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Os próximos desafios na luta pelos direitos da mulher

É preciso ter força e coletividade para seguir em frente

Por Isabella Marinelli Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 18 fev 2020, 10h54 - Publicado em 8 mar 2019, 08h00
Feminismo
 (Reprodução/CLAUDIA)
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O movimento feminista amplificou discussões nos últimos anos. Retomou espaços coletivos e se fortaleceu com a presença de jovens nas lideranças. As pautas já não podem ser ignoradas, mas ameaças de retrocesso são constantes. Foi um relatório da Organização das Nações Unidas de 2018 que apontou tudo isso.

Também acendeu um alerta: o crescimento de regimes fundamentalistas e ultraconservadores ao redor do mundo coloca em perigo a luta pela igualdade de direitos. “A resistência aos movimentos progressistas sempre existiu, mas agora se manifesta de forma diferente. Os conservadores os enfraquecem criando narrativas em que aparecem como grandes inimigos”, explica Flávia Biroli, professora de ciência política da Universidade de Brasília.

Nessa toada maniqueísta, ganha força o discurso que tira os papéis de gênero do âmbito político e os devolve à natureza, uma força certa, inquestionável. “Se a mulher ganha menos por falta de políticas afirmativas, é uma questão social. Mas como contestar a alegação de que biologicamente o lugar dela é na reprodução e no cuidado do próximo?”, exemplifica.

No Brasil, a estratégia pode ser observada em algumas declarações políticas recentes. Faz sentido. Afinal, apesar da renovação de 52% da Câmara e 86% do Senado nas eleições do ano passado, o Congresso Nacional atual é o mais conservador das últimas quatro décadas, segundo o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap).

Os representantes muitas vezes argumentaram contra a laicidade do Estado e a agenda progressista e feminista. A seguir, destacamos pontos fundamentais para a equidade, que ainda se depara com grandes barreiras.

Confira:

Enfrentamento da violência de gênero

Feminismo
(Reprodução/CLAUDIA)

Propostas em tramitação e decretos preveem mudanças na legislação que afetam diretamente as mulheres. É o caso das novas regras para a posse de arma de fogo em casa, estabelecidas em decisão assinada pelo presidente Jair Bolsonaro. Facilitar a obtenção de revólveres e munição aumenta o risco de morte para a mulher. Afinal, é dentro de casa que hoje acontecem 30% dos feminicídios.

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Valéria Scarance, promotora do Ministério Público de São Paulo, ainda descarta que o instrumento poderia servir para a defesa das vítimas: “Os ataques letais acontecem depois de um processo extenso de dominação; então elas não conseguiriam reagir. No caso de uma mulher com posse, é possível que ela esteja armando seu algoz”.

A Lei Maria da Penha prevê a perda do direito à posse para acusados de violência contra a mulher. Entretanto, a lei, que até hoje é tida como uma das mais modernas do mundo em relação à proteção feminina, ainda encontra desafios no dia a dia.

“Há resistência em aplicá-la por incompreensão do que é a questão de gênero; do perigo ao qual a vítima continuará exposta; e até mesmo da extensão dessa violência para os filhos da mulher”, explica Valéria. Nem todas as autoridades foram capacitadas de maneira correta, e o machismo ainda determina o resultado dos processos.

É comum, por consequência, acontecer a revitimização da mulher, ou seja, que ela seja continuamente afetada pelos traumas deixados após a agressão. “Para evitar que isso ocorra, é preciso uma rede completa de atendimento, que deve compreender não só a área de psicologia e assistência social como também os atendimentos nos hospitais e nas delegacias, além do julgamento por autoridades com capacitação em gênero”, sugere.

O mesmo serve no caso de abuso sexual, cometido dentro ou fora de casa. “O maior desafio no enfrentamento da violência de gênero é desmontar o modo como ela segue sedimentada na nossa cultura”, finaliza.

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Combate ao racismo estrutural

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(Reprodução/CLAUDIA)

Tão intrínseco quanto a naturalização da violência é o racismo. Andam lado a lado em um sistema que vitima as mulheres negras. Elas são a base da pirâmide das disparidades sociais, aponta o estudo Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça, publicado em 2017 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada em parceria com a ONU Mulheres.

O relatório demonstrou que, apesar de o rendimento das mulheres negras ter sido o que mais se valorizou entre 1995 e 2015 (80%), a escala de remuneração seguiu sem alterações: homens brancos ganham mais, seguidos pelas mulheres brancas, homens negros e, por último, pelas mulheres negras. Elas também são as que menos estudam – apenas 10% concluem o ensino superior no Brasil.

Por essas fragilidades, todo tipo de política pública ou direito tolhidos as afetam profundamente. “O racismo estrutural é uma espécie de hidra, com várias cabeças, que se manifesta em muitas frentes”, explica Zelinda Barros, antropóloga e professora da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira. Desde as instituições até as próprias famílias perpetuam as dicotomias sociais ao introduzir desafios na escolarização, no mercado de trabalho e nas relações interpessoais.

É necessário, portanto, que as estratégias de enfrentamento sejam tão articuladas quanto os problemas colocados. “O combate ao racismo no âmbito individual dificilmente vai gerar um grande resultado. As pessoas brancas precisam entender que a luta negra não pertence somente aos negros. Já as instituições devem se reconhecer como racistas para se transformarem”, reflete Zelinda.

Os instrumentos legais já existem. Deve-se cobrar outros tipos de ações que construam isso na prática. Um dos caminhos apontados por Zelinda contra a invisibilidade é assegurar a permanência negra na universidade não apenas pelas cotas de entrada e auxílio financeiro mas, sobretudo, pela valorização do conhecimento produzido por essas pessoas.

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“Há um termo cunhado especialmente para isso: epistemicídio. É o cenário em que o reconhecimento da produção intelectual segue pautada por valores eurocêntricos, ocidentais e brancos”, explica. Se a cultura é um fator identitário, então esse é um movimento também de humanização. “Nossa desumanização permeia a forma como somos tratadas, seja no acesso aos serviços públicos, seja em estabelecimentos particulares, quando somos vigiados e vistos como suspeitos”, afirma.

Reconhecimento e erradicação da LGBTFOBIA

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(Reprodução/CLAUDIA)

A rede de opressões sociais é muito extensa e, via de regra, se manifesta em mais de uma vertente entre as minorias. O sexismo tende a ser combinado com outros preconceitos, como no caso das manifestações contra as lésbicas.

“A lesbofobia está dentro do termo LGBTfobia, que engloba a homofobia, a bifobia e a transfobia. Trata-se do extremo da intolerância em razão da orientação sexual ou da identidade de gênero”, explica a advogada Ananda Puchta, de Curitiba. Ela integra o time de ativistas que foi até o Supremo Tribunal Federal no mês passado defender a proposta de criminalização da homofobia, que seguia em trâmite até o fechamento desta edição.

“Os LGBTs são mortos com requintes de crueldade. Nossa luta é para que o Estado brasileiro reconheça essa comunidade e a violência que ela sofre. Além disso, que o sistema de Justiça faça a qualificação desses crimes. Não vamos apenas punir com severidade quem os comete, mas também contar os casos para demandar políticas públicas”, explica.

Os dados existentes atualmente, em sua maioria, partem da sociedade civil, caso do Grupo Gay da Bahia, uma das iniciativas de maior tradição no país. Segundo o levantamento da organização, o Brasil registrou ao menos 445 casos de assassinato de homossexuais em 2017. Estima-se que seja um número ainda maior em razão da falta de parâmetros.

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A homofobia já é um agravante de crimes de ódio em mais de 43 países. No relatório Homofobia de Estado, publicado em 2017 pela Associação Internacional de Gays e Lésbicas, leis específicas já estão presentes em cerca de 23% dos países integrantes da ONU. A América do Norte e a Europa saem na frente e abrigam a maior parte dessas nações. As primeiras a adotarem, por exemplo, foram Noruega, em 1994, e o Canadá, em 1996.

Direitos Reprodutivos

O Canadá, país sob tutela do primeiro-ministro Justin Trudeau, também é um dos que se destacam quando o assunto são os direitos reprodutivos. Por lá, o aborto já é descriminalizado há mais de 30 anos. Outro exemplo, mais próximo da realidade socioeconômica da América Latina, é o Uruguai. A experiência do vizinho brasileiro é similar aos outros casos em que a interrupção da gravidez foi legalizada. Os números caíram drasticamente.

“O país trabalha com um modelo baseado na informação chamado de ‘redução de danos’. O médico é a pessoa que vai instrumentalizar essa mulher e entender o contexto em que ela se encontra. Ela sofre violência? Ela sabe como usar métodos de planejamento familiar? A criminalização cria um estigma sobre o tema. Quando a mulher tem medo de ser punida caso se abra com um profissional do sistema de saúde, perde-se a oportunidade de oferecer um procedimento seguro e também de instruí-la a lidar corretamente com a contracepção e a vida sexual”, explica a antropóloga e ativista Debora Diniz, fundadora do Instituto Anis, referência em direitos reprodutivos.

No Brasil, a interrupção da gravidez só é permitida em caso de feto anencéfalo, risco de vida para a mãe e estupro. Em fevereiro, o Plenário do Senado Federal decidiu desarquivar a Proposta de Emenda à Constituição 29/2015, que altera o artigo 5º da Constituição para determinar a “inviolabilidade do direito à vida desde a concepção”.

Na prática, a mudança pode dificultar a interrupção da gravidez mesmo nos casos hoje legalizados. Segundo ela, a decisão ainda pode atingir as pesquisas científicas e tecnologias reprodutivas que necessitem manipular embriões. “Isso atinge as mulheres de muitas maneiras, inclusive no campo do desenvolvimento de tratamentos para doenças”, acrescenta Debora.

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Representatividade

A dificuldade e a lentidão em pensar políticas públicas que cubram as especificidades das mulheres se devem, em certa medida, à baixa presença feminina nos cargos legislativos. A economista Hildete Pereira, coautora do livro Mulheres e Poder: Histórias, Ideias e Indicadores (Editora FGV), lembra que, em termos históricos, o espaço doméstico nos era reservado.

Em todo o período republicano brasileiro, só tivemos uma mulher na Presidência, Dilma Rousseff, eleita em 2010. “A presença nos lugares de poder vai além de justiça social. A igualdade política entre homens e mulheres é um preceito básico da democracia. Quando você afasta essas representantes do jogo político, a sociedade é privada dessas inteligências para a resolução de questões coletivas”, afirma.

O Brasil só fica na frente de Belize e Haiti no quesito representação feminina nos espaços de poder, de acordo com o Fórum Econômico Mundial. Na América Latina, há exemplos de países que implementaram a paridade e foram bem-sucedidos, caso da Bolívia e do México. As conquistas se comparam às nações-modelo, como Suécia e Dinamarca.

Por aqui, as cotas para mulheres foram, praticamente, ilusórias de 1997 até 2009. As interpretações da lei permitiam que os partidos saíssem pela tangente sem mulheres nas listagens. A crítica da professora Flávia Biroli é que o sistema de listas abertas, no qual os candidatos mais votados da legenda ocupam cadeiras, é falho por garantir a candidatura, mas não a eleição das mulheres. Na Argentina, por exemplo, as listas fechadas, em que assumem os candidatos na ordem elencada previamente e com alternância de sexo a cada dois nomes, fazem com que, obrigatoriamente, se elejam ao menos 30% de mulheres.

Para Flávia, é preciso falar em reforma. “Caso o esquema das listas permaneça, a situação deve ser revista para assegurar ao menos os 30% de mulheres eleitas. O ideal seria que caminhássemos para uma legislação de paridade”, argumenta. “Isso exige boa vontade dos partidos, inclusive na promoção de lideranças femininas para a direção da própria organização. A responsabilidade é do coletivo.”

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