Em Ilhabela, Barca no Mar faz saborosa conexão entre a natureza e o prato
Com o litoral norte de São Paulo como pano de fundo, o restaurante flutuante apresenta sabores frescos, ao mesmo tempo em que estimula o consumo consciente
É num cenário paradisíaco, daqueles que nos fazem refletir sobre a beleza da vida, que Hortência Roberta faz malabarismos para preparar peixes fresquíssimos, que acabaram de sair da água. Se a profissão de chef de cozinha já é desafiadora por si só, imagine saltear lulas ou fazer um purê no balanço do alto-mar.
“Às vezes bate uma marola e mexe bastante, no começo foi difícil. Se bobear tem hora que cai tudo!”, conta a bem-humorada chef de 23 anos. Com humildade, Hortência fala sobre o trabalho como se fosse algo rotineiro, mas a verdade é que, mesmo ainda tão jovem, seu olhar para a gastronomia não tem nada de comum: é um talento a ser admirado.
Nascida em Ilhabela, no litoral norte de São Paulo, e dona de uma fala lenta, daquelas capazes de acalmar qualquer paulistano acelerado, Hortência cresceu em uma família de mulheres que sempre estiveram preparando algo na cozinha, seja sua mãe nos pratos do dia a dia, ou sua tia na confeitaria. Aos 16 anos, começou a trabalhar como garçonete em um restaurante local.
“Eu queria ir para a cozinha, mas eles não deixavam porque era muito nova”, relembra. Quando se formou no Ensino Médio, o irmão sugeriu que fizesse faculdade de gastronomia, algo que ela nunca havia considerado: “Isso acendeu uma luz na minha cabeça”.
Foi então que se mudou para Campos do Jordão, no interior de São Paulo, determinada a se tornar uma chef profissional — é na cidade que fica localizado o campus do Senac especializado em turismo e gastronomia.
Já formada e vivendo na capital paulista, a jovem fez parte da equipe do premiado Notiê, do chef Onildo Rocha. Por lá, percorreu todos os setores de uma cozinha profissional: da confeitaria aos pratos frios. Durante a experiência, a aprendiz pôde elaborar menus ao lado de chefs como Rodrigo Oliveira, do Mocotó, e elevar sua técnica a um novo patamar.
Por outro lado, estar longe de seu refúgio litorâneo pesou mais do que esperava. “A experiência de cozinha em São Paulo é ótima, mas se adaptar à cidade, que é tão diferente, é a parte difícil. Não aguentei e tive que voltar para a casa.”
Quem teve sorte com esse retorno foram os moradores e turistas de Ilhabela. Agora no comando da Barca no Mar, a chef tem tido espaço para deixar aflorar suas percepções de uma cozinha de praia que foge do convencional. “Quando voltei para a Ilha, fiquei receosa se me adaptaria ao trabalho, porque aqui tudo gira muito em torno da moqueca e da caldeirada, queria algo diferente.”
Com a proposta de despertar a sensação de liberdade nos comensais, a Barca no Mar é um restaurante flutuante coordenado pelas vontades da natureza: não existe itinerário fixo e o cardápio está sempre mudando, a depender da sazonalidade dos ingredientes. Os roteiros mais frequentes acontecem em direção à Praia do Bonete e de Castelhanos, mas a proposta é sempre explorar locais escondidos pelo Litoral Norte.
“Aqui não tem aquela tensão da cozinha, que é muito boa também, mas onde o contato direto com o cliente mal existe. Na Barca é tudo muito próximo”, explica sobre seu espaço de trabalho, um barco de madeira que comporta 16 passageiros.
Seus preparos, pensados junto à equipe, mesclam os sabores do mar a técnicas delicadas, a exemplo do tartar de carapau, servido na torrada de pão sírio com maionese de coentro.
Os patacones de banana-da-terra, aperitivo para abrir o apetite, são feitos com olhete defumado, técnica que garante mais sabor e textura. Entre os principais, a anchova grelhada é pescada por Rafinha, marinheiro da barca, e servida com purê de batata-doce, chalota e molho de limão.
“A gastronomia é a forma que tenho de agradar. Não sou uma pessoa muito carinhosa, que costuma presentear, meu negócio é fazer comida. Essa liberdade de elaborar o cardápio que gostaria, colocar em prática o que aprendi e absorver mais conhecimento todos os dias… É a parte que mais me faz feliz.”
CONSUMO CONSCIENTE
A essência da gastronomia caiçara, de buscar o próprio alimento e cozinhar, nunca foi um conceito elaborado pelos sócios Felipe Poli, Rodrigo Albertazzi e Max Motta. Isso porque, vivenciando o litoral, esses hábitos já faziam parte da rotina dos criadores da Barca no Mar.
“Nós temos uma casa no Bonete, que é uma comunidade bem isolada, onde só se chega de barco. Lá existe esse ambiente de pesca, então viemos desse universo”, conta Max.
A criação do negócio veio do desejo de unir essas vontades em comum entre os amigos: a comida local, a pesca artesanal e o mundo náutico. Entretanto, mais do que abrir um restaurante no mar, visando uma gastronomia sofisticada, o essencial para os sócios sempre consistiu em manter a essência e os ensinamentos proporcionados pela ilha.
Sendo assim, todo o funcionamento do empreendimento foi pensado para ocorrer em volta de um consumo sustentável, baseado no respeito ao que a natureza oferece. “Somos todos mergulhadores e pescadores, acabamos fazendo parte desse sistema. Quando mergulho, vejo diversas espécies e sei como se comportam. Tenho esse sentimento sobre tirar o peixe de lá”, relata.
Entre os pescados utilizados no cardápio estão espécies como carapau, sororoca e anchova – que possuem um estoque mais equilibrado. Salmão? Nem pensar. Num modo slow food, a missão dos proprietários é ter pescados variados e frescos, garantindo a informação de origem e dos métodos utilizados, desde a pesca até o prato.
Outro foco da equipe está no desenvolvimento de modos pensados de abatimento e conservação — como o ikejime, técnica centenária japonesa que proporciona um abatimento menos estressante para o peixe e garante a qualidade da carne.
“Buscar a própria comida é uma forma de valorizá-la muito mais do que se você comprar num mercado, porque você tira o peixe da água, você vê ele vivo. O processo de manipular e depois cozinhá-lo te faz apreciar o alimento. Afinal, você o retirou do seu habitat”, afirma Max.
Ele explica ainda que o município conta com diversas comunidades tradicionais caiçaras de pescadores, que possuem carteiras profissionais para poder capturar e comercializar esses peixes. Em algumas comunidades, a captura se dá pela pesca do cerco. “É um método em que o peixe cai vivo dentro de um cerco. Então se cair uma tartaruga ou algum peixe proibido, ele pode ser liberado com vida e voltar à natureza”, detalha o sócio.
E são desses fornecedores parceiros que vêm os insumos que complementam aqueles pescados pelo marinheiro da equipe. Além de fortalecer a economia local, os sócios acreditam em meios de reduzir as emissões de carbono: “Às vezes, o peixe nem precisa do barco, o pescador entrega pra gente direto na barca, é bem mais sustentável”.
Os passeios saem sempre de um píer na praia do Saco da Capela e os viajantes podem optar por experiências diferentes: Day Trip (um passeio de 6 horas no mar), Sunset (uma refeição mais leve durante o pôr-do-sol) ou o jantar. A proposta não é apenas comer, mas viver uma imersão que conecte gastronomia e natureza.
Para isso, a equipe trabalha em plena sintonia, cada um em sua habilidade principal. “A Hortência aguenta a bronca. Trabalhar no mar é extremamente árduo, além de cozinhar, é preciso se adaptar a todo um contexto. Ela está sempre aberta a aprender”, elogia Max, ciente das muitas engrenagens essenciais de seu barco.
Texto Marina Marques | Fotos Mariana Castanho | Direção de arte Kareen Sayuri