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Entrevista: A revolução poética de Françoise Vergès

Cientista política, historiadora e ativista, a francesa Françoise Vergès discorre sobre violência, racismo, sociedade e o papel da arte

Por Maria Carolina Casati, do @encruzilinhas
Atualizado em 13 dez 2023, 18h31 - Publicado em 10 dez 2023, 08h59

Em entrevista exclusiva, Françoise Vergès aborda os principais temas de seus livros Decolonizar o Museu, Um Feminismo Decolonial e Uma Teoria Feminista da Violência, publicados pela Ubu.

CLAUDIA: Em seu livro Uma Teoria Feminista da Violência, você afirma que as violências contra as mulheres não ocorrem porque os homens são essencialmente violentos, mas porque fazem parte de um Estado e um sistema capitalista que possibilita isso, certo?

Françoise Vergès: Essa questão é muito importante. Precisamos analisar também pensando a violência sistêmica a qual homens são submetidos em seus corpos e mentes. Os homens negros, por exemplo, na época da escravização eram (e ainda agora são) animalizados, proibidos de serem pais.

Quando as feministas brancas criticavam a família ou a paternidade, elas falavam da burguesia; não falavam sobre o fato de que a família para pessoas negras era um santuário, um lugar de solidariedade, de ajudar uns aos outros em um mundo que é realmente opressor.

É claro que se uma mulher negra é espancada por um homem negro, ela tem que ser protegida.

E também temos de ajudar esse homem a entender que essa violência não será aceita e que não se justifica de forma alguma. Ele tem que aprender a superar sua raiva e entender de onde ela vem.

Negros para a cadeia? Essa é uma solução que afasta a causa estrutural da violência. Eles [os brancos] fizeram isso em todos os lugares. As ruas não são seguras para negros, mas as pessoas querem que elas sejam seguras para brancos — e eles não querem ver moradores de rua ou profissionais do sexo, ainda que os tenham produzido.

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CLAUDIA: No Brasil, assim como na França, a colonização deixou marcas profundas, principalmente nos corpos de mulheres racializadas. Gostaria de ouvir suas considerações a respeito.

Françoise Vergès: Países como a França tendem a esconder as marcas da colonização. Ninguém se pretende mais universal do que os franceses, porque eles inventaram os direitos universais, a liberdade, a igualdade e a fraternidade.

Esse mundo foi construído e se sustenta em uma mentira constante. No minuto mesmo em que esses direitos foram criados, no século 18, já havia escravização. E a escravização durou até meados do século 19.

Todos os homens, porque eram homens, foram criados iguais. Exceto alguns. Então, como explicar a exceção?

Você é lembrado constantemente de que não será um membro pleno da sociedade; essa mesma que se diz aberta a todos.

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CLAUDIA: Em Uma Teoria Feminista da Violência, você fala sobre a espetacularidade da morte das mulheres por parte da mídia, que fornece detalhes e imagens, inclusive de seus corpos. Porém, os assassinos são protegidos em julgamentos a portas fechadas. Você acredita que a arte pode ser uma forma de “gritar” e expor tanto homens quanto governos agressores?

Françoise Vergès: Sim, acho, mas também penso que podemos “gritar” ocupando as ruas. Negros, mulheres, indígenas nas ruas é algo muito forte. Há algo potente na voz coletiva. Estar na rua, cantar, dançar… E estar na rua para as mulheres é relevante porque há coisas demais acontecendo dentro de casa.

A arte, a música, são potências. A música é uma mensagem muito forte porque é de circulação mais fácil do que os livros, é mais barato. Bob Marley trouxe para o mundo a discussão sobre a escravidão, com aquelas músicas, ouvidas em todos os lugares.

As pessoas podem cantar e isso não é uma mercadoria. Podem cantar dentro ou fora de casa, na cozinha ou na rua. Por isso, creio que a poesia é uma ferramenta com a qual podemos extravasar nossa raiva, ir a outros lugares, chorar e dizer que algo é pesado demais.

CLAUDIA: A música e a poesia nos lembram a tradição oral de nossos antepassados. Para nossos povos, falar é muito importante. 

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Françoise Vergès: Quando conversamos, dizemos que estamos exaustas, descobrimos que não somos as únicas, somos muitas e que há uma causa para esse cansaço. Há uma causa para essa angústia. O capitalismo nos faz acreditar que a culpa é nossa, como se fôssemos os únicos responsáveis, como se nosso sucesso dependesse de nós. Mas não depende. Isso não é verdade. Vivemos em um mundo social. 

CLAUDIA: Em um evento na Ocupação Nove de Julho, você disse que museus são cenas de crime. E eu achei isso tão perfeito, mas é uma afirmação muito forte…

Françoise Vergès: Quando eu digo que os museus são cenas de crime, digo que é um crime que não vemos, ele precisa ser revelado. Temos que revelar os crimes nessas cenas. Mas, para isso, temos que abordar a questão de forma eficaz.

Estamos investigando todo o crime. Porém, o que é extraordinário é o fato de os museus ocidentais serem um criminoso perfeito, uma vez que conseguiram esconder seu crime perfeitamente.

Não há criminoso melhor, porque se esconde sob a beleza: a produção da beleza, a beleza do edifício, o silêncio, como um templo ou uma catedral. Estamos cercados por coisas que são consideradas as mais bonitas.

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CLAUDIA: E tem também essa ideia: isso é arte.

Françoise Vergès: Sim, e o silêncio. Você entra em uma sala, entende que é um ambiente respeitoso. É um ambiente que te obriga a ficar em silêncio, em respeito. 

Deveríamos perguntar: aqui [no quadro] são pessoas? Por que vejo uma paisagem do Nordeste do Brasil no século 17? Por que eu vejo pessoas negras nessa obra? Por quê? Aquelas pessoas foram trazidas para cá, sequestradas, mas esquecemos isso porque a pintura é bonita. E, dessa forma, o museu é capaz de lavar o sangue. Ele lava essa mancha e nós não ouvimos os gritos. Pintores não retratam a problemática da escravização, porque não viam as pessoas negras, pintaram paisagens e colocaram pessoas negras nelas.

O museu pegou algo que pertencia a um ambiente social e cultural, um ambiente afetivo e o transformou em um objeto rígido. Isso para mim é uma grande questão. Isso é o que o ocidente faz: transforma nosso mundo em objeto.

E não estou falando que não devemos ter museus, mas precisamos nos questionar sobre como fazê-lo. Todo museu é uma cena de crime. Não porque as obras expostas foram necessariamente saqueadas ou roubadas, mas por conta dessa transformação: algo vivo é transformado em uma coisa, um objeto morto.

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Césarie dizia que há um certo nível de reparação que nunca será possível, mas isso não significa que não possamos fazer nada, porque nós vivemos nesse mundo.

O que fazemos com esse mundo que foi construído pela escravização? Não podemos dizer que tudo foi perdido, porque, a despeito da incrível exploração e desapropriação que sofremos, conseguimos criar e preservar coisas. 

Herdamos o mundo, de luta, resistência. Mundo também, claro, de luto e perda, mas somos seres humanos e sabemos que os seres humanos não são completos, nos construímos nas relações. 

Se temos apenas fragmentos da nossa história, isso já é muito. Você vai à casa de famílias brancas e conhece todos os ramos da árvore genealógica, todos os tataranetos, de pai para filho, toda aquela árvore patriarcal. Nós não precisamos disso.

A gente tem outra história que não essa, outra memória, outra narrativa. Então, sim, sofremos alguma perda, mas isso não significa que não existimos. Nós existimos. Nós também somos mais fortes. Porque não precisamos dessa árvore genealógica para existir. 

CLAUDIA: Em Decolonizar o Museu, você afirma que é impossível fazer isso com os museus ocidentais porque eles são a personificação da colonização. Mas o que podemos fazer?

Françoise Vergès: Nós vamos ter que lutar, vamos perder algumas pessoas ao longo do caminho. Vamos chorar, nos enlutar, mas vamos lutar! Porque se não colocarmos desordem absoluta nessa bagunça e nesse caos que está destruindo o planeta, nós vamos morrer.

O projeto do capitalismo racial é matar. É extrair tudo e depois sonhar em ir para Marte. Há o que pode ser feito nos museus enquanto instituições para pressioná-los à mudança.

Quanto está recebendo a mulher que faz a limpeza? Por que ela é menos remunerada que o artista? Qual é o treinamento dos guias, dos seguranças e de quem controla o acesso? Qual é seu nível de escolaridade? Qual é o currículo deles? Quem faz parte do educativo? Há pessoas negras nesses cargos? Quem é o diretor? Todos podem falar sobre as escolhas curatoriais? Como é a arquitetura? Todos são bem-vindos?

Há muitas coisas a serem feitas. Mas não será um museu decolonial. Será um museu no qual teremos um pouco mais de justiça social. O que é muito importante. Mas, se formos decolonizar, não haverá mais museus.

Livros de Françoise Vergès

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