Brunielly Lemos: “Ao me assumir, perdi muito além do emprego”
Mesmo em meio ao preconceito e violência, Brunielly reescreveu a sua história e hoje ajuda outras mulheres trans
Loira, alta, 29 anos e agora, mais do que nunca, dona de si própria, essa é Brunielly Lemos (@bruniellylemos) que iniciou a vida pensando ser diferente de tudo e de todos. Mulher trans, passou por várias dificuldades na infância, entre elas o bullying. “Eu sempre soube que era uma criança diferente. Na pré-escola minha voz era mais fina que a dos outros meninos e meus gestos mais afeminados. Por esses motivos, comecei a sofrer bullying desde cedo”, diz.
”Aos seis anos, um grupo de crianças vendou meus olhos e me levou para o parquinho, chegando lá abaixaram as minhas calças e me empurraram para o formigueiro, sai machucada e bastante traumatizada. É uma cena que nunca sairá da minha cabeça”, relata. A violência sofrida tornou Brunielly uma criança mais assustada, que tinha medo das pessoas, do escuro, da rejeição e de tudo que poderia ser feito de ruim para ela. “Nessa época, eu já sabia que meu caminho não seria nada fácil. As pessoas me excluíam na escola e nas brincadeiras da rua. Ninguém sabe quantas vezes fiquei sentada na calçada, esquecida, esperando uma oportunidade para participar desses momentos infantis, mesmo que fosse um café da tarde na casa de um coleguinha, tudo o que eu queria era ser incluída”, conta.
Veja também: Raquel Virginia cria empresa para mudar o mercado de trabalho
Aos 12 anos, perdeu a timidez e foi aprendendo a se defender das ditas “brincadeiras”. “Ainda com pouca idade, passei a não aceitar mais. Posso dizer que estava me empoderando, mesmo que do meu jeito”, reflete. Em casa, no entanto, as coisas não iam bem: o pai era dependente químico e violentava a mãe. “Hoje estão separados. Éramos muito religiosos e, quando começaram a perceber transformações no meu comportamento, decidiram me exorcizar. Acreditavam que eu estava ‘possuída por espíritos malignos’, pensamento que eu mesma acreditei e que durante muito tempo me trouxe sofrimento. Quando penso na minha infância, praticamente só consigo lembrar de momentos de dor, dificuldades e superação. ”
Com 17 anos, Brunielly conseguiu bolsas em cursos de dança, teatro, maquiagem e de cabeleireira. Com apoio dos grupos de dança e teatro da igreja, se tornou presidente do grêmio estudantil. Realizou e idealizou eventos culturais em parceria com o projeto Escola da Família, na cidade de São José dos Campos. Amante da maquiagem, conseguiu uma oportunidade de trabalho em uma agência de modelo e assim viajou pelo estado de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, maquiando modelos durante os eventos.
“Minha relação com a maquiagem começou aí. Pouco tempo depois, fui me descobrindo mais e comecei a ter coragem para me vestir com roupas ‘femininas’ para sair à noite. Foi colocando peruca e me maquiando que eu trouxe à tona a Brunielly que, até então, eu não podia ser em todos os momentos. Nesse período de descobertas, passei também a tomar anticoncepcional para aumentar os glúteos e dar forma feminina ao meu corpo. Na época, ainda não havia ou não era divulgada a terapia hormonal, oferecida pelo SUS (Sistema Único de Saúde), com acompanhamento médico e psicológico, então o meu processo foi mais difícil, pois eu precisei buscar informações do zero e entender sozinha quais caminhos tinha como opção para ser quem eu sou realmente”, discorre.
Vida na prostituição e tráfico de drogas
Com 19 anos, Brunielly foi mandada embora da agência de modelos e, sem renda, teve que voltar para casa da mãe que não entendia e nem aceitava seu processo de transição. “Encontrei muitas dificuldades para me recolocar no mercado de trabalho, procurei muito, mas não consegui nada devido a minha transexualidade. Ao me assumir, perdi muito além do emprego. Perdi meus amigos, o apoio da minha família e a aceitação das pessoas com as quais até então convivia”, conta.
Sozinha a saída que encontrou foi a de 90% das pessoas do grupo T, de acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra): a prostituição. “Sem trabalho, como muitas outras trans, acabei encontrando na prostituição o meio para sobreviver. O cenário para travestis e garotas de programas é de extrema violência. Para escapar da prostituição, migrei para o tráfico de drogas”, conta. “Conheci uma mulher que me apresentou um ponto de venda onde eu conseguiria fazer dinheiro. Quanto mais eu ganhava, mais eu tomava hormônios e medicamentos que prometiam mudar meu corpo, tudo sem acompanhamento médico, o que não era saudável para o meu corpo e mente”, destaca.
Pega em flagrante com as substâncias químicas pela polícia de São Paulo, foi presa e transferida para a penitenciária Osvaldo Cruz, na região de Presidente Venceslau. “Fiquei presa junto com homens, tive a minha cabeça raspada, apanhei do choque. Foi um dos piores períodos da minha existência, mas que me fizeram refletir sobre a minha própria vida e que me fizeram decidir lutar por um futuro diferente”, afirma.
Em 2015, a pena de três anos caiu para um ano e meio. Depois de cumpri-la, foi solta e retornou para São Paulo somente com o alvará de soltura em mãos e decidida a recomeçar. “Com passagem pela polícia e já assumida como mulher, não conseguia emprego e fui diagnosticada com depressão de transtorno de ansiedade. Ficava me perguntando quando, e se, as coisas iam melhorar. Quem iria contratar uma trans e ex-presidiária? Na busca por emprego, as poucas oportunidades que apareciam vinham com a solicitação de que eu me vestisse de homem: ‘Os clientes não vão gostar de uma mulher trans trabalhando aqui’. Eu ouvia, me sentia muito mal e estava prestes a desistir. Achava que realmente não havia espaço para mim nesse mundo”, confessa.
O momento da virada
Em 2016, por meio de uma representante da Avon, Brunielly enxergou uma oportunidade de trabalho e começou a revender produtos da marca. “Como já tinha feito curso, passei a visitar as clientes para apresentar os catálogos, os produtos e, também, dar consultoria de maquiagem. Fui conquistando a confiança das pessoas à minha volta e encontrando um ambiente em que eu era aceita pelo que eu era, pelo que eu sabia e podia ensinar”, enfatiza.
As vendas foram aumentando, ela foi ficando conhecida pela consultoria e outras representantes passaram a procurá-la para pedir dicas. Foi durante uma das várias reuniões que participou que recebeu o convite para ser empresária da beleza e assim ganhou a sua própria equipe com 150 pessoas. No ano de 2018, foi apresentada ao Instituto Avon – no qual atualmente é embaixadora trans – que trabalha em prol do enfrentamento da violência contra mulheres e meninas. Participou do 1º Prêmio Juntas Transformamos, que reconhece iniciativas criadas pelas mais de 1,3 milhão de representantes e empresárias da beleza e que contribuem com o tema.
Ajudando outras mulheres em suas jornadas
Motivada pelo evento, Brunielly decidiu inscrever uma ideia que tinha há anos guardada dentro de si e que se chamava: “Avon abraça as trans”. Com a proposta aprovada, foi premiada, ganhou uma mentoria e ainda realizou o sonho de fundar a própria associação.
A Transbordamos saiu do papel em 2019 e já atendeu mais de 2 mil pessoas trans de São José dos Campos, com cursos de capacitação profissional, testes de HIV (sigla em inglês para Síndrome da Imunodeficiência Adquirida), consulta médica, sessões de terapia, doações de cestas básicas, orientação jurídica, além de promoções de eventos culturais.
Com a chegada da pandemia, Brunielly pensou que perderia tudo o que conquistou. O medo, no entanto, a fez se reinventar mais uma vez. “Acabei descobrindo o poder da internet e das redes sociais. Participei de treinamentos, cursos e aprendi muito sobre o poder da tecnologia. Conheci diversos recursos digitais e aplicativos que facilitam meu trabalho e hoje me ajudam a vender ainda mais do que antes, chegar em pessoas de todos os lugares – e que também me permitem apoiar um número muito maior de [pessoas] trans. Uso minhas redes sociais para levar esperança”, destaca.
Brunielly motiva a todas as mulheres trans a continuarem, apesar de terem seus sonhos roubados durante a jornada. “São sonhos e planos minados por uma sociedade que ainda é preconceituosa e que muitas vezes não aceita a transexualidade. Mas se confiar em si mesma, se aceitar e não desistir, é possível! Eu resgatei os meus sonhos! A expectativa de vida de uma mulher trans é 35 anos. Mas eu quero e vou viver mais. Tem muita coisa que eu quero e devo fazer. Muita gente que eu quero ajudar. E eu quero envelhecer empoderada, com muita vida e feliz”, declara.
Para saber mais sobre a ação social Transbordamos ligue ou mande mensagem para: (12) 98154-5334, ajude via pix pelo e-mail: associacaotransbordamos@gmail.com, acompanhe as atividades pelo Instagram clicando aqui ou pelo site acessando aqui.