O bullying adulto deixa sequelas e precisa ser combatido. Leia relatos
Para muitas vítimas, o bullying não para na infância e na adolescência, os ataques se estendem pela vida adulta e afetam a saúde mental
Na hora do almoço, você não é chamada para se sentar com os colegas. Se corta o cabelo, vira motivo de piada por semanas. Quando entra numa sala, repara nas pessoas revirando os olhos. Ouve comentários frequentes sobre seu corpo, suas roupas e até seu sotaque. O enredo de filme adolescente hollywoodiano é, infelizmente, inspirado em fatos reais. E não se restringe apenas às escolas.
Por muito tempo, pensamos que esse comportamento nocivo, que visa inferiorizar o outro, era algo restrito à juventude, porém, recentemente, passou a ser usado o termo bullying adulto, que reacendeu a discussão sobre a faixa etária da prática. “Qualquer comportamento com tom de agressividade, feito intencionalmente e repetidamente, ferindo ou gerando desconforto a outra pessoa é bullying. Ocorre de diversas formas, desde o uso de algumas palavras até a violência física, passando por ações muitas vezes imperceptíveis a quem está ao redor”, afirma Rossandro Klinjey, psicólogo clínico, palestrante e escritor.
Ignorar que isso acontece pode indicar que a companhia tolera o bullying no local de trabalho. Se a instituição não implementa estratégias oficiais, a pessoa precisa resolver sozinha”
Rossandro Klinjey, psicólogo
Há um grande esforço nas campanhas de prevenção ao bullying infantil e jovem, especialmente com a chegada das redes sociais. Filmes, músicas e palestras reforçam a mensagem da toxicidade dessa postura, mas são sempre direcionados a esse público mais novo. O que se esperava é que adultos, maduros e com recursos psicológicos e terapêuticos para lidar com seus sentimentos, deixassem de ver sentido nos ataques.
Não só não é isso que vem se provando verdade, mas também que a potência das “brincadeiras” (com muitas aspas) é ainda mais cruel. “Normalmente, quem sofre tende a ser mais submisso, mesmo tendo um potencial enorme de realização e ótima qualificação profissional”, fala Silvia Zoffmann, psicóloga clínica para adultos, que atua na Telavita, plataforma de consultas virtuais.
A terapeuta holística Simone Dreher, 58 anos, não imaginava que sofreria bullying depois dos 40, ainda mais de uma pessoa próxima e professora. “Estava em processo de formação para trabalhar com florais e minha professora começou a atender no mesmo local que eu, mas em outras áreas. Depois que eu concluí o curso, ela me disse que eu precisaria conseguir credenciamento para poder atuar”, relembra Simone, que foi atrás dos trâmites e resolveu a parte burocrática. “Quando contei para ela, extremamente feliz pela vitória, ela falou: ‘Nossa, não sabia que eles estavam dando o certificado para qualquer um’. A frase saiu de forma tão natural! Fiquei passada por ela ter falado isso na minha cara, ainda mais sendo minha professora. A sensação foi de total menosprezo”, exalta Simone.
“Analisando outros momentos da nossa trajetória, ela tinha feito comentários ácidos antes e eu não havia percebido. Acontecia uma competição entre nós duas e só enxerguei depois dela me diminuir”, avalia a terapeuta. Para a psicóloga Silvia, quem pratica bullying na idade adulta também tem características específicas. “Geralmente, na infância, a prática era mais explícita e, na maturidade, essa pessoa começa a agir com uma abordagem mais sutil, manipuladora e velada. É feito nas entrelinhas”, reforça.
Revendo conceitos
Segundo Anaclaudia Ramos, psicóloga, neurocientista e especialista em comportamento humano, o primeiro pesquisador que observou o fenômeno foi o professor sueco-norueguês Dan Olweus, da Universidade de Bergen, um dos pioneiros na investigação sistemática do bullying, que produziu a obra “Aggression in the Schools: Bullies and Whipping Boys” (agressão nas escolas: bullies e meninos que batem, em tradução livre), de 1978. A prática sempre existiu, mas até os estudos de Olweus, não tinha um termo próprio. Nomeado e entendido, as discussões começaram a se tornar intensas, passando a ser preocupação, inclusive, de governos.
Contudo, a geração de adultos anterior a meados dos anos 1980 e 1990 não tiveram oportunidade de vivenciar experiências terapêuticas na escola. “Se uma criança sofreu algum tipo de bullying na infância e isso não foi resolvido, ressignificado em tratamento psicológico, na fase adulta ela pode reproduzir o comportamento. A baixa autoestima contribui muito para a situação de vulnerabilidade, característica fundamental em quem sofre bullying”, aponta Anaclaudia.
A cantora e fonoaudióloga Anna Beatriz Gomes, 24 anos, passou a vida toda sofrendo ataques por ser magra demais. “Desde que me entendo por gente, as pessoas me chamam de palito ou realçam outros ‘defeitos’ meus. Apaixonada por ópera, eu entrei nesse mundo e me especializei. Em 2018, participei de um concurso de canto lírico e me apresentei para jurados do exterior. Sabia que não passaria, mas quis experimentar e ter um feedback de pessoas tão renomadas. Uma das juradas disse que eu nunca conseguiria ser cantora de ópera porque eu era muito magra e que não tinha voz para o ramo”, relata Anna.
“Se não fosse a minha rede de apoio, minha família e amigos, me tirando daquele limbo, acho que não teria voltado para os palcos”
Anna Beatriz Gomes, cantora
As palavras martelaram por meses em sua cabeça, afinal, ela esperava uma devolutiva técnica e sugestões de melhorias, e não um comentário sobre seu corpo. “Estou acostumada de falarem da minha magreza ou de ter que justificar para os outros que não sou bulímica ou anoréxica. É minha estrutura física e pronto. Ao longo dos anos, criei certa resistência, mas, no dia do concurso, me senti humilhada e envergonhada, pois tinha gente ao redor olhando”, recorda ela, que foi soprano solista nas temporadas 2019 e 2020 da Orquestra Bachiana Filarmônica SESI-SP, sob regência do maestro João Carlos Martins.
“Por causa do comentário, fiquei meses sem conseguir abrir a boca, sem cantar, pois só pensava que realmente não tinha corpo para ser cantora. Se não fosse a minha rede de apoio, minha família e amigos, me tirando daquele limbo, acho que não teria voltado para os palcos. Até hoje, demoro para escolher um vestido para as apresentações e prefiro modelos com mangas largas, que não mostrem meus braços. Olho para a plateia e penso se eles estão achando que eu sou magra demais e não deveria estar ali. Demora muito para se recuperar de um episódio como esse”, diz Anna Beatriz, que se prepara para estudar na Berlin Opera Academy, na Alemanha.
O Workplace Bullying Institute, organização criada em 1997 e sediada nos Estados Unidos, apresenta as 25 práticas mais comuns de bullying no local de trabalho, como, por exemplo, ser acusado falsamente por alguém de erros que não cometeu; sofrer intimidação não verbal; ser ridicularizado ou menosprezado quando apresenta ideias; ser isolado e ignorado pelas pessoas; não ser reconhecido por suas competências, apesar das evidências; ser criticado duramente e constantemente. São detalhes do ambiente em que vivemos e sinais que o nosso próprio corpo nos dá que vão confirmar o bullying – e só assim poderemos interromper esse ciclo.
“No adulto, as sequelas podem ser diversas. Há quem desenvolva transtornos pós-traumáticos, depressão, ansiedade. As outras sequelas fisiológicas incluem queda de cabelo, problemas no estômago. Esses são alertas que permitem que a pessoa redefina a experiência traumática, possibilitando o entendimento, o autoconhecimento e trazendo novas ferramentas para lidar com qualquer situação de desconforto”, afirma Anaclaudia.
Por incrível que pareça, não é só a vítima que fica fragilizada. “Os estudos comprovam que o bullying não é e nunca será uma ‘brincadeira inofensiva’. Muito pelo contrário, ele pode causar graves problemas à saúde dos perpetradores, como depressão, perda de motivação e de rendimento no trabalho”, enfatiza Rossandro.
Identificado o bullying, os especialistas recomendam procurar ajuda com psicólogos, psicanalistas, o setor de recursos humanos da empresa e até mesmo os próprios pais e outras pessoas da rede de apoio para se abrir e falar sobre os acontecimentos. “É importante que a pessoa não se preocupe em comprovar para todo mundo que ela foi vítima. Basta relatar, de forma objetiva, pragmática, consciente, que alguma situação está acontecendo repetidamente e é antiética. Usar esses termos, quando falamos de bullying adulto, é imprescindível, porque não é se colocar no papel de vítima, mas trazer as condutas e normas da empresa que não estão sendo seguidas. Só falando se rompe o ciclo”, recomenda Silvia.
Do lado das organizações, é preciso desenvolver e implementar estratégias oficiais que impeçam o comportamento agressivo. “Ignorar que isso acontece pode indicar que a companhia tolera o bullying no local de trabalho. Se a instituição não faz isso, as pessoas precisam se defender sozinhas”, acrescenta Rossandro.
Atualmente, além dos atendimentos virtuais com terapeutas e psicanalistas, algo que foi autorizado pelo Conselho Federal de Psicologia em março de 2020, existem outras maneiras de obter ajuda, como aplicativos para meditação guiada e até exercícios de respiração.
“O papel da telemedicina é fundamental no acolhimento psicológico atualmente. Nos atendimentos, podemos educar também os agressores, para que eles tenham um tratamento humanizado e entendam, em uma esfera psíquica, que a dor do outro importa”, comenta Silvia.
Ir ou não ir à justiça?
Em um vídeo no seu canal do Youtube, Tá Querida, Luiza Junqueira falava sobre um tema que lhe é sensível, a menstruação. Enquanto abria para o público suas vulnerabilidades, passou a ser atacada.
“A princípio, eu fiquei com muita raiva do que aconteceu”, indica a comunicadora, cujo vídeo foi usado por outro youtuber no ataque. “O hate, que é o ódio virtual, é algo que, infelizmente, acabei me acostumando, mas esse foi forte e me acertou. Procurei conversar com alguns advogados, para processar o cara, mas acabamos não encontrando um caminho para esse caso. Aconselho que, se não for possível agir judicialmente, não gaste energia com esse tipo de pessoas e conteúdos. Já vi perfis na internet que usaram fotos minhas para tirar sarro. Tinha até uma página no Facebook que se chamava ‘Todo Dia Uma Fêmea Passando Vergonha’, que tinha mais de 20 mil comentários de ódio numa repostagem de um vídeo meu. Eu me treinei para não ler os comentários, porque eles atingem a gente em cheio”, admite.
A lei também tem corrido atrás de se atualizar em relação ao bullying. Segundo a advogada Marina Kondo, as discussões do tema motivaram a regulamentação de novas leis para coibir esse tipo de ação, principalmente no ambiente escolar, onde há maior índice de ocorrência. “A Lei 13.185/2015 institui o programa de combate à intimidação sistemática, o bullying, em todo o território nacional.
Considera-se intimidação sistemática todo ato de violência física ou psicológica, intencional e repetitivo, que ocorre sem motivação evidente, praticado por indivíduo ou grupo, contra uma ou mais pessoas, com o objetivo de intimidá-la ou agredi-la, causando dor e angústia à vítima, em uma relação de desequilíbrio de poder entre as partes envolvidas. A punição para este tipo de situação encontra respaldo na Constituição Federal, no Código Civil, no Código Penal, e na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT)”, explica Marina.
Na legislação criminal, não há a infração específica de bullying, mas o comportamento assim definido poderá ser enquadrado em tipos penais como injúria, difamação, ameaça, extorsão, lesão corporal, instigação ao suicídio e até homicídio, dependendo do comportamento do ofensor e da repercussão na esfera individual no ofendido.
A advogada Catarina Ribeiro faz um alerta para o chamado cyberbullying. “Com a vida no virtual, é fato indiscutível que o comportamento abusivo se tornou até mais comum nesse ambiente, já que pessoas que não teriam coragem de praticar a agressão presencialmente se sentem protegidas por uma suposta sensação de anonimato ao desferir agressões contra outrem.
Sendo assim, é possível que o ataque venha de meros desconhecidos. Reitero que, para configuração de crime, é necessária comprovação de que tal comportamento invadiu de forma negativa o sentimento do agredido”, afirma Catarina, que enfatiza a necessidade de denunciarmos e falarmos mais sobre o assunto.
Como diz a música Divino Maravilhoso, de Caetano Veloso, “é preciso estar atento e forte.” Pegando o embalo do paradoxo musical, Rossandro afirma que nossa saúde mental em sociedade precisa evoluir em direção a uma banda de jazz.
“Na vida, parece que começamos em uma banda marcial, na qual existem poucos instrumentos, repertório menor e movimentos pré-coordenados. Depois, vamos para uma orquestra, regida por um maestro e que possui mais instrumentistas; até é possível fazer um solo, mas todos obedecem uma partitura. No jazz, a banda se conhece a tal ponto que os integrantes confiam no talento e na qualidade do parceiro, permitindo improvisos sem perder a unidade. É uma aliança forte, encantadora e única, que deixa a plateia hipnotizada e pedindo bis.”
O que é mieloma múltiplo e como tratá-lo