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Autoconhecimento com o Ayahuasca: a busca da cura na natureza

O chá de Ayahuasca desperta curiosidade e polêmica, mas quem procura um ritual com a bebida sagrada para os indígenas quer um sentido maior para a vida

Por Kalel Adolfo
Atualizado em 6 set 2022, 16h02 - Publicado em 8 abr 2022, 08h31
raiz que origina o Ayahuasca
As razões pelas quais as pessoas procuram a Ayahuasca são inúmeras: desde o autoconhecimento até a resolução de questões emocionais.  (Divulgação/Getty Images)
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“Fechei os olhos e enxerguei mandalas piscando em minha mente. Abri e encontrei o céu colorido por tons surpreendentes. As palmeiras ao meu redor dançavam com o vento. Foi a cena mais bonita que vi na vida.” O relato é parte da vivência de Priscila Nagatomo, biomédica pós-graduanda do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo, durante um ritual de Ayahuasca em um templo xamânico paulistano.

O chá, também conhecido como daime ou vegetal, carrega mistérios e preconceitos. Há quem diga que ele enlouquece; há quem o compare com drogas psicodélicas. “As origens do chá estão nos povos indígenas. Lá atrás, apenas os pajés o consumiam. É a falta de informação que faz com que os julgamentos aconteçam”, diz Flávia Maria, dirigente do Templo Universalista de Amor e Caridade Maria Madalena.

Segundo as lendas, a ideia de fundir o cipó jagube com as folhas da chacrona para criar o chá surgiu a partir de uma viagem astral de um líder xamã. Essa união representa a junção dos princípios masculino e feminino da natureza. “As duas energias em conjunto nos fazem entrar em uma jornada interior profunda, pois unimos essas polaridades que habitam dentro de nós”, completa Flávia.

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O chá de Ayahuasca, também conhecido como daime ou vegetal, carrega mistérios e preconceitos. (Divulgação/Getty Images)

O chamado

As razões pelas quais as pessoas procuram a Ayahuasca são inúmeras: desde o autoconhecimento até a resolução de questões emocionais. “Quando a pandemia chegou, tudo o que eu conhecia mudou, e sair de casa não era uma opção. Em meio a solidão, percebi que não me conhecia”, explica Priscila. Essa reflexão trouxe uma dolorosa ansiedade. Buscando superar isso, ela recorreu à terapia, mas seguiu incomodada com um vazio. Foi aí que a sua cunhada fez o convite para participar de um ritual. “Busquei informações em pesquisas científicas. Num primeiro momento, não aceitei. Um mês depois, tive outra crise. Isso me assustou mais que a possibilidade de tomar o chá.”

Seu primeiro ritual de Ayahuasca foi ao ar livre, em estado meditativo. As visões relatadas lhe trouxeram um senso de otimismo, leveza e afeto. “Presenciar a beleza e a harmonia da natureza me fez ter gratidão por estar viva.” Encantamento, calma e reflexões emocionais a ajudaram no processo de transformação. “Você não vai resolver a sua vida em um ritual, mas ele pode ser um primeiro passo importante”, conta a biomédica, que hoje faz acompanhamento psicológico e participa de eventuais sessões.

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O chá de Ayahuasca é feito a partir de cipó jagube e folhas de chacrona. As origens do uso, porém, são incertas até hoje. (Divulgação/Getty Images)

O ritual

Antes de mais nada, pesquise sobre as raízes culturais da prática e reflita sobre o desejo de uso, liberado no Brasil apenas em contextos religiosos. “Eu tenho um propósito ou estou tomando porque meus amigos estão indo? Isso pode ser perigoso, é necessário se conectar”, enfatiza Flávia.

Uma vez encontrado um lugar seguro e responsável, permita-se viver a experiência, sempre com respeito. “É essencial optar por um local que conheça os fundamentos e honre a cultura indígena. Em um templo correto, você terá um amparo constante, possibilitando uma entrega maior.” A dinâmica de cada espaço dita as regras. Com a primeira dose da bebida de cor amarronzada e gosto forte, todos os participantes entram numa espécie de corrente energética. “Alguns lugares oferecem até três doses, mas você decide a quantidade necessária para a sua jornada”, esclarece ela.

Nas mirações (visões) e meditações, tudo pode aparecer. “Não tem como saber ou controlar o que a medicina [como os participantes se referem à Ayahuasca] irá lhe trazer. Você pode mentalizar algumas questões, mas não necessariamente irá mergulhar nelas. E isso é o que traz medo: sair do comando. Mas, vale frisar, a perda de controle não significa que a pessoa irá se machucar.”

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Flávia explica que as sombras podem ser a primeira coisa a ser acessada: “Você será levado para aquilo que possui resistência. Pode ser sofrido por você enxergar o que não estava disposto. Muitos pensam: ‘Eu vim para me curar, mas não queria ver a minha parcela de responsabilidade’”, diz. É nesse estágio que pode ocorrer uma limpeza, como são chamados os vômitos, temidos pelos iniciantes e encarados com normalidade por quem participa há tempos dos rituais. “Chorar, vomitar, defecar ou urinar faz parte da limpeza. Às vezes, precisamos colocar para fora certas palavras e atitudes.”

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Buscar o Ayahuasca por modismos ou para acompanhar amigos pode ser perigoso. É necessário ter um propósito e se conectar. (Divulgação/Getty Images)

Após todas essas reflexões e limpezas, um sentimento de gratidão domina quase todos os frequentadores. Para Flávia, isso acontece porque percebem que alguns dos problemas são pequenos e até fáceis de resolver. “Entendemos que não é mais sobre o outro e, sim, sobre nós. Aquilo que eu colocava culpa na família, nos amigos ou no trabalho, pode ser um posicionamento que não estou conseguindo ter.” É desafiador, como qualquer outro processo terapêutico. “As pessoas acham que o chá vai te tirar da consciência, quando, na verdade, você irá entrar nela. E vai doer, porque estar no momento presente traz a responsabilidade de fazer escolhas coerentes com a própria verdade”, comenta.

No pós-cerimônia, é importante não esquecer da sua rede de apoio e do acompanhamento psicológico para auxiliar na elaboração das visões.

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“O chá traz ensinamentos de um lugar astral, inconsciente. Para aterrar isso no dia a dia, é necessário suporte. A substância não vicia. O que pode viciar é a vontade de querer respostas o tempo inteiro, sem fazer nada com elas.”

E, lembre-se, o chá é apenas uma das medicinas do planeta. “O verdadeiro remédio é se conectar com a nossa Terra. Os povos originários têm um amparo muito maior: a natureza. Um ato simples se transforma em algo extremamente profundo. Precisamos de muito para chegar nesse ponto de atribuir profundidade à simplicidade.”

A ciência da planta

O chá de Ayahuasca não teria tais efeitos se fosse feito só com as folhas de chacrona, que contêm dimetiltriptamina (DMT), substância psicodélica do chá. O motivo? O nosso corpo tem a enzima MAO (monoamina oxidase), responsável pela digestão do DMT no estômago antes que ele chegue ao cérebro. A união com o cipó jagube é imprescindível porque ele possui substâncias que inibem a enzima que digere o DMT da chacrona, permitindo que ela chegue ao nosso sistema nervoso.

Passado o processo bioquímico, Marcelo Leite, jornalista científico e autor do livro Psiconautas, aponta duas teorias que tentam explicar a mecânica psíquica do chá. A primeira é a atuação na rede neural Default Mode Network, fazendo com que uma série de áreas do cérebro se comuniquem quando entramos no estado de introspecção. “Pensar na vida, refletir sobre o passado ou fazer planos para o futuro deixa essa rede ativa. Contudo, a reflexão em excesso provoca um processo que chamamos de ‘ruminação’. Nele, a pessoa fica presa num ciclo de pensamentos derrotistas. Como os psicodélicos agem no circuito da serotonina, eles são capazes de relaxar essa rede, possibilitando o surgimento de novas ideias e uma serenidade frente a esses problemas.”

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A segunda é a influência da Ayahuasca na neuroplasticidade, formação de novas conexões no cérebro. “Comprovadamente, os psicodélicos favorecem esse mecanismo fisiológico. Ao invés de agirmos da mesma forma, nos abrimos para outras possibilidades.”

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São as folhas de chacrona que possuem o DMT, substância psicodélica, mas é a união com o cipó jagube que permite que ela chegue ao nosso cérebro. (divulgação/Getty Images)

Essa sensação positiva como consequência é um dos motivos que levam pessoas que sofrem de depressão buscarem a Ayahuasca. Assim como a mescalina, o LSD e a psilocibina, o DMT também é considerado um psicodélico clássico. “Todas essas substâncias agem no mesmo receptor neuronal da serotonina, que é um neurotransmissor importante para a regulação do humor”, esclarece Marcelo. “Como a molécula do DMT é muito parecida com a serotonina, elas grudam no mesmo receptor. Porém, os psicodélicos agem de forma diferente dos antidepressivos. Medicamentos como o Escitalopram e o Prozac impedem a degradação da serotonina, porque ela tem um tempo de vida e acaba sendo dissolvida no cérebro.”

Já os psicodélicos, ao invés de impedirem a recaptação da serotonina, se encaixam no mesmo receptor deste hormônio e funcionam como um “bônus” de bem-estar. “Em outras palavras, substâncias como a Ayahuasca podem regular e fortalecer a via metabólica que está associada a distúrbios como a depressão”, diz o jornalista científico.

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A possibilidade de transformar o chá em um medicamento regularizado ainda é distante. “Atualmente, temos apenas estudos de fase um ou dois”, conta Marcelo Leite. “Por ser um chá, a dosagem é muito difícil. Além disso, o efeito é longo, durando até cinco horas. Caso incorporássemos a Ayahuasca nos consultórios de psicoterapia, o paciente precisaria estar acompanhado de dois psicólogos. E isso geraria um custo enorme para todos”, exemplifica.

Outra ideia dos pesquisadores é a ingestão da Ayahuasca poucas vezes ao ano, sendo indicada apenas em momentos de recaída ou angústia grave. “Esse modelo não é atraente para a indústria farmacêutica. Também existem as contraindicações: quem tem histórico de psicose ou parentes próximos diagnosticados com esquizofrenia não pode consumir o vegetal, pois ele é capaz de gerar um surto psicótico”, alerta.

São muitas as barreiras que precisam ser superadas antes da medicina ancestral chegar aos consultórios e às prateleiras das farmácias. Mas, como Marcelo Leite frisa, assim como a cannabis, primeiro precisamos ter conhecimentos sólidos dos benefícios médicos para, depois, combater os preconceitos. “O autoconhecimento é um direito de todos. Por isso, sou à favor do uso adulto da Ayahuasca.”

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