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A ideia de que o Brasil seria o país do futuro já habitou o imaginário de estudiosos daqui e do restante do mundo. Ainda na década de 1940, ficou famoso um livro com a aposta já no título, escrito pelo austríaco Stefan Zweig. A análise não era completamente infundada. As projeções populacionais, mesmo alguns anos depois da teoria do autor, estimulavam esse otimismo. Devia-se ao fato de que, diferentemente das grandes potências mundiais, ainda estaríamos por vivenciar nossa onda jovem, quando o número de pessoas entre 15 e 29 anos atingiria o ápice. Essa época tão aguardada chegou… E está passando. Em 2018, os jovens eram cerca de 20% da população, e os números tendem a cair daqui em diante sem que o Brasil tenha apostado nessa força produtiva.
Atualmente, eles representam a maior parte dos desempregados – 4 milhões, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) –, muitas vezes sem sequer terem tido a primeira oportunidade. Nessa geração, ficou famosa a expressão “nem-nem”, que reúne os que estão sem estudar nem trabalhar. “Um período dentro desse contexto traz impactos grandes para a vida laboral dos jovens, que se torna mais precária”, diz Enid Rocha, pesquisadora do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Para Robert Muggah, diretor de pesquisa do Instituto Igarapé, há ainda o risco de esses jovens se envolverem com atividades violentas. “Isso varia de acordo com o acesso à educação e ao mercado de trabalho”, completa. Nessa perspectiva, toda a sociedade é afetada.
No caso das mulheres, a gravidez na adolescência é um dos fatores mais comuns que afetam o início da vida adulta. A Região Norte concentra os índices mais altos. Antes mesmo de completar os atuais 18 anos, Rafaela Ferreira já sentia esse fardo. Na casa em que ela mora, no bairro Castanheira, periferia de Belém, vivem quatro adultos e 20 crianças, incluindo suas duas filhas, Ana Sophia, 4, e Zilda Helena, 2 anos. A jovem passa o dia cuidando dos pequenos. Todos sobrevivem da soma da aposentadoria de funcionário público de um dos membros do clã e do benefício de prestação continuada que algumas moradoras recebem por terem diagnóstico de xantomatose cerebrotendinosa, doença genética com efeitos neurológicos.
A primeira gravidez de Rafaela aconteceu logo após começar o namoro com o pai das meninas, hoje com 24 anos. “Fiquei assustada porque sabia que não poderia estudar, mas precisava estar feliz também”, diz a garota. Na época, cursava o 7º ano do ensino fundamental. Os primeiros enjoos, porém, interromperam suas idas à escola. Ela não retornou até hoje. “No início, como não tinha com quem deixar minha filha, pensei em levá-la comigo. Só que é muito difícil caminhar com ela, ainda mais nos dias de chuva”, conta Rafaela, que quer matricular as meninas em uma creche pública para poder voltar às aulas. Atualmente, na cidade, apenas 18% das crianças até 3 anos estão matriculadas, de acordo com a Defensoria Pública do Pará, que pede por novas vagas.
Para Rafaela, a situação seria mais delicada na sua cidade de origem, Portel, na região do Marajó, de onde se mudou em janeiro na tentativa de conseguir escola e trabalho na capital. Marajó é tristemente marcada pela exploração sexual de meninas, em esquemas envolvendo diferentes membros da comunidade que se aproveitam da situação de miséria das famílias. Entre 2014 e 2019, foram registrados 895 casos de exploração e abuso sexual pelo Disque 100. Ainda que não sejam vítimas, as garotas são frequentemente sexualizadas – e não conseguem ter discernimento nessas situações, pois não há acesso à educação sobre o tema. Por causa do problema local, a ministra da Família, da Mulher e dos Direitos Humanos, Damares Alves, lançou, em julho passado, um programa para promover um “choque social”, com atendimentos de saúde, ações de combate à violência e fomento à economia da região. No entanto, a duração era de míseras duas semanas.
Além disso, a iniciativa recebeu críticas porque a ministra afirmou que as meninas locais eram abusadas porque não usavam calcinha. Logo, iria propor a instalação de uma fábrica de peças. Como forma de combater a gravidez precoce em âmbito nacional, Damares lidera uma campanha voltada para a promoção da abstinência sexual, estimulando os adolescentes a adiar o início da sua vida sexual e reduzindo assim o risco de gestações. Entretanto, nas experiências de jurisdições em que o modelo foi implementado, não há evidências de que caiu o contingente de jovens grávidas após a adoção da diretriz – nos Estados Unidos ocorreu o oposto. Além disso, a abstinência não impede concepções resultantes de estupro e, segundo estatísticas oficiais, gestações de meninas até 14 anos são caracterizadas como estupro. Frequentemente, o progenitor é maior de idade.
Aos 12 anos, a manauara Talita Haad, hoje com 20, recebeu a notícia de que estava grávida de cinco meses. Havia poucos dias, tinha tomado coragem para revelar à mãe que, por pelo menos quatro anos, sofria com os estupros praticados por um homem que fazia parte da família. Temendo pela própria vida, mãe e filha mentiram aos médicos sobre como a gravidez se dera. Segundo elas, a opção por um aborto nunca lhes foi dada. Depois do nascimento de Aline Vitória, hoje com 7 anos, ir à escola significava enfrentar olhares de outras crianças para o leite materno que vazava pela camiseta do uniforme escolar. “Minha mãe cuidava dela para que eu estudasse. Dizia que não queria que isso interrompesse minha vida, porque não era culpa minha”, conta Talita, que sempre esteve entre os alunos com melhores resultados.
Por dois anos, participou do programa Jovem Aprendiz, alocada na Petrobras. A vaga foi obtida com o apoio do programa ViraVida, do Serviço Social da Indústria (Sesi), voltado para adolescentes vulneráveis. “Para as meninas, ainda que as situações de vulnerabilidade estejam no passado, isso afeta o comportamento na vida adulta”, explica a psicóloga Tharzia Brelaz, que atuou no projeto até ele ser descontinuado, no ano passado, por falta de recursos. Há sete meses, Talita teve a segunda filha, Manuela Vitória, desta vez com o atual namorado, Carlos Ramon Amaral, 21 anos. Ele cuida da menina enquanto ela estuda e trabalha em uma lanchonete. “Como ainda não terminei o ensino médio, tenho dificuldade para conseguir um emprego com carteira assinada”, diz a jovem, que este ano conclui a escola e deve tentar uma vaga para cursar direito.
Embora seja o mais comum e determinante, ter filhos não é o único fator a empurrar as mulheres para fora das salas de aula e para subempregos. Filha caçula de pai analfabeto e mãe dependente de álcool, Josimara dos Santos Ribeiro, 23 anos, teve que começar a trabalhar cedo para ajudar a família. Aos 12, era babá de uma menina oito anos mais nova que ela. “A rotina afetava meu desempenho na escola e, conforme eu crescia, o patrão passou a olhar para o meu corpo. Então pedi para sair”, diz. Morava em Alenquer, no Pará, onde frequentava uma escola comunitária com pouca estrutura. Apesar dos empecilhos, conseguiu chegar ao ensino médio. No primeiro ano, um namoro minou seus planos de futuro. O parceiro fazia chantagens e ameaças, a afastava de familiares e amigos, não queria que ela trabalhasse. “Eu não percebia que aquele ciúme era errado, que ele me manipulava para eu não conversar com ninguém”, conta.
Aos 17, engravidou e a mãe a expulsou de casa, mas após três meses teve um aborto espontâneo. “Pedi ajuda para minha mãe, mas ela não quis me levar ao hospital com medo de eu ter provocado o aborto e ela ser presa”, conta. O desfecho trouxe tristeza e alívio. O relacionamento ainda se prolongou por mais algum tempo até ela colocar um ponto final e iniciar uma virada para trabalhar. Queria se mudar da casa dos pais, para onde tinha voltado. Dormia na sala por causa do pouco espaço. Arrumou empregos em restaurantes, sempre sem carteira assinada. Recebia cerca de 550 reais por mês até que se tornou funcionária tercerizada em uma empresa do distrito industrial de Manaus. Segundo a Pnad, o Brasil tem 42% dos trabalhadores em situação informal, e a maioria está no Amazonas. Essas pessoas não têm acesso à previdência nem a garantias como FGTS ou férias. Entre os jovens, a situação é agravada pelos novos formatos de trabalho e de negócios, em que não há vínculo com o patrão, mas, em contrapartida, oferecem alguma flexibilidade para somar ocupações.
Josimara comprou sua casa (de madeira e um dormitório) no bairro Mauázinho por 10 mil reais – 4 mil à vista com o dinheiro que conseguiu juntar e o restante em parcelas de mil reais. Para dar conta, trabalhava das 7 da manhã às 5 da tarde na empresa e, em seguida, em uma pizzaria até a madrugada. “Essa rotina durou um ano. Não podia desistir porque precisava quitar minha casa e meu salário não era suficiente”, explica ela. Após a faculdade, foi contratada como inspetora de qualidade na mesma empresa que ingressou como terceirizada.
Apesar de o Brasil ter melhorado seus índices na última década, não deve bater a meta do Plano Nacional de Educação de ter um terço dos jovens de 18 a 24 anos na graduação até 2030. O ritmo de expansão caiu desde 2015, ano em que o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), fonte volumosa de novas matrículas, passou a ter restrições a novos contratos, reduzindo vagas. Quem ingressa no ensino público também não consegue garantir sua permanência. A aprovação na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) parecia ser a linha de chegada para Bárbara Coimbra, 25 anos. Ela começara a trajetória no cursinho, onde havia estudado por três anos com bolsa. Sentia constantemente pressão para não desperdiçar a oportunidade que poderia mudar sua vida. A situação não era de vulnerabilidade, mas estava longe de ser o contexto ideal para perseguir o sonho em geral reservado a quem teve acesso a uma educação sem lacunas. Pesava o desemprego do pai, que se arrastou por grande parte da sua infância e adolescência, só restando a renda da mãe, professora contratada no ensino público. “Era uma ansiedade permanente; sentia que devia isso a todos que me ajudavam”, diz ela. Sem ter como custear tratamento psicológico, fez acordo com uma psicoterapeuta de que ofereceria aulas de ortografia em troca das sessões.
Já na faculdade, trabalhar seria impossível diante da necessidade de dedicação exclusiva, somada aos deslocamentos diários de quase quatro horas entre os campi da faculdade e a casa dos pais, em Interlagos, bairro no extremo sul de São Paulo. “Eu tinha a sensação de não pertencer àquele espaço, estudava muito e não conseguia boas notas. No começo, pensava que, se eu reprovasse, ficaria para trás”, conta ela, que recebeu diagnóstico de síndrome do pânico. Nas crises, fantasiava a própria morte. Conseguiu o tratamento na própria universidade; sem isso, dificilmente teria prosseguido com os estudos. “Via amigas que perderam o ano por questões de saúde mental, o que não tem a ver só com a faculdade, mas com tudo o que carregamos antes dela”, diz. Atualmente, Bárbara está no 4º ano da graduação, período em que começa a apoiar médicos em atendimentos no Hospital das Clínicas, exigindo cerca de 12 horas de dedicação diárias. “Minha preocupação era morar muito longe e não ter como chegar em casa. Então economizava toda a bolsa de monitoria, de 400 reais, que recebia”, diz. Atualmente, ela divide um quarto na casa de uma família próxima do hospital, região de aluguéis elevados.
Ir além da graduação exige ainda mais esforços, já que faltam incentivos, especialmente financeiros. O capítulo mais recente dessa luta foi o corte de recursos destinados aos Ministérios da Educação e da Ciência, principalmente concentrados nas agências de fomento à pesquisa e ao ensino, como Capes e CNPq. Isso se reflete no pagamento de bolsas de financiamento à pesquisa – espécie de salário pago a parte dos pesquisadores para conduzir seus estudos. No total, somente na Capes foram cortadas quase 8 mil bolsas. Os impactos devem ser sentidos no futuro, já que afetam o desenvolvimento de tecnologias, a criação de medicamentos e até o entendimento sobre doenças graves. Durante a graduação em farmácia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Emanuela Tureta, 26 anos, fez pesquisas de iniciação científica, que podem garantir bolsa de 400 reais, em praticamente todos os semestres.
A última delas foi sobre doenças que o vírus Zika provoca. Neste ano, foi aprovada em terceiro lugar para o mestrado no programa de pós-graduação, o que, no passado, seria suficiente para disputar uma bolsa, mas recebeu a notícia de que os benefícios do CNPq haviam sido cancelados. “Quando poderíamos dar um salto de qualidade, isso nos foi tirado. É muito decepcionante”, diz Emanuela, que agora corre para conseguir um emprego para se manter. A sua pesquisa deve ficar paralisada. “Trabalhando é muito difícil, porque às vezes é necessário passar mais de 15 horas no laboratório para finalizar um experimento”, afirma. O coordenador do programa de pós-graduação, Hugo Verli, explica que esse recurso é fundamental para a qualidade dos estudos. “A maioria dos aprovados não deve seguir com a pesquisa ou irá fazê-la com menos tempo, levando a resultados inferiores aos que poderia alcançar”, afirma. Com isso, não são apenas os jovens os prejudicados mas toda a sociedade, que fica sem horizonte sobre os avanços que seriam feitos por essa geração tão aguardada.
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