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Elisa Lucinda: Árvore Marielle, presente!

"A morte de Marielle incendiou o povo brasileiro. Anunciou que não estão protegidos os inocentes"

Por ELISA LUCINDA
Atualizado em 4 abr 2018, 13h06 - Publicado em 4 abr 2018, 12h51

Na noite de 14 de março, eu no hall do hotel do teatro, havia subido para deixar minhas coisas do camarim no quarto e ia com a turminha jantar em terra mineira. Os olhos do diretor Sérgio Maggio pareciam dois pires, e vinham ao meu encontro com a frase-fuzil: “Mataram Marielle no Rio de Janeiro!” O quê?! E ele repetiu a bomba, estupefato.

Minha alma, atingida inesperadamente, dobrou meu corpo sobre a cadeira e tudo soluçava no desespero. De repente tudo ficou escuro, tudo se confirmou mesmo. Que tempos estamos vivendo? O que vai acontecer? Temos um presidente cheio de acusações contra ele, sem representatividade, e que ainda fala em se candidatar nesse já estragado país de agora? Fiquei sem chão. Havia sonhado essa parlamentar. Aliás, nós todos, com as lutas pelos direitos à cidadania, construímos uma moça como Marielle: Negra, intelectual, da favela, mãe e lésbica. Uma parlamentar que, em uma só vida, representa milhares de vozes ao mesmo tempo.

Quando nos conhecemos, foi como se nos reconhecêssemos: As cores, os colares, nossos turbantes, a identidade cultural desta imensidão que é a milenar cultura africana, tão desconhecida da minoria dominante brasileira. Tivemos uma conversa muito linda na última vez que nos vimos. Enquanto eu chorava sobre os joelhos, inconsolável, fragmentos dessa conversa se intrometiam no meu pranto. Comentamos como foi difícil a cada uma a libertação de podermos misturar os estampados, de combiná-los à moda de vários países africanos, e observamos como a opressão da estética eurocêntrica impôs a todos a noção que associa tais misturas ao mau gosto. Lembro de que contei à ela ter passado por uma situação bizarra num filme que fiz. Na ocasião, sugeri que a minha personagem, que era uma mulher elegante e sofisticada, usasse turbantes. Ao que a figurinista imediatamente me respondeu indagando: “Mas você quer usar turbante como uma coisa afro ou uma coisa chique?”.

Lembro que a Marielle comentou, diante disso, ao ouvir o meu relato, notando como a gente tem o racismo estruturalmente enraizado na base da nossa subjetividade e do nosso campo simbólico ditado pela Casa Grande. Respingos do meu pensamento lembrando as conversas com essa guerreira batiam no solo da razão, e eu perguntava ainda incrédula: Por que mataram o bem? A quem o bem incomoda? Ela era inocente. Para todos os lados da vida de Marielle havia luta, você já reparou? Era a única vereadora negra e certamente sua “raia” era cheia de obstáculos que não têm na “raia” do vereador branco. Era da favela da Maré e lutava para que mais Marielles pudessem existir na vida civilizatória brasileira. Mãe de uma menina que ela teve novinha, aos 19 anos, e lésbica numa sociedade que ainda condena e até mata (são os chamados lesbocídios) mulheres por amarem mulheres. Uma vida sem descanso, uma luta, não para ela chegar lá, mas uma abertura de espaços para que muitos outros possam ocupar. O coronel Robson Rodrigues fez uma declaração comovente: “Marielle se interessava por estas causas, que, infelizmente, ainda não tocam nossa sensibilidade institucional. Com suas bandeiras ela defendia muito mais nossos policiais do que fomos capaz de compreendê-la e de fazê-lo”.

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Sofri. Só que quando levantei os olhos no outro dia vi que, em menos de 24 horas após sua fria execução, o mundo não falava em outra coisa! Era um fenômeno no Twitter, bateu todos os recordes de qualquer tema político dos últimos tempos. Aos poucos fui entendendo que aquilo parecia nitidamente o despertar de uma multidão que aquela morte provocara, porque a assassinada não era só uma como poderia parecer. E seu mandato não se restringia ao território carioca, não era mais uma “vereadorazinha” como poderiam pensar alguns. Não, seu nome era Marielle Franco, a divisora de águas!

De uma certa forma ela era a cabeça de uma tribo muito maior do que os seus eleitores, e quando foi atingida transmutou-se imediatamente em muito mais do que representava, multiplicou-se mais do que poderiam imaginar os seus algozes. Teve mais mídia do que teve em vida. Guardo a honra de tê-la entrevistado no programa “Cidade Partida”, do Canal Brasil, e lamento que a gente tenha tão poucas entrevistas com ela na grande mídia. Apesar disso, como um milagre, uma mágica, Marielle transformou-se numa tribo inteira, e de um dia para o outro, o Brasil foi para as ruas, o Brasil se desanestesiou. Enquanto matavam o negro anônimo e a criança sem sobrenome da favela, continuávamos a vida em nossos carros blindados, e nossa segurança comprada a peso de ouro. Mas, agora, a vítima era uma socióloga, formada também em administração pública, cria da PUC, era uma pensadora, sonhadora, que persistiu na esperança, ainda que trilhando um caminho extremamente adverso. Pois toda vez que um preto ocupa um lugar de destaque e reconhecimento numa sociedade de dominação branca e classista, ele experimenta o olhar dos que se creem donos dos espaços privilegiados do mundo. Um olhar mudo que pergunta com desprezo: “O que você está fazendo aqui, se aqui não é o seu lugar?”

A morte de Marielle incendiou o povo brasileiro, indignou todas as ligas humanistas do mundo, expôs todas as pessoas de bem, anunciou claramente que não estão protegidos os inocentes e pergunta de que lado você está? Suas sementes estão espalhadas nas palavras que digo aqui e no que seus eleitores testemunharam: a limpidez e transparência, a honestidade e a competência com que exerceu parte do seu primeiro mandato. Uma honra para a nova política deste país.

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Quatro tiros tiraram a vida da bandeira brasileira da dignidade. Mais três tiros executaram o trabalhador Anderson Gomes que a conduzia. A partir de agora, cada vez que uma pessoa for racista, lesbofóbica, corrupta, ladra de merenda escolar, misógina, a favor da política de armamentos e traidora do voto popular, estará matando Marielle de novo. Instalou-se o “tribunal Marielle”, como bem disse o cineasta Juliano Gomes, no qual a ética se impõe sobre a força bruta e as sementes da grande árvore se reproduziram e se reproduzirão, num exército imenso de guerreiras e guerreiros incansáveis no ofício de dar conta dos sonhos desta grande árvore. Martin Luther King tinha um sonho. Nós todos somos agora os sonhos de Marielle.

Elisa Lucinda, outono, 2018.

 

*Elisa Lucinda é escritora, poeta, cantora e atriz. Está em turnê com a peça “O Musical”

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