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A major salvadora das mulheres vítimas de violência doméstica

CLAUDIA foi às ruas da capital baiana com a Ronda Maria da Penha, grupo especial da PM que protege vítimas de seus agressores

Por Dagmar Serpa
23 nov 2017, 16h24

É sexta-feira 13. Policiais circulam pelo Bonfim, tradicional bairro da Cidade Baixa, em Salvador. A viatura estaciona na frente de uma casa de muro alto. A campainha é acionada e Lúcia abre o portão. Está com o filho, de 10 anos, que se apressa em abraçar e beijar a soldada Raquel Marques. A filha, de 11, aparece em seguida. A recepção calorosa se estende ao sargento Adilson Galiza e ao soldado Devison Nascimento.

O menino tem fios grudados no peito por baixo da camisa xadrez. São vestígios de mais um exame periódico que deve fazer devido a uma cardiopatia congênita. Já passou por oito cirurgias. Mas a presença daqueles policiais militares indica que a saúde do filho não é o único drama vivido por Lúcia.

O trio compõe uma das guarnições (as equipes que vão às ruas) da Ronda Maria da Penha, operação da PM baiana que atua na proteção de vítimas de violência doméstica. O grupo especial, que ganhou de Lúcia o apelido de “salvadores de Marias”, foi concebido e é comandado pela major Denice Santiago, uma das vencedoras do Prêmio CLAUDIA 2017.

O foco da ronda são casos de mulheres que obtiveram na Justiça uma medida protetiva. Muitas buscam o recurso. Em Salvador, foram pelo menos 918 solicitações contra companheiros e ex este ano, só até 1º de agosto. O objetivo da operação é fazer valer a ordem judicial, mantendo o agressor longe. “Em dois anos e meio de atuação, nenhuma das assistidas foi agredida de novo”, orgulha-se a criadora. Às vezes, basta o engajamento dos “salvadores” para coibir reincidências.

Mas alguns insistem em continuar ameaçando. Se descumprirem a distância determinada, é emitido mandado de prisão preventiva. Foram efetuadas 60 detenções pela ronda na capital. O número vai a 90 incluindo Feira de Santana, Paulo Afonso, Juazeiro e Itabuna, cidades onde já existe a operação. A luta que jamais termina ganha reforço do final deste mês até 10 de dezembro, quando organizações da sociedade civil e do poder público se engajam na campanha mundial 16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres.

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Aos 41 anos, Lúcia não pode aparecer com seu nome verdadeiro. O ex já foi preso duas vezes. Em ambas, saiu logo. Ela informa que há novo mandado de prisão, só que por falta de pensão alimentícia. Seu caso é um dos 607 atendidos pela ronda em Salvador.

Por duas décadas, ela se relacionou com um homem 15 anos mais velho. No começo, parecia só mulherengo, beberrão e ciumento demais. “Não fazia distinção entre homens e mulheres. Achava que todo mundo tinha caso comigo.” Controlava horários, xingava-a e acusava-a diante de saídas demoradas, criava proibições, rasgava roupas. Pela diferença de idade, Lúcia achava que ele até tinha razões para agir assim. “Aí a gente tenta fazer o máximo para a pessoa se sentir segura.” Aceitou tatuar o rosto dele nas costas. Vieram tapas, socos, pontapés e uma gravidez interrompida. Houve até episódios de arma apontada para sua cabeça e a das crianças.

Foi alertada por uma advogada desconhecida que a fez reagir. Logo a ronda estava na sua casa. Sentia-se desesperada, à espera do pior. “Um policial falou: ‘Se ficar trancada, pode morrer? Se sair, pode morrer? Você tem a opção de sobreviver e salvar seus filhos. Estamos aqui para apoiá-la’.”

Sob stress constante, Lúcia conta sua história sem cronologia. Anota o que não deve esquecer. Já morou com as crianças em abrigo. Hoje, em casa, ainda sente medo. Tenta não ter rotina. Avisou na escola e, a cada dia, leva os filhos em um horário. “Tenho algemas invisíveis. Me sinto sem asas. Era o que ele falava: ‘Vou cortar suas asas e desempinar seu nariz’.” Lúcia respira ao receber os policiais. “A Ronda é minha família.”

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O vínculo afetivo criado entre a Ronda Maria da Penha e as vítimas de violência é forte (Shai Andrade/CLAUDIA)

Casos tenebrosos

Essa analogia se repete. “A gente vive dentro da casa dessas mulheres”, justifica a major Denice, que já presenciou até soldado mexendo panela para uma atendida. “E teve uma criaturinha com gravidez decorrente de estupro do ex-parceiro que, no dia de parir, foi para nossa base em vez de ir ao hospital, o mais prudente. Era onde se sentia segura.” O episódio, segundo ela, retrata o tipo de vínculo criado com as vítimas.

A ronda faz visitas regulares. Também pode escoltá-las em audiências, por exemplo. Responde, ainda, a chamados de urgência – de março de 2015, o começo da operação, até setembro último, foram 310 em Salvador.

De segunda a segunda, duas guarnições vão às ruas, das 8 às 18 horas. Fora do expediente, as assistidas têm prioridade no serviço 190. Não é raro, contudo, que peçam ajuda direto pelo celular de um policial. É uma sequência de casos tenebrosos.

Em um deles, o ex-marido manteve a vítima em cárcere privado, torturando-a sem parar. Espancava, asfixiava. Até um rolo de macarrão para introduzir nela foi achado. Ao fugir, ela foi parar na ronda, antes de dar queixa. Outro agressor arrancou a falangeta de um dedo da sogra quando ela foi socorrer a filha em mais uma das sessões de violência que se sucediam havia dois anos. Uma das histórias mais marcantes para a major é a da bebezinha que tinha nascido com a marca nas costas de um chute do pai, dado na mãe durante a gravidez.

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Não faz parte da rotina da comandante o corpo a corpo das ruas. Mas às vezes ela decide fazer visita. Quando chega à casa de Simone (nome fictício), 46 anos, moradora de Plataforma, no Subúrbio Ferroviário, as duas logo engatam um papo. Simone sabe que o ex às vezes ainda transita pelo bairro, mas de carro ou ônibus. Não o vê. “Minha mãe falava: ‘Filha, nunca fique sozinha, a solidão não é boa’.

Hoje penso o inverso. Nada melhor do que estar na sua companhia, nada mais libertador.” Graduada em psicologia, com mestrado, a major nem a deixa terminar a frase quando ela ensaia dizer que não quer saber de namoro. “Você é uma mulher bonita!”, incentiva.

O agressor conquistou-a com um jeito galanteador. Nos três anos de convívio, não enxergou sinais de perigo. Até que ele mostrou as garras. “Minha irmã veio a minha casa com um amigo-namorado e a gente interagiu normalmente. Quando foram embora, ele começou a discutir, avisando que não queria homem aqui.” Simone foi à cozinha servir o almoço. Ele a seguiu. “Aí me deu um tapa, caí e bati as costas.

Levantei e disse: ‘O que é isso?’ Ele veio para cima.” Decretou que algumas mulheres ele preferia esfaquear. “E foi até o armário pegar a faca.” Ela fugiu. Deu queixa. Por um tempo, viveu apavorada. Sabia que ele bebia perto dali. “Ficava sentada de frente para a porta vigiando e pensando: ‘Ele vai vir e acabar comigo’.” Olhando para trás, vê que as coisas nunca foram tão bem quanto imaginava. “Até tentou ter relação à força comigo. Hoje falo e não choro.”

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Num cenário de violência constante, a major Denice assume também o papel de amparo psicológico (Shai Andrade/CLAUDIA)

Filosofia da solução

Lidar com histórias tão carregadas de tinta pesa nos ombros. Os 28 policiais no grupo da major – homens são maioria, e ela os chama de “os meninos” – têm à disposição encontros terapêuticos e outros cuidados. A comandante recorre a uma tática extra para amenizar a carga. “Por mais grave que algo seja, sei que é melhor tratar não pelo viés do problema, mas pela solução e seus benefícios”, avalia.

“Viver um problema adoece muito mais do que saborear as possibilidades de solução.” Foi com essa filosofia que encarou um câncer no estômago, descoberto no mesmo período da criação da ronda. Depois de cerca de um ano gestando o projeto, inspirado na Patrulha Maria da Penha, do Rio Grande do Sul, foi forçada a se afastar. Assim, no início da operação, quem estava no comando era a capitã Ana Paula Costa de Queirós, hoje a subcomandante. Após a cirurgia, vieram sessões de quimioterapia. A major conta que nem haviam terminado quando retornou, embora precisasse fazer pausas. “Falo que a ronda me salvou. Eu me colocava em um lugar em que podia botar sorrisos e esperança na vida das pessoas.”

Desde o começo, a operação não se limita a fiscalizar as protetivas. Funciona em rede, integrada a outras instituições, para amparar as vítimas de forma global. Se precisam de assessoria jurídica, existe endereço certo para encaminhá-las. Assistência social ou suporte psicológico? Também tem. No próprio efetivo, há policiais graduados em direito e serviço social. Sem falar da major, que não se descola da formação de psicóloga.

Já interveio no conflito entre Elvira (nome fictício), 34 anos, e o filho adolescente. “Ele acha que a mãe exagera”, justifica a comandante. “Perguntei: ‘Você já viu seu pai bater nela?’ Confirmou. Falei: ‘Exagera, por quê? Quem agride uma, duas, três vezes pode matar. Sua mãe está lutando pela vida dela e pela sua’.”

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Mas, naquela sexta 13, quem visita Elvira é a mesma guarnição da abertura desta reportagem. Ela mora em um morro. A viatura sobe as vielas com a soldada Raquel ao volante e o som ligado. Rola de MPB a pop. Desta vez, os dois policiais homens ficam fora, de guarda. A soldada Raquel desce a escada estreita que dá acesso à casa, no subsolo. Elvira informa que o ex não a tem incomodado mais.

Casaram-se quando ela nem havia completado 15. Foram 18 anos juntos. Lembra que começou bem, ficou ruim tempos depois e piorou pra valer quando ela descobriu uma traição. Ficou assustada, particularmente, com duas ocorrências pós-separação de agressão física e a informação de terceiros sobre a encomenda de sua morte. Familiares dele se envolveram em alguns ataques. Uma de suas ex–cunhadas mora na casa de cima. “Mas não me diz mais um ai”, conta Elvira, que caprichou no visual para receber a ronda. Agora está mais tranquila, tem novo parceiro.

“Quanto melhor a mulher estiver – psicológica, social e economicamente –, mais chances de não ser submetida a novas violências”, afirma a major Denice. Não à toa, a ronda promove ações que nada têm a ver com o trabalho policial. É o caso das 191 palestras já ministradas. Ou do programa Mulheres de Coragem, com oficinas que permitem troca de experiências e pretendem levantar a autoestima.

“O objetivo delas é empoderar as mulheres”, resume a capitã Paula. Podem ser de aromaterapia ou de arte e artesanato, até desenvolver habilidades que gerem renda. Muitas vivem em situação de extrema vulnerabilidade. Mesmo Lúcia, que construiu patrimônio considerável com o marido agressor, hoje pena para garantir o dinheiro do sustento e do tratamento do filho cardiopata. Precisa voltar a trabalhar, mas ainda não sabe como.

Em um quilombo em SImões Filho, mulher aprende de forma lúdica a identificar a violência em casa e a se proteger (Shai Andrade/CLAUDIA)

Plantação de tâmaras

A violência não dá trégua. De janeiro a agosto deste ano, foram registradas na Bahia mais de 32 mil ocorrências com vítimas mulheres de 18 anos ou mais – 7 240 em Salvador. Há nas estatísticas desde ameaças e lesões corporais até estupros e homicídios. Nem a major nem a equipe se dão por vencidas. “Não acredito que enxugamos gelo. Prefiro pensar que estamos plantando tâmaras”, afirma a capitã Paula. Refere-se a um ditado árabe antigo, anterior às tecnologias agrícolas. Ele diz que “quem planta tâmaras não colhe tâmaras”, pois os frutos levavam décadas para dar a graça. “Mas, se ninguém plantasse, as próximas gerações não teriam como desfrutar esse sabor.”

Em uma quarta-feira, o destino é um quilombo em Simões Filho, município da região metropolitana de Salvador considerado um dos mais violentos do país. Ali é realizada a Ciranda com a Ronda, ação preventiva que dirige o foco para áreas rurais, onde a informação é mais escassa. Ao ar livre, 28 mulheres participam do Jogo do Espelho. A proposta é ensinar como identificar a violência em casa e se proteger.

“Quisemos fazer isso de forma lúdica”, avisa a capitã Paula. Um enorme tabuleiro é estendido no chão. Cartas trazem situações aparentemente corriqueiras em um relacionamento, mas que representam algum dos cinco tipos de agressão contra a mulher – moral, psicológica, física, patrimonial e sexual. Revelam também uma reação feminina. A cada rodada, uma voluntária lança o dado, tira uma carta e torna-se protagonista da cena descrita. As demais votam se ela agiu bem ou mal, levantando mãozinhas de papel- -cartão com o polegar para cima ou para baixo. Livretos com a Lei Maria da Penha são distribuídos antes que a brincadeira séria termine em palmas e pedidos de bis.

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Simultaneamente, em outra sombra de árvore, acontece a Ronda para Homens, uma já premiada atividade de prevenção com o outro lado. “É um clube do Bolinha”, explica o sargento Djair Moura do Rosário, que conduz o grupo. Assim, os participantes não ficam inibidos de falar abertamente sobre tudo. “A principal função é sensibilizá-los. Procuro fazer com que se ponham no lugar das mulheres.

Também busco alertá-los trazendo as inovações da lei.” Na Ronda desde o comecinho, o sargento conta que, no cotidiano das ruas, tem uma estratégia, como homem, para quebrar o gelo. Sempre tenta arrancar um sorriso, apesar de tudo. Brincando, já se ofereceu até para pôr um vestido de uma assistida se ela só quisesse se abrir com mulher.

Ao embarcar na viatura, o semblante da major Denice traduz a sensação de missão cumprida – e das mais árduas. “Para nós, policiais militares, combater a violência é o mais fácil. Trabalhar na prevenção, ser instrumento de diálogo e educação, é o difícil.” Ainda vai a um evento. Só relaxará ao pisar em casa, à noite, e reencontrar o marido e o filho, de 16 anos. “Os dois são bons parceiros e muito doces comigo.

Respeitam minhas escolhas e ausências”, ressalta. “Gosto de cozinhar para eles.” Outro porto seguro é a religião, o candomblé, herança da avó, mãe de santo. No discurso do Prêmio CLAUDIA, agradeceu a Deus e a duas divindades africanas, Tempo e Iansã, por deixá-la “de pé”. Parece que é só o que essa mulher forte e assumidamente acelerada precisa para continuar lutando com sua tropa.

Denice acompanha a ação na comunidade quilombola, situada numa das regiões mais violentas da Grande Salvador (Shai Andrade/CLAUDIA)

 

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