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A mulher que mudou o rumo da obra de Machado de Assis

Intelectualizada e culta, Carolina Xavier de Novaes contrariou a família ao se casar com um homem negro em pleno século 19 e contribuiu em livros clássicos

Por Letícia Paiva Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 11 jun 2020, 15h47 - Publicado em 9 jun 2020, 03h00
 (Arquivo Instituto Moreira Salles/Reprodução)
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Quem leu Machado de Assis na adolescência com gosto, certamente se entusiasmou com a notícia de que, na semana passada, um dos mais importantes romances do escritor carioca foi relançado nos Estados Unidos com exemplares esgotados de livrarias virtuais em apenas um dia. Descrito como “um dos livros mais espirituosos, divertidos e, por isso, mais vivos e eternos já escritos” em trecho do prefácio publicado pela revista The New Yorker, Memórias Póstumas de Brás Cubas, ganhou nova tradução para o inglês por Flora Thomson-DeVeaux. A recepção gerou expectativa de um resgate do autor, que, apesar de ser apontado com um dos escritores latino-americanos fundamentais, não é popular no exterior. Mesmo no Brasil, há aspectos da trajetória dele que não recebem devida atenção, como a influência da portuguesa Carolina Augusta Xavier de Novaes, grande amor de Machado de Assis, para a formação de sua obra.

O casal esteve unido de 1869 a 1904, quando a morte de Carolina, aos 70 anos, os separou. Sem filhos, o escritor passou os anos seguintes terrivelmente abatido pela morte da companheira. Em carta enviada ao historiador Joaquim Nabuco dois meses após a perda, temos um fragmento dos sentimentos de Machado por Carolina. “Foi-se a melhor parte da minha vida, e aqui estou só no mundo. Note que a solidão não me é enfado­nha, antes me é grata, porque é um modo de viver com ela, ouvi-la, assistir aos mil cuidados que essa companheira de 35 anos de casados tinha comigo; mas não há imaginação que não acorde, e a vigília aumenta a falta da pessoa amada. Éramos velhos, e eu contava morrer antes dela, o que seria um grande favor”, escreveu ele ao amigo. 

No mesmo ano em que se despede da esposa, publica seu último soneto, A Carolina, um dos mais comoventes de sua obra poética. Além disso, em 1908, meses antes de sua morte, aos 69 anos, lança Memorial de Aires, hoje interpretado como um romance com toques autobiográficos sobre seu relacionamento. O escritor seria enterrado ao lado do túmulo da companheira, no Cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro. Em um delicado gesto, pediu que, assim que morresse, fosse queimado o móvel em que guardava relíquias de amor, como as cartas trocadas com Carolina quando eles ainda eram namorados, pedaços do véu de noiva, a grinalda e os sapatinhos de cetim usados por ela em seu casamento. O registro é de Lucia Miguel-Pereira, autora de uma das primeiras biografias sobre o autor, de 1936, para a qual entrevistou pessoas próximas do casal.

Eles se conheceram por intermédio do irmão de Carolina, o poeta Faustino Xavier de Novaes, após ela se mudar de Portugal para o Rio de Janeiro, aos 32 anos, cinco a mais do que Machado. No período, era incomum uma mulher solteira com essa idade, mas a decisão, nesse caso, era da própria Carolina, a quem sobravam pretendes. A portuguesa é descrita por Miguel-Pereira como “mulher feita, inteligente, desembaraçada, senhora de si, habituada, na casa paterna, ao trato dos intelectuais”.

De acordo com a biografa, o namoro foi reprovado pela família de Carolina, pertencente à elite intelectual, enquanto Machado ainda não tinha grande reconhecimento social – na época, escrevia para jornais e trabalhava no Diário Oficial – e, mais importante, era negro. Determinada, ela enfrentou a negativa e se casou mesmo assim. “Na hierarquia social, Carolina se uniu, por escolha própria, a alguém de nível abaixo. Ela foi determinante para que ele tivesse estabilidade emocional e também transitasse entre intelectuais”, diz Luís Augusto Fischer, professor de literatura brasileira da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, autor do livro Machado e Borges (Arquipélago).

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A esposa teria sido a responsável por incentivá-lo a ler em inglês e a conhecer clássicos da literatura britânica, forte influência da melhor fase do escritor. “Machado, como todo auto-didata, tinha enormes lacunas de cultura, das quais muitas parecem haver sido preenchidas graças às indicações de Carolina”, escreve Miguel-Pereira. A biógrafa apresenta ainda um dos pontos mais interessantes sobre a vida dos dois, de que a companheira de Machado não apenas influenciara o escritor com o seu repertório cultural, mas também teria sido fundamental no desenvolvimento da escrita dele, corrigindo deslizes ortográficos, fazendo apontamentos e modificações em seus textos.

“Grande madrugador, Machado escrevia de manhã, antes de ir para o trabalho; apenas saía, vinha Carolina ler as novas páginas, anotando as distrações, as frases que lhe pareciam menos felizes, indo até a modificar uma ou outra expressão”, registrou a biógrafa, que chega a caracterizar Carolina como um “segundo eu do autor”, a partir dos relatos de uma sobrinha do escritor. A versão é bem aceita em biografias posteriores e entre intelectuais de literatura brasileira. Há quem vá além e conjecture a possibilidade de que, em certos momentos, a esposa atuasse como coautora, mas não há evidências contundentes para tanto.

No caso de Memórias Póstumas de Brás Cubas, publicado originalmente em 1881 e revisitado agora pelos americanos, há o entendimento de que primeiros capítulos foram ditados por Machado à Carolina, que também os comentava, quando o casal se recolheu por cerca de três meses em Nova Friburgo, região serrana do Rio de Janeiro. No período, o escritor sofria de problemas de visão. Ela esteve ao lado do marido em todos os momentos de intensas crises de epilepsia, sofridas por ele desde os primeiros anos do casamento – nos piores episódios, cortava com esmero os alimentos para que ele pudesse comer.

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Apesar do amor que nutria por Carolina, despertado desde o namoro correspondido por cartas, o escritor era “ciumentíssimo” em relação à companheira, como descreve, em O Machado de Assis que eu vi (1961), Francisca de Basto Cordeiro, que conviveu com o casal. Segundo o relato, Machado não deixava que Carolina participasse ativamente de conversas com os escritores e homens cultos que os visitavam, abandonando a vida que levava antes. “Habituada em sua terra ao convívio de grandes intelectuais, amigos de seus irmãos, ela abdicou de si mesma para se dedicar exclusivamente ao homem que amava e tanto lutou para desposar”, menciona Francisca.

Mas o ponto que tem sido mais contraditório na vida do autor após o casamento é o seu afastamento da madrasta, Maria Inês da Silva, mulher negra que o criou após a morte de ambos os pais. Ensinando o pouco que sabia, ela foi a primeira mestra dele enquanto menino. Ao se casar com Carolina, Machado deixa de visitar a madrasta em definitivo. Na perspectiva dos relatos biográficos, esse movimento teria acontecido como uma forma de ele se distanciar das lembranças do passado humilde, mas, provavelmente, com remorso. Quando Maria Inês morreu, o escritor foi ao seu velório na companhia de um amigo, para o qual se referiu à Maria Inês, finalmente, como sua mãe.

 

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