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Sai o negroni e entra a carqueja: drinques brasileiros de Néli Pereira

Em seu novo livro, a bartender e jornalista Néli Pereira mostra como (e porque) usar ingredientes nacionais no preparo de drinks autorais

Por Marina Marques Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 22 fev 2023, 12h06 - Publicado em 21 fev 2023, 08h09

Esse texto não poderia começar sem propor um resgate de memórias gustativas. Você consegue se lembrar do sabor de frutas do bosque? Ao pensar no mirtilo ou na framboesa, por exemplo, fica fácil de lembrar da adstringência, do dulçor… Principalmente quando falamos de coquetelaria, lugar em que esses frutos estão tão presentes. Mas, e se citarmos carqueja, mastruz e jurubeba — você se lembra do gosto? A reação de estranheza é comum, não se acanhe, foi assim também com Néli Pereira no início de sua carreira como jornalista e mixologista. Mas, ao contrário de nós, ela usou a sensação como oportunidade para trazer protagonismo os sabores de um Brasil, que parece tão distante, aos drinques.

Receber Néli Pereira - Autora de Da Botica ao Boteco
A jornalista e mixologista Néli Pereira (| Foto: Marcos Bacon/Divulgação)

“A cultura brasileira foi o gancho de tudo, se não fosse por ela, eu não estaria fazendo coquetelaria. Somos pouco curiosos e relapsos com o que é nosso. As pessoas me perguntam se viajei muito para fazer minhas pesquisas. A verdade é que não e nem precisaria, porque basta olhar na esquina de casa — a gente que não olha”, expõe Néli.

Esse interesse floresceu por volta de 1997, quando ela estreou em seu primeiro emprego numa rádio de Curitiba. “Pude entrevistar muita gente: Dona Ivone Lara, Bezerra da Silva, Ariano Suassuna… Como não existia internet igual hoje, precisei estudar muito e logo me apaixonei”, relembra a jornalista, que, mais tarde, se especializou em identidade cultural brasileira e políticas culturais.

“A coquetelaria brasileira é uma pesquisa de sabores, mas também de saberes, não se dissocia uma coisa da outra”

Néli Pereira

O interesse pelos assuntos etílicos veio um pouco depois, quando se dedicou a visitar alambiques, vinícolas e estudar mixologia. Em 2012, com a abertura do Espaço Zebra, galeria de arte em São Paulo idealizada por seu marido, o artista Renato Larini, Néli aproveitou para inserir ali um bar, colocando em prática seus saberes.

“Naquela época, estava tendo uma onda muito forte no exterior de coquetelaria autoral, voltada para ingredientes locais. No Brasil, isso ainda era incipiente, inclusive com importação de técnica e ingredientes. Vi uma grande oportunidade de pesquisar insumos nacionais.”

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Em uma visita rotineira à zona cerealista, região de comércio no centro da capital paulista, para mergulhar, à época, nos bitters, Néli se deparou com um boteco que dispunha garrafas com etiquetas diversas com dizeres como carqueja, butiá, sassafrás, jucá. “Na hora, pensei: ‘que ignorante que sou!’”, ri. “Isso sempre esteve por aí e não me dei conta. Fiquei estupefata. Foi uma viagem sem volta, queria saber sobre essa infusão de botecos e como aquilo chegou naquela prateleira.”

Receber Néli Pereira - Drink Isso não é um Viagra da Amazônia
‘Isso não é um Viagra da Amazônia’ é um potente drinque com catuaba, cumaru e café (| Foto: Marcos Bacon/Divulgação)

Foram dez anos de estudos até chegar no que viria a ser o recém-lançado Da Botica ao Boteco (Companhia das Letras, R$ 59,90), publicação dedicada à apresentar ao leitor (dos mais leigos aos mais aficionados por gastronomia) um pouco desse universo tão vasto. Com ajuda de entrevistas, leituras e vivências, Néli nos conduz pelas raízes medicinais e alquimistas da coquetelaria brasileira.

“Eu nunca achei que as pesquisas virariam um livro, era um compilado meu. Mas caso um dia alguém se interessasse, encontraria ali a história do surgimento das garrafadas e um levantamento que se encaixa nos estudos decoloniais. Há uma crítica e uma contribuição nova. Quando sentei para escrevê-lo, durante a pandemia, o estudo já estava ‘pronto’, bastou reunir tudo.”

Receber Néli Pereira - Drinque Mastruz com Leite
O drinque ‘Mastruz com Leite’ é feito com mastruz, erva adocicada, e também licor de catuaba (| Foto: Marcos Bacon/Divulgação)

Entre palavras e botecos

Já no prefácio, Néli indica a relevância de olharmos para o que produzimos por aqui, citando um fragmento de “Buriti”, conto de Guimarães Rosa: “Tomar para mim o que é meu”. E nada mais brasileiro que um boteco, não é mesmo? “No Brasil, sofremos de referencial. Quando a gente se encanta com algo, é fácil tomar para si. Ao trazer esse conto, estou falando sobre referenciar quem veio antes de você. Dessa forma, a gente só engrandece a nossa cultura”, explica.

Receber Néli Pereira - Drinque Macaia
O drinque ‘Macaia’, de rum envelhecido e Averna, é enriquecido com um preparo adocicado da árvore jucá (| Foto: Marcos Bacon/Divulgação)

Além disso, para a pesquisadora, é impossível desconectar os estudos sobre as ervas dos misticismos, ritos e crenças medicinais. “Esses ingredientes estão na medicina popular, então precisei ir atrás de quem faz remédio, de quem benze… Eles sempre vêm carregado de muita história.”

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A fava de aridan, por exemplo, um ingrediente frequente nos seus preparos, não é comum de ser visto nessa função. “Converso com pais de santo, por conta da pesquisa e do meu interesse, e muitos deles não sabiam que era comestível, e, sim, um elemento de ritual. É possível fazer um mapeamento só de sabores, mas, para mim, não faz sentido não referenciar o conhecimento”, pontua.

O lado doce do amargor nos drinques

Um dos principais desafios de Néli Pereira ao trabalhar com esses ingredientes foi trazer equilíbrio de sabor e quebrar preconceitos. “Inicialmente, a resposta era muito negativa. O público não queria beber carqueja, mas negroni. Eu colocava no cardápio e as pessoas falavam que a avó fazia chá disso, que era amargo… Como se fosse algo ruim”, recorda.

Receber Néli Pereira - Drinque Negroni Nativo
O drinque Negroni Nativo é feito com licor de catuaba (| Foto: Marcos Bacon/Divulgação)

Para reverter o cenário, ela montou um herbário dentro do Zebra, assim era possível a clientela ter contato com as ervas, sentir o cheiro delas e tocá-las. “Não foi de um dia para o outro. Os primeiros drinques entraram no cardápio em 2014, e só em 2018 as coisas começaram a andar”, conta. Ela passou, então, a montar coquetéis conhecidos, mas com novos ingredientes.

Receber Néli Pereira - O drinque Carqueja Spritz'
Primeiro drinque criado por Néli com essa erva de amargor intenso, o ‘Carqueja Spritz’ equilibra o sabor com o dulçor do Aperol (| Foto: Marcos Bacon/Divulgação)

Caso do Carqueja Spritz, uma releitura do Aperol Spritz: o sabor diferente fica por conta da planta, que vai dar adstringência, secura e um amarguinho que o drinque clássico não tem. Não gosta de catuaba, mas de negroni? No lugar do vermute, Néli acrescenta um infusionado da planta, resultando num drinque mais terroso e tânico. “Depois, com uma aceitação maior, passei a usar esses sabores de outras formas, às vezes a infusão fica tão boa que sozinha já é um coquetel”, explica.

Entre tantos testes e experimentos, para Néli só há uma regra: o respeito ao ingrediente. “Nunca vou fazer um coquetel de gim, mas de cumaru, que vai me dizer como vou trabalhar. Nessa lógica, sinto uma necessidade absurda de não esconder o ingrediente, ele deve ser o protagonista.” É por isso que, dificilmente, seus coquetéis contam com mais de três insumos:
e assim eles brilham em suas criações tão cativantes.

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Receber Néli Pereira - Drinque Olhai os Lírios
O drinque ‘Olhai os Lírios’ é feito com gim infusionado com flor de lírio-do-brejo (| Foto: Carol Gherardi/Divulgação)

DESCUBRA ALGUNS SABORES BRASILEIROS

Catuaba: Tânica, terrosa, adstringente, amarga e amarrenta: uma das favoritas de Néli, a casca de sua madeira rende um potente licor. “A catuaba esfrega na nossa cara o quanto a gente não conhece o Brasil, é uma árvore que tem gosto delicioso e a gente tem obrigação de conhecê-la.”

Carqueja: Adstringente, herbácea, áspera e de retrogosto amargo e persistente: para Néli, a mais desafiadora das plantas. “O amargor dela, de fato, é diferente da catuaba, que você facilmente relaciona com algo terroso. A carqueja é exigente, porque é difícil ela não tomar conta de tudo. Foi aí que descobri que ela não precisava tomar conta de tudo, mas ser um ingrediente de fundo, como uma cama.”

Jurubeba: Amarga, carnuda, ácida, adstringente, levemente adocicada: a favorita de Néli. “Ela é inacreditável, uma graça, o livro termina com um ode à jurubeba, porque é extremamente versátil e, por ser da família do tomate, apresenta um leve umami.”

Sobre o livro

Livro 'Da Botica ao Boteco', por Néli Pereira
Livro ‘Da Botica ao Boteco’, por Néli Pereira (| Foto: Divulgação/Divulgação)

Da Botica ao Boteco é resultado de dez anos de pesquisa da jornalista, mixologista e pesquisadora Néli Pereira. A obra nos convida a adentrar num universo de novos aromas e sabores que, na verdade, sempre estiveram tão perto. Com um texto saboroso e bem-humorado, ela conta história e curiosidades das plantas, das garrafadas e da coquetelaria brasileira.

Preço R$ 59,90 | Editora Companhia das Letras | Páginas 208 | Compre aqui

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