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Débora Silva e as Mães de Maio não têm medo da PM paulista

A teimosia desta mulher vira livro. Há dez anos Débora Silva tenta provar que o filho foi morto por policiais na guerra que não era dele, mas da PM e do PCC

Por Patrícia Zaidan Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 14 dez 2016, 16h55 - Publicado em 17 nov 2016, 12h46
"Quero justiça para meu filho e acabar com a truculência da PM no Brasil" (João Bertholini/CLAUDIA)
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A pernambucana Débora Maria da Silva, 56 anos, é uma das mulheres mais corajosas que já vi. E ouvi. Seu discurso é de fazer chorar as pedras. Ela não sabia falar em público e desconhecia o funcionamento da polícia e da Justiça no país que mais mata jovens negros, pobres, da periferia – como o seu filho Edson Rogério. Débora, que vive em Santos (SP), descobriu tudo na raça. Enfrentou desembargadores, juízes, promotores, delegados de polícia… Tudo para provar o que ainda não conseguiu: a PM paulista matou cerca de 505 civis e 59 agentes do estado, em maio de 2006, na guerra travada com o criminoso Primeiro Comando da Capital, o PCC.

Há 10 anos ela criou o Movimento Livre Mães de Maio que, desde então, ajuda familiares de outros pretos e pardos chacinados – como os rapazes da Zona Leste encontrados com sinais de execução, dia 6/11, em uma mata de Mogi das Cruzes. A polícia de Geraldo Alckmin segue matando 47,5 pessoas por mês. Terrível pesadelo.

Um livro sobre a experiência de Débora e de outras mães do movimento foi lançado quinta (17/11) na Faculdade de Direito da USP, no Largo São Francisco. São 15 perfis escritos por profissionais da Ponte Jornalismo, sob coordenação de André Caramante. O resultado é Mães em Luta: 10 Anos dos Crimes de Maio de 2006, com prefácio da jornalista Eliane Brum.
Entrevistei Débora no centro de São Paulo, onde ela acabava de fazer, no alto de um carro de som, um dos seus contundentes discursos. Fui rever a gravação e registro aqui trechos do emocionante depoimento dela:

De dona de casa à ativista
“Eu era uma dona de casa que vendia lingerie. Não sou mais. Hoje coordeno o grupo Mães de Maio. Todas as minhas horas, os meus dias, agora pertencem a uma causa: acabar com a matança dos nossos filhos. Só entendi o peso do genocídio de jovens pobres e pretos no dia 15 de maio de 2006, quando um projétil se alojou na espinha cervical de Edson, o meu mais velho. O tiro que atingiu seu coração massacrou o meu também. O autor do disparo, 10 anos depois, ainda não foi punido. Vou contar desde o começo: era domingo, minha família comemorava meu aniversário com um almoço em casa, em Santos (SP). O clima estava sombrio para todos os paulistas: O Estado havia dado um toque de recolher, não aparecia uma viva alma nas ruas. A sensação de desespero tinha me apertado o peito dia 12, com o começo de uma guerra sangrenta que não era nossa, mas travada entre a polícia e o PCC (Primeiro Comando da Capital, organização criminosa que dominava os presídios). Agentes, carcereiros e policiais achacavam os presos, e isso provocou uma enorme revolta entre os que estavam atrás das grades cumprindo pena. Ocorreram muitos tiros do lado de fora.

Edson, então com 29 anos, nasceu antes de eu completar 17 anos. Criei esse menino com todo cuidado que uma mãe pode dedicar a alguém. Alguns anos depois, tive duas meninas. No fim daquela tarde de maio, Edson se despediu com um beijo. Disse para eu desligar a TV, porque percebeu que eu estava atônita com a quantidade de pessoas mortas. Eu me lembro de ter dito a ele: “Toma cuidado com a sua vida”. Não queria que fosse embora para a casa dele. Edson havia extraído um dente, estava com pontos na boca, sentia dor. Decidiu sair para comprar o remédio e, de lá, seguiria para sua casa. Fiquei entre o Rádio e a TV ouvindo os nomes dos mortos para saber se eu conhecia alguém. Um deles era o meu Edson. A morte do meu filho me enlouqueceu, no primeiro momento. Logo depois procurei outras mulheres, de luto como eu, e criamos o movimento Mães de Maio. Choro muito, ainda. Mas tem o outro lado: lágrimas ensinam. A dor me obrigou a resistir, descobrir o meu direito e a buscar vitórias.”

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Conquista
“A primeira foi convencer a imprensa de que os assassinados – quase todos jovens, pobres, pretos, da periferia – não eram bandidos. Apenas 2% dos executados nas ruas tinham passagem pela polícia. Nunca se matou tanto no país como naquele maio. O primeiro balanço contabilizou 493 cadáveres. O Conectas Direitos Humanos, uma ong internacional, informou que podem ser 532. Cinco anos depois, pesquisadores da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, compilaram relatórios – muitos protagonizados por nós, mães, que listamos os nomes –, e, então, concluíram que o massacre havia vitimado possivelmente 600 cidadãos. E, no entanto, a Nação se calou. Ninguém quis saber o que aconteceu com as nossas famílias, ainda mais invisíveis depois da perda dos filhos e do silêncio do Estado. Muitos deles sustentavam a casa. Uma moça, Ana Paula Gonzaga, de 29 anos, daria à luz naquele dia. Acabou de fazer a mala para a maternidade, foi à padaria com o marido… e acabou trucidada covardemente.”

Enfrentando a Presidência
“Essa luta já me levou a falar com muitas autoridades e até com Dilma Rousseff, quando ela era presidenta da República. Em dezembro de 2013 fui a Brasília receber uma medalha do governo federal no Fórum Internacional de Direitos Humanos. Ela estava no palco. Fiz a Dilma um apelo para se emprenhar com o Congresso e a nação e desmilitarizar a polícia, uma das que mais matam, para que ela passasse a proteger o cidadão. O mundo fica perplexo com o Brasil – aqui são assassinadas 56 mil pessoas por ano, 33 mil entre 12 e 18 anos. Existe pena de morte não declarada nas periferias. Foi que expliquei para Dilma Rousseff: ‘O nosso país é produtor de 56 mil mães de maio todos os anos. Essa é uma outra ditadura’. A ditadura da PM.”

O mundo fica perplexo com o Brasil. Aqui são assassinadas 56 mil pessoas por ano

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Criança negra já nasce podendo ser presa
“Que futuro os jovens terão se essa sangria não for estancada? Para quê reduzir a maioridade penal? Criança negra já nasce podendo ser presa. É gerada sem direitos, sujeita à uma educação falida, que não prepara ninguém para um futuro digno. Há uma lógica terrível, mantida pelo sistema político corrupto, que coloca pobre contra pobre, matando-se uns aos outros. O Estado não se faz presente com políticas sociais e transforma a periferia em um depósito de suspeitos para mostrar que existe uma segurança pública atuante. Mas atuar matando nossos filhos?”

Calando um desembargador
“Não tenho medo de ninguém. Não estudei, não sabia como as leis eram feitas, como funcionava a Justiça, nada, nada. Hoje sei. Uma vez, fui convidada para um debate na Rádio Trianon, em São Paulo. Vi um senhor de terno e gravata. Fiquei surpresa, era um desembargador que debateria comigo. Eu estava com o poder maior da Justiça paulista: o Tribunal que julgou em 20 de setembro de 2012 o caso do meu filho – só na parte civil – e que concluiu que o Estado era culpado pelo assassinato de Édson. Eu lhe disse: ‘As mães de maio querem o julgamento na área criminal. Se o Estado reconhece culpa, onde está o matador?’. E questionei o desembargador: ‘Por que os inquéritos estão arquivados?’ Ele respondeu que havia um erro. Perguntei onde. E ele: ‘Na base’. O desembargador se referia à polícia judiciária, que deveria descobrir a autoria. ‘Ora’, eu retruquei, ‘ela é culpada e quem paga somos nós, com a ausência dos nossos filhos? É inaceitável que uma polícia mate, a outra não apure e o Ministério Público, numa canetada, peça o arquivamento.’ Encerrou aí o tal debate. Com um desembargador mudo. Não tinha mais clima.”

A indenização que o estado não paga
“Eu ganhei o maior dano moral da minha vida, como mãe negra e pobre. Mas o que faço com isso na prática? Meu filho não volta. Mesmo com o reconhecimento de culpa, até hoje não recebi a indenização de 165 mil reais, porque o Estado de São Paulo recorreu ao Supremo Tribunal Federal.
Enquanto isso, sigo lutando: A Defensoria Pública denunciou o país à Organização dos Estados Americanos, OEA, pela falta de investigação e punição dos crimes de maio. Conseguimos também a aprovação de uma lei, que o governador Geraldo Alckmin teve de sancionar, estabelecendo o dia 12 de maio como o Dia das Mães de Maio, para que nunca esqueçam esse episódio sangrento. Criamos a Comissão da Verdade da Democracia Mães de Maio com o objetivo de apurar alguns dos crimes praticados pelo Estado brasileiro de 1985 para cá, suas consequências e as conexões com a Ditadura.
Na Câmara Municipal de Santos, conseguimos aprovar, em 2013, por unanimidade, nosso pedido de perpetuação dos túmulos dos nossos filhos assassinados. No nosso olhar é uma punição ao município. As autoridades disseram, naquele momento, que Santos estava a salvo dos ataques da PM. A conservação ajudará em perícias futuras, quando conseguirmos a federalização da apuração dos crimes.”

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Edson nasceu antes de eu completar 17 anos. Criei esse menino com todo cuidado que uma mãe pode dedicar a alguém.

Muitas derrotas. Sem baixar a cabeça
“Mas há também decepções: pedimos a federalização das investigações em 2010. O Estado de São Paulo se mostrou incompetente para apurar. O pedido está protocolado na Procuradoria Geral da República. Pasmem: sem resposta até hoje.
Também esperava mais de Flávia Piovesan, que hoje é secretária de Direitos Humanos, do governo Michel Temer. Ela conhece nossa luta há muito tempo. Foi relatora da comissão que analisou os crimes de maio, no governo Dilma. Flávia concluiu, na época, que os crimes são tão cruéis quanto os ocorridos nos anos de chumbo, nos anos sem democracia. Recomendou que as autoridades investigassem tudo de forma correta. A comissão deu um tempo para o governo Alckmin responder. Qual foi a resposta? A criminalização das famílias. Na visão do estado de São Paulo nós, mães, acusamos a PM sem provas. Ora, não somos nós que devemos levantar as provas.”
No Ministério Público de São Paulo, a apuração está cheia de gráficos, papéis, carimbos, mas oficialmente nos disseram que jamais vamos conseguir porque perderam-se as evidências e as provas para apontar os criminosos.
Nas derrotas entra ainda o desrespeito que enfrentei. Ao levar ao promotor de Santos documentos que atestavam a boa conduta do meu filho, ele recomendou que eu colocasse num quadro, porque, para a Justiça, aquilo não valia ‘porcaria nenhuma’.”

Meninos da periferia, sem opção, pagam, caro
Edson já tinha sofrido a consequência de viver sem opção na periferia muitos anos antes de sua morte. Ele foi pego como suspeito de um assalto a mão armada e, torturado, assinou uma confissão. Foi julgado, condenado e preso. Não sosseguei enquanto não reuni provas e apontei à polícia e à Justiça o verdadeiro assaltante. Meu filho ficou no cárcere por dois anos, recebeu um indulto e começou a trabalhar. O indulto limpou a sua ficha, ele, então, não tinha antecedentes criminais. Ao sair da minha casa, naquele terrível domingo, 15 de maio, foi rendido em um posto de gasolina onde abasteceria a moto. Os policiais já desceram dando chutes e murros no peito. Édson mostrou o holerite que estava no bolso e a PM foi embora. Saindo dali logo depois, meu filho foi alcançado e alvejado. Depois, a polícia pesquisou 23 vezes sua ficha, na tentativa de justificar que ele morreu por ser bandido.

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Vou continuar gritando até perder a voz ou mudar a realidade truculenta do meu país.

Domingos de festa, rotina de viagens e palestras
“Para trocar um pouco o tema da morte pela vida, faço trabalhos com crianças dos cortiços de Santos. Uma equipe vai, corta cabelo, faz unhas. Entregamos, como na páscoa, ovos de chocolate ou brinquedos. Juntamos o movimento hip hop, o de teatro… os domingos ficam festivos.
Eu estou sempre viajando, reunindo outras mães em diferentes locais do país, participando de discussões, falando com políticos. Já fizemos um filme e um livro. É fundamental multiplicar a visão das mães na sociedade para que isso interfira em projetos públicos de educação, saúde, moradia, segurança. Meu trabalho não é remunerado, meu marido mantem a casa. Recebo passagem e alimentação para as viagens. E mais nada me interessa, porque minha vida não me pertence mais. Ela é pública. Vou continuar gritando até perder a voz ou mudar a realidade truculenta do meu pais.”

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