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Elas, Nós por Elizabeth Cardoso

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Doutora em Teoria Literária pela USP, Elizabeth Cardoso (@elizabethcardoso357) é escritora e professora do Programa de Pós-graduação em Literatura e Crítica Literária na e do Programa de Educação: Psicóloga da Educação, na PUC-SP. Na academia, pesquisa literatura de ancestralidade negra, do romance contemporâneo, da literatura infantil e da formação de leitores de literatura.

A geologia da resistência

Uma história sobre Florence Bascom, PhD em geologia

Por Elizabeth Cardoso
7 nov 2023, 08h16
A história da Anne.  (Jessica Hradec/CLAUDIA)
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Tinha chegado o dia de pôr fim à curiosidade sobre a instalação do biombo misterioso na sala de aula da faculdade. A fofoca que rolava pelo campus era que a peça serviria para esconder uma aluna. Uma mulher que tinha conseguido na justiça o direito de assistir as aulas.

Diziam que a permissão do juiz vinha com a condição de que a mulher não perturbasse o aprendizado dos estudantes. Durante as negociações, chegaram à solução de colocá-la sentada atrás de um biombo onde permaneceria calada. Se tivesse dúvidas, deveria escrever cartas aos professores. Assim, os estudantes não veriam seu corpo, não ouviriam sua voz, não seriam incomodados. 

Anne ficou hipnotizada com essa história. Uma mulher frequentando aulas na universidade era grandioso. Pensou que esse poderia ser um sonho para sua filha ou para sua neta, talvez. Ela já tinha sua meta de vida: ser datilógrafa. 

Anne era nova no serviço de limpeza da universidade. Gostar, não gostava. Mas era melhor do que ajudar a mãe a cuidar dos outros onze filhos. Anne queria ir para cidade grande, trabalhar, ganhar seu próprio dinheiro, ter seus filhos com alguém que a amasse, quem sabe? Tudo era possível nas grandes cidades.

Também disseram a ela que na universidade ela poderia subir de cargo e até, com o tempo e muita dedicação, ter alguma função administrativa na burocracia da instituição. Uma datilógrafa… isso sim seria o trabalho dos sonhos.

Tinha tudo planejado. Primeiro, juntar dinheiro para comprar uma máquina de escrever e praticar; depois, conseguir uma chance de mostrar o que sabia e pronto, largaria a vassoura para ocupar uma cadeira e uma escrivaninha forrada de papéis com uma máquina de escrever à frente. 

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Enquanto esse dia não chegava, Anne continuava varrendo e gostou do agito criado pela chegada da ordem da instalação do biombo. O pedido casou espanto nos ajudantes de manutenção e limpeza da universidade. A primeira reação do chefe do serviço foi retornar com o pedido e verificar se a instalação não deveria ser feita no vestiário ou na recepção do restaurante universitário.

Não. Não. Era isso mesmo, devia instalar o biombo na sala de aula 45. Foi aí que a fofoca começou. O alto escalão da limpeza, dizia que era tudo invenção sem fundamento. Imaginem se uma mulher consegue cursar a universidade? Nunca. 

Entremeio a discussão, passaram a talhar o móvel. Havia pouco tempo para a entrega, as aulas logo começariam e era urgente que o biombo estivesse instalado já no primeiro encontro. Anne era a mais interessada, pois o tal do biombo era motivo de visitas constantes do pessoal da administração no galpão da limpeza.

Eles apareciam por lá diariamente, em vários turnos e em grupos, para fiscalizar a feitura do biombo celebridade. Anne sempre ficava por perto, tentando conseguir contato com alguém do escritório, a fim de cavar sua grande oportunidade de tornar-se datilógrafa. Mas seu chefe não dava chance. Só eu posso falar com os doutores burocratas. Fiquem longe, em silêncio, façam seu serviço e mostrem organização. Ele sempre declarava essa ordem olhando para Anne.

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Certeza que sabia de suas intenções. Não que não gostasse dela, na verdade, até admirava o fato de conseguir ler e escrever, coisa rara entre as mulheres, dizia fingido elogio, mas Anne intuía que se dependesse dele a vassoura nunca sairia de sua mão. De todo modo, o galpão da limpeza e da manutenção ser o centro das atenções fez com que os dias passassem com a alegria que a esperança traz. 

No último dia do prazo, vinte quatro horas antes da entrega, o diretor da faculdade em pessoa foi até o galpão da manutenção e limpeza verificar se o biombo estava apropriado. Não, não estava. Segundo ele, faltava abrir um recorte de mais ou menos vinte por cinco centímetros na folha do meio. Mas em qual altura? Perguntou o chefe da manutenção, estranhando o pedido.

O homem apertou os bigodes pensativo e buscando uma régua pelo ambiente. Até que apontou para Anne. Você. Traga uma cadeira e sente-se atrás do biombo, de frente para a folha do meio. Anne atendeu ao seu pedido e enquanto mediam o ponto de seu olhar na madeira e cortavam o retângulo revelando o outro lado biombo, Anne entendeu que o boato era verdadeiro.

O buraco se abriu, ela curvou o corpo para acertar o ângulo e responder afirmativamente à pergunta do diretor, consegue nos ver? O diretor completou a vistoria tirando da pasta um tecido fino, transparente, que mandou instalarem por cima do retângulo, para os olhos não serem vistos

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Anne quis perguntar para que tudo aquilo, mas saiu do biombo calada, pensando na única resposta possível no lado de cá do biombo, apesar de tudo, a mulher estaria lá, ocupando esse lugar proibido, abrindo espaço para outras, sem contar tudo que poderia fazer com seus conhecimentos. Eles que pensem que estão do lado certo do biombo

No dia seguinte, Anne não teve dúvida em se esconder entre a porta e a cortina da sala de aula com o biombo e testemunhar a história. Viu quando Florence entrou na sala e percorreu o espaço vagarosamente retirando as luvas e deslizando seus dedos pelas carteiras, como quem procura o tecido certo.

Parou no meio da sala, girou observando todo o espaço até seu olhar encontrar o de Anne. Pareceu que iria falar algo, mas foi cortada pelo professor que chegou, deu bom dia, e indicou a carteira atrás do biombo. Florence retornou o comprimento e se acomodou no lugar destinado. Anne continuou olhando para a mulher. Achou-a altiva, segura, certamente inteligente, e gostou da paz que ela ressoava, mesmo diante de tamanha ofensa.

Florence colocou seu bloco de notas e alguns livros em cima da carteira. E disse ao professor que estava pronta. A entrada dos outros estudantes foi autorizada, podem entrar senhores, mas Anne ouviu vem pessoal que o corpo da mulher já está escondido. Enquanto os ternos e gravatas se acomodavam impávidos em suas carteiras, Anne viu Florence retirar um pequeno frasco de perfume da bolsa e borrifar em seu pescoço e duas vezes no ar.

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Venho escrevendo histórias de mulheres ficcionais com forte vínculo com a realidade vivida por todas nós. Na coluna, “Elas, Nós”, escrevo histórias de mulheres reais com a fina eletricidade da ficção para inscrevê-las como um nós. São histórias extraordinárias, mas que permanecem silenciadas. Cercadas de injustiças e violências enfrentadas, muitas vezes, até a morte. Esse enfretamento me interessa, pois daí podemos retirar um ensinamento valioso: nunca desistir de ser quem somos.

Florence Bascom (1862-1945) recebeu o primeiro título de PhD em geologia em uma universidade americana, depois de cursar aulas escondida em um biombo para não “perturbar” os homens. Seu currículo de conquista é extenso, mas o reconhecimento não. Situação que espelha a realidade de apenas cerca de 3% dos prêmios Nobel de ciência terem sido entregues às mulheres, apesar da existência de inúmeras cientistas brilhantes. Algumas dessas histórias estão no livro A história da ciência para quem tem pressa, de Nicola Chalton e Meredith MacArdle, da editora Valentina, e La ciencia oculta, de Sergio Erill, disponível para download gratuito, fonte da história aqui ficcionalizada. 

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