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Mary Del Priore: “durante séculos, a velhice foi um lugar de poder muito importante”

O culto à juventude nem sempre foi regra no Brasil — é o que defende a historiadora em seu mais novo livro

Por Paola Carvalho
17 jun 2025, 16h00
O culto à juventude nem sempre foi regra no Brasil — é o que defende a historiadora Mary Del Priore em seu mais novo livro, que analisa as expectativas (e o prestígio) que as mulheres maduras carregavam nos séculos passados
“Durante séculos, a velhice foi um lugar de poder muito importante. Isso para mulheres de todas as camadas sociais. A preocupação com a juventude não existia”  (Ilustração/CLAUDIA)
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Velha, bruxa, donzela, dama, mestiça, sinhá, solteirona, coroa, viúva, jabiraca, anciã, matrona. Ao longo da história brasileira, muitas foram as definições para as mulheres, em suas diferentes fases. Todas elas aparecem na obra da historiadora e escritora Mary Del Priore, uma das mais prolíficas de nosso tempo, que acaba de lançar seu 56° livro: Uma história da velhice no Brasil. Conforme ela conta logo nas primeiras páginas, tudo começou com “uma dor no joelho e uma mãe centenária” — e ambos se foram antes da escrita ir para o papel. 

Outra inquietude motivadora foi a constatação de que a população brasileira está mais envelhecida e feminina do que jamais esteve. Em 2022, o último censo do IBGE mostra que o número de pessoas com mais de 65 anos cresceu 57,4% desde 2010. Até 2030, o Brasil terá mais gente acima dos 60 anos do que crianças até 14. Durante quase 500 anos, velhos eram apenas sobreviventes. Muito mudou. Hoje, a aposentadoria deixou de ser marcador de velhice, e exalta-se o corpo saudável, ativo e atraente.

Simone de Beauvoir, no clássico A velhice, tentou romper o silêncio em torno do tema. As questões que ela levantou seguem atuais — ainda mais num cenário em que o etarismo ocupa as telas, as universidades e a mídia. Já Mary Del Priore buscou dar voz ao velho de ontem para que ele narrasse o velho de hoje. Em vez de respostas, coletou testemunhos. Seu novo livro mostra como a sociedade brasileira viu, tratou e representou a velhice — das tradições indígenas e coloniais aos tempos atuais.

“Durante séculos, a velhice foi um lugar de poder muito importante. Isso para mulheres de todas as camadas sociais. A preocupação com a juventude não existia”
Hoje, a aposentadoria deixou de ser marcador de velhice, e exalta-se o corpo saudável, ativo e atraente (Ilustração/CLAUDIA)

Aos 73 anos, Mary é uma mulher liberal da elite carioca, multipremiada, com passagens pela PUC-Rio, USP e pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, de Paris. Dividindo opiniões e enfrentando tabus, ela fala sobre corpo, tempo, história e invisibilidade — na entrevista exclusiva a seguir, concedida à CLAUDIA:

CLAUDIA: Diferentemente das biografias, você dá voz a mulheres anônimas. Qual a importância dessa memória?

Eu quis dar voz aos velhos, tanto homens quanto mulheres. E aí é notável a gente perceber como —  se hoje a mulher brasileira tem todo um projeto de não envelhecer, de esticar ao máximo à juventude — durante séculos, a velhice foi um lugar de poder muito importante. Isso para mulheres de todas as camadas sociais. Não estou falando só daquelas que eram possuidoras de bens, que ficavam viúvas muito cedo e, portanto, administravam a fortuna da família, o casamento dos filhos, a vida dos netos. Mas eu falo daquelas mulheres que sobreviveram nas roças mais distantes, de enxada no ombro, indo buscar lenha e água no poço ao lado dos seus companheiros. Durante muito tempo, a preocupação com a juventude não existia.

As nossas indígenas inspiraram a imagem das bruxas europeias de que forma? Durante muito tempo e até o século 19, o Brasil foi considerado um país de águas límpidas, de ares puros e, sobretudo, a alimentação do povo brasileiro, que era uma alimentação muito dietética: farinha de mandioca ou de milho, carne de porco ou peixe e aquilo que existia à volta do lugar onde se estava. Esse tipo de nutrição valeu ao brasileiro uma condição física que era observada por todos os viajantes estrangeiros que passavam por aqui, notadamente entre os indígenas, que eles achavam que eram constituídos de uma robustez espetacular, enquanto que as indígenas vão inspirar essa imagem que nós temos até hoje de uma mulher velha feia.

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Até hoje, quando a gente quer dizer que uma mulher é feia, a gente diz que ela é uma bruxa. E são exatamente a ideia das velhas indígenas, que eram muito longevas, em volta do caldeirão do banquete antropofágico, desdentadas de tanto roer ossos, com pouco cabelo, aquele peito de cigarra, que vai ser levada à Europa, para os grandes gravuristas do Renascimento redesenharem a imagem da bruxa. Então é interessante que são as nossas indígenas que vão inspirar a imagem das bruxas europeias. 

Hoje, a aposentadoria deixou de ser marcador de velhice, e exalta-se o corpo saudável, ativo e atraente
Mary Del Priore, uma das mais prolíficas de nosso tempo, acaba de lançar seu 56° livro: Uma história da velhice no Brasil (Ilustração/CLAUDIA)

CLAUDIA: Em que momento da história essa preocupação com o corpo e a aparência da mulher começou a ganhar força?

Muito recentemente, porque até o século 19 a única preocupação da mulher era em ser uma mulher casada e, dentro dessa família patriarcal, ter uma família larga, com muitos filhos. Essas gravidezes múltiplas, desde muito cedo, acabavam realmente por transformar a mulher em uma figura pouco agradável de se olhar —  isso dito pelos viajantes no século 19. Diziam que a partir dos 30 anos elas ficavam muito pesadas, muito gordas, andavam com dificuldade, muito desleixadas, com pouco asseio. Mas é de se imaginar: um parto por ano em uma época em que não havia obstetrícia, os nascimentos eram feitos em casa, o aparelho genital da mulher ficava realmente muito depauperado, toda a constituição óssea era roubada no momento da gravidez. Então as mulheres não tinham dentes, elas não sorriam. 

CLAUDIA: A vaidade feminina já foi considerada um pecado. Como esse olhar moldou o comportamento de mulheres?

A vaidade feminina era vista como um pecado grave, e muitos produtos de beleza eram voltados aos homens, como tinta para barba, bigode e sobrancelha. Eles usavam espelho para se ver mais jovens. O homem devia ser honrado publicamente; a mulher era controlada na vida privada pela família e comunidade, especialmente se viúva, pois não se aceitava que ela se apaixonasse de novo. As mulheres não mencionavam paixão, amor ou sexo — temas que só ganham espaço nos séculos 20 e 21. 

Até 2030, o Brasil terá mais gente acima dos 60 anos do que crianças até 14
Em 2022, o último censo do IBGE mostra que o número de pessoas com mais de 65 anos cresceu 57,4% desde 2010 (Ilustração/CLAUDIA)
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CLAUDIA: Quando você enxerga uma mudança mais brusca?

As mudanças mais marcantes começam no século 20, com a chegada das imagens — não mais ilustrações — que vinham acompanhadas de orientações sobre o que vestir, como deveria ser um vestido de noiva ou uma roupa de festa. A fotografia e, depois, o cinema trouxeram uma nova percepção do corpo feminino. Até então, a mulher magra era vista como doente, tísica; o belo era a mulher cheia, com corpo gordo, saudável. E o que se valorizava não era o rosto, mas os cabelos, as mãos e os pés. Quando se casava, aqueles cabelos soltos magníficos e elogiados eram imediatamente presos — a mulher envelhecia no dia do casamento. Maquiagem não foi usada pela brasileira até o século 20: coisa de dama, de prostituta. A aparência da mulher casada tinha que ser austera, envelhecida, para acompanhar os maridos, que eram muito mais velhos. 

CLAUDIA: A relação entre casamento e envelhecimento é muito forte na história brasileira. Quando começamos a ver uma mudança mais clara nesse vínculo?

Sim, e essa história se mistura com a do casamento, que por muito tempo foi visto como sinal de envelhecer bem. Mas a partir dos anos 1920 e 1930, o olhar da sociedade muda — especialmente porque passamos a nos ver velhos no olhar do outro, sobretudo dos jovens. É nessa época que a juventude começa a ganhar destaque no Brasil, com a “Semana de 22” projetando autores jovens como Mário e Oswald de Andrade e Pagu. Eles vão inclusive usar a ideia de velhice como algo ultrapassado, atacando figuras como Machado de Assis e a Academia Brasileira de Letras.

A mulher começa a entrar no mercado de trabalho, adota saias mais curtas, uma postura mais ágil — e o contraste com a mulher mais velha se acentua. Isso se repete nos anos 1960 e 70, com o rock, a pílula anticoncepcional e o feminismo, que consolidam uma juventude dourada, celebrada nas praias, na música, na maconha. E esse novo ideal juvenil passa a ser também alvo de angústia — como mostra Clarice Lispector, ao falar da raiva de ter perdido a juventude e o desejo de recuperá-la.

CLAUDIA: Você menciona que impotência e menopausa eram os marcos do envelhecimento. Como essas experiências eram compreendidas e ainda nos afetam?

Durante séculos, sem registros precisos de idade, não havia calendário, a velhice era marcada principalmente por mudanças biológicas: a menopausa para a mulher e a impotência sexual para o homem. Para eles, existiam remédios e práticas tradicionais — algumas curiosas, como aplicar pasta de formigas voadoras ou aplicar sebo de animais viris, como bode, e sentar em brasas — para tentar combater a perda da potência sexual. Já para as mulheres, a menopausa significava a infertilidade e transformações físicas, como ganho de peso e crescimento de pelos. Hoje, no século 21, a menopausa e outras questões íntimas, antes veladas e tabu, passaram a ser discutidas abertamente, em razão do espaço criado pelas redes sociais e a uma nova cultura de “lugar de fala”. 

CLAUDIA: Diante do envelhecimento acelerado da população brasileira, quais questões precisamos enfrentar com urgência?

O que vai acontecer é que nós não vamos mais nos impressionar com a velhice, ela vai se tornar algo natural e comum para todos. A grande preocupação, porém, está no aspecto econômico: o Brasil envelheceu antes de enriquecer, como analisou José Pastore, e as próximas gerações terão dificuldades com aposentadoria e atendimento médico. O Estado não está preparado para cuidar de uma população envelhecida tão grande. No livro, eu falo que a geração que viveu a revolução sexual pode ser a que fará a “revolução da morte”, pois o país terá que discutir a morte assistida, já que hospitais estarão lotados de pessoas no fim da vida, e os médicos acabarão priorizando esses casos em vez de tratamentos emergenciais para adultos saudáveis e crianças. Essas são questões urgentes que o envelhecimento trará à tona. 

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Velhice
A vaidade feminina era vista como um pecado grave, e muitos produtos de beleza eram voltados aos homens, como tinta para barba, bigode e sobrancelha (Reprodução/Reprodução)

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