Juçara Marçal vive auge da carreira na música aos 60 anos
Aclamado álbum 'Delta, Estácio, Blues', lançado em 2021, consolida a voz madura da cantora e compositora que tem longa estrada na música brasileira
Devagar e sempre. Esse é o lema de Juçara Marçal, cantora de 60 anos que vive o auge de sua carreira após três décadas construindo uma identidade (e trabalho) musical de forma independente na cena da noite paulistana. Poderia ser reconhecida como uma grande sambista ou cantora de jazz ou de qualquer outro gênero. Preferiu ser muitas e todas elas. Todo esse talento multifacetado se derrama em Delta Estácio Blues, seu segundo álbum solo, lançado em 2021 e incensado pela critica brasileira e internacional. Entre tanto reconhecimento, apenas uma distinção faz afago em sua vaidade: o trabalho foi eleito Disco do Ano pela APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte). “Sempre sonhei com ele, porque os artistas que mais admiro têm um APCA no currículo. Mas vai além do prêmio em si, é o reconhecimento de quem entende a viagem, a trajetória, a proposta do que fiz até aqui. Isso chega muito nos shows, nas redes sociais, quando as pessoas falam ‘Nossa, não conhecia isso, que interessante! Quero ouvir mais'”, comenta ela sentada bem ereta, com postura elegante e um leve sorriso na entrevista em vídeo.
Delta Estácio Blues é um álbum diaspórico e essencialmente eletrônico, que dialoga com o jazz, o blues, o samba, o rap e funks antigos. Em 2017, quando começou a germinar o embrião do que seria o disco, Juçara já estava gostando de “cantar com alguns efeitos”. Ela sentou com Kiko Dinucci, cantor, compositor e guitarrista paulistano e amigo de longa data, e juntos construíram a sonoridade a partir das bases eletrônicas. Descargas de privada, barulhos de porta, pancadas e samples de LPs antigos de black music são alguns dos elementos sonoros que foram base para composições de artistas como Tulipa Ruiz, Maria Beraldo, Siba Veloso e Rodrigo Ogi, entre outros. “Foi uma tentativa de sair do usual da construção de uma canção, da coisa harmônica que segue um certo padrão. Mas, se você parte da base, ela te obrigada a pensar nessa coisa de harmonia de outro jeito”, explica Juçara.
Trajetória
Com seu som (quase) sempre experimental, ela não tem medo da originalidade. Nem do risco. É uma coragem de quem não conhece outro caminho além daquele que vai por fora da indústria mainstream. A fluminense que migrou para São Paulo aos 11 anos (é natural de Duque de Caxias) integrou o Coral do Meio Dia da Universidade de São Paulo (USP) e foi uma das fundadoras do Vésper Vocal, grupo feminino criado em 1992 para cantar músicas brasileiras a cappella. A partir de 1998, fez parte d’A Barca, grupo voltado para a pesquisa dos diversos matizes da música brasileira e, em 2004, cruzou caminhos com Kiko Dinucci, com quem gravou o álbum Padê (2007), mergulhando de vez na sonoridade afro-brasileira mesclada com o punk rock. “Eu navego muito nesse mar diaspórico, ouço muito as músicas da África de agora e de tempos atrás, mais tradicionais. Ritmos de matriz africana sempre estiveram presentes nas coisas que eu faço, curto muito rap, funk e música dos Estados Unidos”, conta Juçara.
O rap é, de fato, uma de suas paixões. Fã de Racionais MC’s, ela colaborou, sempre cantando refrões, com Criolo (na música Fio de Prumo, de 2014), Emicida (Samba do Fim do Mundo, de 2013) e Marcelo D2 (4ª às 20h, de 2020). Também já tinha cantado com o rapper Rodrigo Ogi, que assina a faixa Crash em Delta Estácio Blues. “Sou muito fã desse gênero, me apaixonei pelos Racionais e decorava todas as letras. Por afinidade, acabei me aproximando de quem trabalha com o gênero”, lembra, com um sorriso.
Mais ou menos na mesma época em que lançou o álbum Padê, a cantora formou com Dinucci e com o saxofonista Thiago França o trio Metá Metá, de alta experimentação musical, tornando sua voz conhecida país afora. “É uma construção muito aos pouquinhos mesmo. Delta Estácio Blues tem essa repercussão hoje por causa do que veio antes, não é que surgiu agora, mas tem uma trajetória que faz isso ter sentido”, diz.
Realização na música
Juçara estudou Matemática —queria ser analista de sistemas para ganhar dinheiro— mas depois cursou Jornalismo e Letras, quase ao mesmo tempo, e passou a trabalhar como professora. Foi assim que se sustentou até 2014, quando lançou Encarnado, seu primeiro álbum solo, no qual olhou a morte de frente e cantou sobre ela de forma visceral. Foi o trabalho que mais chamou atenção e começou a tirá-la do anonimato. Mas ela não sente ressentimento por só ter começado a viver de música mais tarde. “É da realidade brasileira. Quem não tem grana, inevitavelmente tem que se virar para conseguir fazer o que quer. Me considero até privilegiada de, nesse cenário tão inóspito, conseguir fazer meus projetos. Muita gente desiste ou faz uma coisa que nem curte tanto”, pondera.
Ela é consciente de que escolheu um caminho que talvez não tenha sido o mais fácil, mas diz que o prazer e a liberdade compensam. São o que a movimentam. “Se eu mantive tanto tempo essa vida dupla de dar aulas foi para fazer música do jeito que eu quisesse, porque se eu ficasse refém de uma gravadora ou um produtor, talvez não tivesse a liberdade que tenho hoje. “Tenho 60 anos e tem gente de 25 anos na minha banda. As coisas podem demorar mais, mas demora mais de um jeito tão prazeroso, você está ‘inteirona’ ali. Vale a pena”, ri. Juçara sabe que é verdade aquele ditado que diz que antes tarde do que nunca.