Potencializadoras: Solange Borges, mestra da culinária de terreiro
Numa agrovila baiana, a chef de cozinha quebra preconceitos e aproximas as pessoas do candomblé através da comida sagrada
Entre as casas fundeadas por roças de dendê, na Agrovila Pinhão Manso, em Camaçari (BA), Solange Borges caminha altiva, com um facão na cintura, preso na costura da longa saia rodada. Ali, a mulher de 59 anos transformou terra em sonho e criou, em 2017, o Culinária de Terreiro, um espaço ao lado de um terreiro de candomblé, liderado por sua filha, onde os visitantes e clientes cozinham com ela, em fogão a lenha, alimentos que fazem parte da cultura e dos rituais da religião. Ela, que não é uma mulher de beijos e abraços, demonstra amor em forma de comida. “Eu gosto de abraçar com minha comida. Tem gente que chora de emoção quando come meu acarajé. Aí, me sinto querida”, diz ela com um largo sorriso, que não sai do seu rosto durante toda a conversa. Ela é a primeira de um grupo de mulheres incríveis que você conhecerá no projeto Potencializadoras, uma parceria especial entre CLAUDIA, PretaHub e Meta.
A culinária que resgata a ancestralidade e as histórias do povo afro-brasileiro tem atraído a atenção de renomados chefs de todo o país. Recentemente, Janaina Rueda, que assina os restaurantes A Casa do Porco e Dona Onça, em São Paulo, esteve ali. Antes dela, Alex Atala foi presentear Solange com seu mais recente livro, sobre a mandioca.
O Culinária de Terreiro foi a forma que Solange encontrou de lutar contra a intolerância religiosa, uma das facetas do racismo estrutural no Brasil. “Existe muito preconceito com os terreiros de candomblé, então nada melhor do que romper isso através da comida, que sempre aproximou as pessoas, convidando todo mundo a comer comida de terreiro, feita ali, na hora, em fogão a lenha.” Além do dendê —que, transformado em óleo, vai em quase todos os preparos— a agrovila tem plantações de mandioca, urucum e diversos frutas e legumes, a depender da estação. No dia a dia, quando não festas ou ritos especiais, saem raízes, cuscuz ou beiju no café da manhã. No almoço, carne ou tilápia (criada pelo vizinho) são acompanhadas de uma salada com plantas da roça e feijão. A cada primeiro domingo do mês, a agrovila organiza uma feirinha para vender parte da colheita e da produção de farinha e azeite de dendê.
Mas a culinária não foi sempre uma paixão na vida de Solange. Começou como necessidade. “Sou a mais velha de quatro filhos. Mainha, que era baiana de acarajé, estava na labuta e a gente precisava ajudar”, conta. Com um “pegue ali, minha filha” ou “refaça isso aqui”, a menina-moça foi aprendendo não só o ofício da cozinha, mas o cuidado com o sagrado. “Desde a arrumação do tabuleiro, o cuidado com os trajes, as rendas perfumadas… Essa coisa de deixar o prato bonito não é da alta gastronomia, não. As mulheres pretas sempre tiveram isso de fazer um prato bem apresentado para oferecer ao santo.”
Solange faz questão de reivindicar para a mãe, para si e para tantas outras o título de empreendedora. Ela, que já foi faxineira, empregada doméstica, lavadeira e manicure, lembra que “as mulheres pretas são as maiores empreendedoras deste país.” Não à toa, foram baianas de tabuleiro e lavadeiras de ganho que compraram a alforria de muitos escravizados com o pouco que ganhavam nessas atividades.
Orgulho e resistência
Quando sua mãe e mestra morreu, em 1985, Solange se afastou da religião e da cozinha. Três anos depois, passou num concurso público para o setor administrativo de um hospital, e só retomou a relação com a culinária em 2009, quando se matriculou num curso de gastronomia. Ali, viu que já conhecia a maior parte das técnicas de preparo, apesar de não saber seus nomes. Era difícil achar tempo para o estudo. Além de trabalhar muito, criou sozinha os dois filhos (que hoje já lhe deram três netos).
Em 2011, se reaproximou do candomblé e fez sua iniciação. Tornou-se mameto (sacerdotisa). Quando sua filha precisou procurar um novo lugar para estabelecer o terreiro, chegaram à Agrovila Pinhão Manso. “Não fui eu que escolhi, foi o santo que me trouxe para cá”, diz ela, sempre rindo. O terreno amplo, onde convivem 20 famílias, lhe lembrou aquele onde crescera. “Minha mãe tinha uma terra de uns 200 metros quadrados. A casa era bem simples e pequena, mas ao redor, ela plantava de tudo. Não existe candomblé sem folha. Foi com ela que também aprendi a gostar de mexer com a terra.”
Na agrovila, Solange diz que virou agricultora, feirante. Até que um dia resolveu postar no Facebook o convite para uma vivência: convocou as pessoas a passarem um dia num terreiro de candomblé. “Postei às sete da noite e, às nove, já tinha o primeiro inscrito. Achei fantástico! Tinha gente querendo pagar isso!” Aí nasceu o Culinária de Terreiro.
Ela atribui o sucesso do negócio à simplicidade e autenticidade com que ele é feito. “As pessoas perderam essa conexão com a simplicidade da natureza. O simples é muito diferenciado. Eu já passei por muito hotel e o purê de batata que você come em um é o mesmo que come em todos. Aqui, não. As coisas têm outro sabor”, diz.
Com a realização, cresce também o orgulho que ela sempre carregou pela história do seu povo e sua ancestralidade. “Me sinto feliz de colocar minhas contas do pescoço e falar abertamente que sou do candomblé, incentivando mais pessoas a fazerem o mesmo. Não precisamos mais nos esconder”. Ao dizer essa frase, o sorriso, que abre muitas portas, se alarga, numa lembrança constante da missão de Solange. A de levar para o mundo a culinária de terreiro, com o riso no rosto.
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O projeto Potencializadoras é uma parceria do PretaHub, da CLAUDIA e da Meta para contar histórias de mulheres negras empreendedoras. A fotógrafa baiana Helen Salomão e o carioca Wendy Andrade se uniram para retratar 15 mulheres que fazem parte da Aceleração de Negócios de Empreendedoras Negras, iniciativa idealizada pela Meta e pela PretaHub.