Autoconhecimento com o Ayahuasca: a busca da cura na natureza
O chá de Ayahuasca desperta curiosidade e polêmica, mas quem procura um ritual com a bebida sagrada para os indígenas quer um sentido maior para a vida
“Fechei os olhos e enxerguei mandalas piscando em minha mente. Abri e encontrei o céu colorido por tons surpreendentes. As palmeiras ao meu redor dançavam com o vento. Foi a cena mais bonita que vi na vida.” O relato é parte da vivência de Priscila Nagatomo, biomédica pós-graduanda do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo, durante um ritual de Ayahuasca em um templo xamânico paulistano.
O chá, também conhecido como daime ou vegetal, carrega mistérios e preconceitos. Há quem diga que ele enlouquece; há quem o compare com drogas psicodélicas. “As origens do chá estão nos povos indígenas. Lá atrás, apenas os pajés o consumiam. É a falta de informação que faz com que os julgamentos aconteçam”, diz Flávia Maria, dirigente do Templo Universalista de Amor e Caridade Maria Madalena.
Segundo as lendas, a ideia de fundir o cipó jagube com as folhas da chacrona para criar o chá surgiu a partir de uma viagem astral de um líder xamã. Essa união representa a junção dos princípios masculino e feminino da natureza. “As duas energias em conjunto nos fazem entrar em uma jornada interior profunda, pois unimos essas polaridades que habitam dentro de nós”, completa Flávia.
O chamado
As razões pelas quais as pessoas procuram a Ayahuasca são inúmeras: desde o autoconhecimento até a resolução de questões emocionais. “Quando a pandemia chegou, tudo o que eu conhecia mudou, e sair de casa não era uma opção. Em meio a solidão, percebi que não me conhecia”, explica Priscila. Essa reflexão trouxe uma dolorosa ansiedade. Buscando superar isso, ela recorreu à terapia, mas seguiu incomodada com um vazio. Foi aí que a sua cunhada fez o convite para participar de um ritual. “Busquei informações em pesquisas científicas. Num primeiro momento, não aceitei. Um mês depois, tive outra crise. Isso me assustou mais que a possibilidade de tomar o chá.”
Seu primeiro ritual de Ayahuasca foi ao ar livre, em estado meditativo. As visões relatadas lhe trouxeram um senso de otimismo, leveza e afeto. “Presenciar a beleza e a harmonia da natureza me fez ter gratidão por estar viva.” Encantamento, calma e reflexões emocionais a ajudaram no processo de transformação. “Você não vai resolver a sua vida em um ritual, mas ele pode ser um primeiro passo importante”, conta a biomédica, que hoje faz acompanhamento psicológico e participa de eventuais sessões.
O ritual
Antes de mais nada, pesquise sobre as raízes culturais da prática e reflita sobre o desejo de uso, liberado no Brasil apenas em contextos religiosos. “Eu tenho um propósito ou estou tomando porque meus amigos estão indo? Isso pode ser perigoso, é necessário se conectar”, enfatiza Flávia.
Uma vez encontrado um lugar seguro e responsável, permita-se viver a experiência, sempre com respeito. “É essencial optar por um local que conheça os fundamentos e honre a cultura indígena. Em um templo correto, você terá um amparo constante, possibilitando uma entrega maior.” A dinâmica de cada espaço dita as regras. Com a primeira dose da bebida de cor amarronzada e gosto forte, todos os participantes entram numa espécie de corrente energética. “Alguns lugares oferecem até três doses, mas você decide a quantidade necessária para a sua jornada”, esclarece ela.
Nas mirações (visões) e meditações, tudo pode aparecer. “Não tem como saber ou controlar o que a medicina [como os participantes se referem à Ayahuasca] irá lhe trazer. Você pode mentalizar algumas questões, mas não necessariamente irá mergulhar nelas. E isso é o que traz medo: sair do comando. Mas, vale frisar, a perda de controle não significa que a pessoa irá se machucar.”
Flávia explica que as sombras podem ser a primeira coisa a ser acessada: “Você será levado para aquilo que possui resistência. Pode ser sofrido por você enxergar o que não estava disposto. Muitos pensam: ‘Eu vim para me curar, mas não queria ver a minha parcela de responsabilidade’”, diz. É nesse estágio que pode ocorrer uma limpeza, como são chamados os vômitos, temidos pelos iniciantes e encarados com normalidade por quem participa há tempos dos rituais. “Chorar, vomitar, defecar ou urinar faz parte da limpeza. Às vezes, precisamos colocar para fora certas palavras e atitudes.”
Após todas essas reflexões e limpezas, um sentimento de gratidão domina quase todos os frequentadores. Para Flávia, isso acontece porque percebem que alguns dos problemas são pequenos e até fáceis de resolver. “Entendemos que não é mais sobre o outro e, sim, sobre nós. Aquilo que eu colocava culpa na família, nos amigos ou no trabalho, pode ser um posicionamento que não estou conseguindo ter.” É desafiador, como qualquer outro processo terapêutico. “As pessoas acham que o chá vai te tirar da consciência, quando, na verdade, você irá entrar nela. E vai doer, porque estar no momento presente traz a responsabilidade de fazer escolhas coerentes com a própria verdade”, comenta.
No pós-cerimônia, é importante não esquecer da sua rede de apoio e do acompanhamento psicológico para auxiliar na elaboração das visões.
“O chá traz ensinamentos de um lugar astral, inconsciente. Para aterrar isso no dia a dia, é necessário suporte. A substância não vicia. O que pode viciar é a vontade de querer respostas o tempo inteiro, sem fazer nada com elas.”
E, lembre-se, o chá é apenas uma das medicinas do planeta. “O verdadeiro remédio é se conectar com a nossa Terra. Os povos originários têm um amparo muito maior: a natureza. Um ato simples se transforma em algo extremamente profundo. Precisamos de muito para chegar nesse ponto de atribuir profundidade à simplicidade.”
A ciência da planta
O chá de Ayahuasca não teria tais efeitos se fosse feito só com as folhas de chacrona, que contêm dimetiltriptamina (DMT), substância psicodélica do chá. O motivo? O nosso corpo tem a enzima MAO (monoamina oxidase), responsável pela digestão do DMT no estômago antes que ele chegue ao cérebro. A união com o cipó jagube é imprescindível porque ele possui substâncias que inibem a enzima que digere o DMT da chacrona, permitindo que ela chegue ao nosso sistema nervoso.
Passado o processo bioquímico, Marcelo Leite, jornalista científico e autor do livro Psiconautas, aponta duas teorias que tentam explicar a mecânica psíquica do chá. A primeira é a atuação na rede neural Default Mode Network, fazendo com que uma série de áreas do cérebro se comuniquem quando entramos no estado de introspecção. “Pensar na vida, refletir sobre o passado ou fazer planos para o futuro deixa essa rede ativa. Contudo, a reflexão em excesso provoca um processo que chamamos de ‘ruminação’. Nele, a pessoa fica presa num ciclo de pensamentos derrotistas. Como os psicodélicos agem no circuito da serotonina, eles são capazes de relaxar essa rede, possibilitando o surgimento de novas ideias e uma serenidade frente a esses problemas.”
A segunda é a influência da Ayahuasca na neuroplasticidade, formação de novas conexões no cérebro. “Comprovadamente, os psicodélicos favorecem esse mecanismo fisiológico. Ao invés de agirmos da mesma forma, nos abrimos para outras possibilidades.”
Essa sensação positiva como consequência é um dos motivos que levam pessoas que sofrem de depressão buscarem a Ayahuasca. Assim como a mescalina, o LSD e a psilocibina, o DMT também é considerado um psicodélico clássico. “Todas essas substâncias agem no mesmo receptor neuronal da serotonina, que é um neurotransmissor importante para a regulação do humor”, esclarece Marcelo. “Como a molécula do DMT é muito parecida com a serotonina, elas grudam no mesmo receptor. Porém, os psicodélicos agem de forma diferente dos antidepressivos. Medicamentos como o Escitalopram e o Prozac impedem a degradação da serotonina, porque ela tem um tempo de vida e acaba sendo dissolvida no cérebro.”
Já os psicodélicos, ao invés de impedirem a recaptação da serotonina, se encaixam no mesmo receptor deste hormônio e funcionam como um “bônus” de bem-estar. “Em outras palavras, substâncias como a Ayahuasca podem regular e fortalecer a via metabólica que está associada a distúrbios como a depressão”, diz o jornalista científico.
A possibilidade de transformar o chá em um medicamento regularizado ainda é distante. “Atualmente, temos apenas estudos de fase um ou dois”, conta Marcelo Leite. “Por ser um chá, a dosagem é muito difícil. Além disso, o efeito é longo, durando até cinco horas. Caso incorporássemos a Ayahuasca nos consultórios de psicoterapia, o paciente precisaria estar acompanhado de dois psicólogos. E isso geraria um custo enorme para todos”, exemplifica.
Outra ideia dos pesquisadores é a ingestão da Ayahuasca poucas vezes ao ano, sendo indicada apenas em momentos de recaída ou angústia grave. “Esse modelo não é atraente para a indústria farmacêutica. Também existem as contraindicações: quem tem histórico de psicose ou parentes próximos diagnosticados com esquizofrenia não pode consumir o vegetal, pois ele é capaz de gerar um surto psicótico”, alerta.
São muitas as barreiras que precisam ser superadas antes da medicina ancestral chegar aos consultórios e às prateleiras das farmácias. Mas, como Marcelo Leite frisa, assim como a cannabis, primeiro precisamos ter conhecimentos sólidos dos benefícios médicos para, depois, combater os preconceitos. “O autoconhecimento é um direito de todos. Por isso, sou à favor do uso adulto da Ayahuasca.”