hoje, trago comigo memórias de uma irmã que sempre teve caráter, valores, um coração gigante e seguia à risca os valores familiares que nos foram ensinados. Dói saber que minha parceira não volta mais. Dói saber que não teremos nossos almoços de domingo regados a risadas. Mas de alguma forma ela está comigo. Era e ainda é uma conexão inexplicável. Eu ainda sinto a presença da minha irmã fortemente.
Às vezes dói tanto que prefiro parar e lembrar somente dos momentos felizes. Sem sabermos, os anos de 2016, 2017 e início de 2018 foram nossa despedida. Nós nos divertimos muito e fizemos coisas juntas que levarei para a vida e dentro do meu coração.
Desde o dia 14 de março do ano passado, tudo mudou. Mataram nossa anja negra. Nossa vereadora que fez com que nós acreditássemos novamente na política. Nossa parceira de vida.
Uma mulher negra, mãe, favelada, bissexual, eleita democraticamente, com uma história de vida inspiradora para muita gente. Inclusive para sua família, que até hoje não conseguiu se reerguer emocionalmente nem psicologicamente. Eu não consigo imaginar a dor da minha mãe e da minha sobrinha.
O pior de tudo é que não mataram Marielle somente a tiros. Tentaram matar também a reputação e a história que ela tinha orgulho de contar. Decidimos nos agarrar a esse legado. Criamos o Instituto Marielle Franco.
Entre os muitos trabalhos que esperamos fazer, o principal será formação política. Não me refiro à política parlamentar ou partidária, e sim a uma que seja capaz de inspirar jovens e mudar realidades tristes para que todos saibam da criação e dos valores de Marielle.
O Papo Franco, nosso primeiro projeto, que promove debates informativos em comunidades carentes, foi iniciado por ela e tocaremos com respeito e maestria. Para nós, da família, aquele sangue derramado no dia 14 de março está sendo e será honrado com amor, afeto, trabalho e verdade – e não vingado com violência ou discurso de ódio.
Daremos, assim, continuidade a ideias que não serão apagadas e nem morrerão com ela. Resistiremos e não nos calaremos. Mesmo com dor, seguiremos na luta, pois temos o sangue de Marielle Franco, e ancestralidade importa!
*Anielle Franco é mestra em jornalismo e letras e escritora. Dirige o Instituto Marielle Franco e coordena o projeto Papo Franco, no Rio de Janeiro