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Dor e trauma: mulheres denunciam cardiologista Nabil Ghorayeb por assédio sexual

Leia os relatos de quatro vítimas sobre os ataques que acontecem há 30 anos

Por Isabella D'Ercole Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Marina Marques Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 15 jun 2021, 13h54 - Publicado em 10 jun 2021, 11h50

Há duas semanas, vieram à tona conversas que há algum tempo rolavam de forma privada entre algumas mulheres. Elas acusam o cardiologista Nabil Ghorayeb de assédio sexual. Alguns dos casos ocorreram há décadas, mas o padrão das situações denunciadas se repete.

“A minha mãe teve um infarto pouco antes do Ano Novo, em 28 de dezembro de 2020. Procurei especialistas e assim acabei no consultório dele. Ele me assediou numa consulta para falar do coração da minha mãe. Eu estava desesperada por uma opinião médica. Primeiro, ele disse que eu era bonita. Dali, os comentários misóginos continuaram. Gravei com meu celular e nunca mais voltei lá”, explica Adriana Rocha, de São Paulo.

Outras mulheres relatam cenas parecidas. O pai doente, elas mesmas sendo pacientes. Para algumas, os comentários foram sobre os seios delas e o corpo – a pergunta era seguida sobre o método para conquistar a forma: “Você faz algum esporte?”.

Não demorou para aumentar o número de mulheres se manifestando. Nabil foi afastado do Hospital do Coração (HCor), em São Paulo, na terça, 25 de maio, após a denúncia formal das vítimas ao Ministério Público Estadual. O hospital oferece um canal de denúncias. Não é necessário ser funcionário para usar esse meio. Nabil ainda foi afastado do Globo Esporte, onde atuava como colunista.

Segundo a revista VEJA, já há 7 acusações formais contra o médico. Quem encaminhou as primeiras foi a promotora de Justiça Gabriela Manssur, colunista de CLAUDIA, colaboradora da Ouvidoria Nacional do Ministério Público e fundadora do projeto Justiceiras, que oferece apoio psicológico a algumas das vítimas.

“Conversei com uma vítima há algum tempo, mas ela não estava preparada para fazer uma denúncia formal. Depois, mais fortalecida, foi ouvida pela Ouvidoria das Mulheres no Conselho Nacional do Ministério Público por videoconferência. A ouvidoria encaminhou as oitivas e as denúncias às autoridades competentes”, comenta Gabriela.

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“As vítimas estão recebendo o apoio do projeto Justiceiras, como assistência social, psicóloga, advogada e rede de acolhimento específico para casos de abuso de autoridade ou de influência do autor dos fatos sobre as vítimas. É importante dar visibilidade a essas denúncias para que outras mulheres se sintam à vontade e fortalecidas para denunciar, sabendo que suas vozes serão ouvidas e o caso será encaminhado para as autoridades competentes”, completa a promotora.

CLAUDIA conversou com cinco vítimas, mas apenas quatro permitiram a publicação de seus relatos completos. Abaixo, elas explicam como o trauma moldou a vida delas e relatam a força necessária para fazer uma denúncia.

O trauma de Julia*

“Fiz estágio de reabilitação cardíaca no Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia, em 1999. Na época, era educadora física. Foram seis meses e, na sequência, no final de 2000, fui para a área de cardiogeriatria para fazer um trabalho de pesquisa. Foi lá que o conheci. Alguns dos meus pacientes também eram da seção médica de cardiologia do exercício e esporte, chefiada por ele.

Eu tinha um contato mínimo com ele, era um ou outro paciente que a gente dividia. Como eu passava os dados da pesquisa para o computador do chefe da geriatria, que era na sala em frente à dele, sempre nos cruzávamos no corredor.

Ele sempre foi muito incisivo, pegajoso, cumprimentava com a necessidade de me tocar, ora no braço, ora na cintura… Isso me incomodava demais. Sempre fui mais distante, avessa ao toque, não sou de cumprimentar com beijinho, então eu achava que o problema era comigo. Pensava que a pessoa era simpática só.

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Um dia, no período da tarde, quando a maioria dos chefes não estão no setor, ele me chamou no seu consultório: ‘Professora mais linda do Dante Pazzanese, deixa eu te mostrar um caso!’, disse ele. Entrei em seu consultório minúsculo, de paredes de divisória, como é em hospital público.

Achei estranho, mas depois foi tudo muito rápido e não me lembro quanto tempo passou. Ele veio para cima de mim, me pressionando contra a parede, passando a mão no meu corpo e perguntando se eu estava gostando. Consegui golpeá-lo com um chute e saí correndo pelo corredor.

Não disse nada. Eu me senti diminuída, impotente, sem forças. Larguei minhas coisas, voltei horas depois para pegá-las com a secretária dele e fui para a casa. Quando conto isso, ainda sinto o hálito dele no meu pescoço, de tão perto que ele estava quando me apalpou – e isso já tem mais de 20 anos.

Morava no interior e trabalhava na pesquisa com muita dificuldade, pois vim de uma família sem muitos recursos – fui a primeira a cursar faculdade. Não tive forças para fazer absolutamente nada. Quem acreditaria em mim? Eu me culpei. Como educadora física, estava sempre de camiseta e legging. Imaginei que ele pudesse ter entendido errado, que eu tivesse sido muito simpática. A gente sempre acha que a culpa é nossa, nunca culpamos o responsável pelo ato.

Comecei, então, a faltar no projeto de pesquisa, não conseguia entrar no Dante, ficava muito nervosa. Desisti do meu sonho, porque a ideia do projeto era que ele se tornasse meu mestrado.

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Para mim, esse caso estava adormecido, guardado no meu inconsciente. Mas, no dia 24 de maio deste ano, um colega me mostrou a reportagem sobre as acusações. Fiquei sem chão, passei mal e novamente me culpei.

Descobri que não fui a única e que existem muito mais vítimas, e eu não havia feito nada na época. Me culpei novamente com a ilusão de que se tivesse gritado há duas décadas, talvez ele tivesse parado, e hoje não seríamos um número tão grande. Depois de ver a reportagem, levei dez dias para me tranquilizar e conseguir procurar o Ministério Público e o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) para fazer minha denúncia.

Agora tenho uma data marcada para meu depoimento. Não quero aparecer na imprensa, só quero que a carreira dele chegue ao fim, exatamente como ele fez comigo. Ele atrapalhou meu mestrado, atrasou minha vida, fora o trauma que não tem como ser esquecido. Eu sei que o que mais irei ouvir é: ‘Por que agora?’.

Porque agora sou forte, porque a dor estava aqui escondida e eu não sabia. Porque tenho sobrinha, filha, amiga. Entre as vítimas estão mulheres de 16 anos, de mais de 40, ou seja, era qualquer mulher que entrava no consultório dele. E quero que isso sirva como exemplo para os abusadores, de que não estamos sozinhas.”

Julia*, 44 anos

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A dor de Adriana

“No fim de 2020, minha mãe sofreu um infarto e comecei a buscar especialistas para uma segunda opinião de tratamento. Pesquisando na internet, achei o cardiologista renomado. Eu fui sozinha com os exames e faria uma chamada de vídeo com a minha mãe. Na recepção, preenchi todos os meus dados numa ficha. Também dei ao médico informações do leito da minha mãe, porque ele disse que tinha colegas lá que poderiam ajudar. Ele pediu à secretária para ligar para alguém no hospital. Foi isso que me deixou sufocada. Fiquei com medo de reagir na hora, de sair correndo ou fazer cara de nojo, porque não sabia o que ele poderia fazer com aquelas informações, com todos os meus dados.

O primeiro comentário dele foi que eu era bonita, e achei que podia ser uma tentativa dele de me fazer sentir bem. Depois entendi que era o começo de um assédio. Fez muitos comentários misóginos. Perguntou se eu fazia esportes, comentou do meu corpo. Comecei a gravar com o celular no colo, para ele não perceber.

Depois, fiquei me questionando por que tinha reagido assim. Entrei num modo de sobrevivência. Eu me critiquei muito por isso. Percebi que ele era uma pessoa inteligente, mas muito sexista, ele domina você no consultório. Naquele momento, eu achei que sorrir e fingir que nada estivesse acontecendo fosse o melhor pra mim e pra minha mãe. Mas me pergunto o que poderia ter feito.

Saí de lá e sentei na rua. Fiquei um tempo ali tentando me acalmar, porque tinha que ir pro hospital encontrar minha mãe. Minha família me acolheu muito. Resolvi fazer o BO e fui na delegacia. Fiquei seis horas aguardando ser atendida, quando chegou minha vez de falar, já estava cansada mas, valeu a pena me sinto orgulhosa de ter tomado esse passo pois encorajou outras vitimas a denunciarem.

Coloquei o BO na internet pra ver se mais vítimas se manifestavam. Se você tenta lutar sozinha, sua voz acaba sendo menor. Sempre acreditei na força do grupo. Foi assim que elas me localizaram e entraram no meu inquérito. A internet é uma ferramenta muito poderosa, então abrimos um canal de denúncias. Falamos também dos nossos casos para que mulheres vejam que é importante falar, mesmo se não quiserem mostrar o rosto ou se identificar publicamente.”

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Adriana, 42 anos

A vulnerabilidade de Jane

“Em 2003, fui orientada num pronto-socorro a procurar um cardiologista para acompanhar minha hipertensão. Escolhi pela reputação na sociedade. Fui com minha filha ao consultório e, ao entrar em sua sala, ele perguntou à minha filha: ‘Lindo os seios dela, não?’. Nó duas ficamos muito desconcertadas. Ele me direcionou para uma maca e aferiu minha pressão arterial. Nessa hora, passou a mão em meus seios. Eu notei que minha filha não tinha visto e controlei minha reação.

Na segunda consulta, deixei minha filha no carro. Fui para pegar uma receita. Ele me convidou para jantar naquela noite e levantou-se em minha direção para beijar minha boca. Empurrei-o com toda a força, fazendo-o derrubar os porta-retratos da família, ao lado da mesa. Saí correndo com vontade de gritar. A esposa dele tem um consultório ao lado da sala dele, a secretária talvez ouvisse. Mas percebi que ninguém acreditaria em mim.

Voltei para o carro pálida. Minha filha notou e perguntou o que tinha acontecido. Não tivemos coragem de fazer boletim de ocorrência, por medo da influência dele. A oportunidade surgiu 17 anos depois. Ele não me respeitou como mulher nem paciente. Ele sabia da minha hipertensão e o que poderia me acontecer como consequência da reação ao assédio.”

Jane, 65 anos

A lembrança de Daniela

“Ele era médico da minha família. Atendeu minha bisavó, tia, avós, e meu pai. Eu tinha 16 ou 17 anos e fui até o consultório. Ele me pediu para sentar na maca e tirar a camisa, depois o sutiã. Achei estranho, mas fiz o que pediu. Com naturalidade, ele auscultou meu coração e então apertou meu seio esquerdo. Aí comentou: ‘Seios lindos, firmes, durinhos’. Em seguida, perguntou se eu praticava algum esporte.

Eu congelei, fiquei completamente sem reação, sem fala. Queria sair de lá o mais rápido possível. Contei para minha mãe, mas nunca mais falei disso até ver uma pequena reportagem na TV em que citavam as outras vítimas e davam um meio de contato. Pesquisando na internet, achei a Gabriela Manssur e uma das mulheres citadas, que é a única vítima com quem tenho contato.”

Daniela, 46 anos

 

CLAUDIA entrou em contato com o advogado de Nabil Ghorayeb, Paulo Eduardo Soldá. Ele afirmou que o inquérito está sob sigilo e que o Ministério Público estendeu mais 60 dias o prazo de investigação para retomar o depoimento de uma das vítimas. “Um dos casos já prescreveu, a vítima não tomou iniciativa durante os anos. Não estou questionando o mérito, mas é o que a lei diz. Sobre o outro caso, o Dr. diz que não conhece a paciente. No outro caso, fizemos uma petição no Ministério Público e a investigação vai se prolongar. O relato dela mudou desde o BO e há inconsistências das provas. Orientei o Dr. Nabil a juntar todos os documentos possíveis e estamos aguardando a posição do juiz. Também aguardamos um posicionamento do Cremesp. A decisão de se afastar do HCor e do Globo Esporte foi do Dr.”, falou.

O Ministério Público abriu um canal de denúncias para acolher outras mulheres. Clique aqui para mandar um e-mail.

*Nome trocado a pedido da entrevistada

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