Pathy Dejesus, a fênix: “Separação, puerpério e pandemia me obrigaram a renascer”
Aos 44 anos, a atriz e DJ fez as pazes consigo mesma após um puerpério solitário e as incertezas do hiato profissional causado pela pandemia
começo do meu papo com Pathy Dejesus foi uma viagem pela memória afetiva, com muito bairrismo e falas sobre origem. Nossa conexão imediata se deu pelo lugar em que nascemos e crescemos, na Zona Norte de São Paulo.
Frequentamos a mesma escola de samba, a Camisa Verde e Branco, paixão cultivada dentro de um sólido vínculo familiar (e que acabou nos aproximando ainda mais dos nossos parentes). “Morei no bairro da Casa Verde até os 17 anos. É a minha raiz. Fico arrepiada só de falar na Camisa. Meu bisavô paterno, Dionísio, foi um dos fundadores da agremiação”, conta a paulistana, que é fã de Carnaval e chegou a desfilar grávida do seu primogênito Rakim.
Atualmente, Pathy trocou São Paulo pelo Rio de Janeiro por causa das gravações de Um Lugar ao Sol, próxima novela das 9 da Rede Globo. Ainda que as mudanças façam parte da sua vida desde os 17 anos, quando ingressou na carreira de modelo, essa recente teve um sabor agridoce. “Nesse vai-e-volta de São Paulo pro Rio, ficava com medo do Rakim ser assintomático e passar coronavírus para a minha mãe, que é do grupo de risco”, explica.
A tensão, depois de tantos meses seguindo o isolamento à risca, foi amenizada pelos testes diários feitos na emissora e pela primeira dose da vacina. “Ansiedade, alívio e alegria, mas profunda tristeza por milhares que não tiveram a mesma sorte”, escreveu no Instagram, espaço que constantemente usa para expressar sua indignação com as mazelas sociais.
Ao longo dos seus 44 anos, Pathy se muniu de armas poderosas para não só ressignificar suas feridas, mas também conseguir expô-las. Ela diz, por exemplo, que a passarela e as câmeras nunca foram seus sonhos. “Não me sentia bonita”, confessa.
Mesmo com a autoestima golpeadas diversas vezes, ela se destacou em um mercado que dava seus primeiros passos em direção à diversidade racial. Pathy se tornou a primeira mulher negra a estrelar uma campanha de protetor solar e xampu, consolidou uma carreira mundo afora e deu voz à interseccionalidade do feminismo negro na série Coisa Mais Linda, da Netflix, com a protagonista Adélia Araújo.
A relação consigo mesma segue em constante lapidação, principalmente depois do nascimento do filho, do isolamento e da separação. “Eu me deixei de lado por um tempo, mas agora voltei a cuidar de mim. Minha terapeuta me pergunta: ‘Mas o que a Pathy quer?’”, lembra a artista, que segue em busca da resposta.
Para ela, o momento é de um intenso renascimento. Nessa entrevista, Pathy divide as descobertas que teve ao ficar cara a cara com suas marcas do puerpério e da maternidade solo, insights profissionais que conquistou com a maturidade e suas grandes paixões da vida: família e música.
Como foi voltar a gravar depois da pandemia?
Os últimos dois anos foram bem intensos não só pelo isolamento, mas também pela chegada do Rakim. Minha vida mudou por completo. No primeiro momento, nem meus pais podiam vê-lo. Os dois, principalmente minha mãe, são minha base. Tivemos que cortar a presença física por causa da pandemia. Também voltei ao Rio e, pela primeira vez, com o Rakim.
Minha família me deu coragem para encarar esse momento, porque levei o isolamento muito a sério e tinha receio. Com os protocolos sanitários da Globo, o processo virou um respiro tão grande e me deu liberdade dentro de tudo isso que estamos vivendo. Pude voltar a exercer meu ofício, que era o que mais queria, e com meu filho junto. Essa combinação me levou a um renascimento. A gratidão não é só pelo lado financeiro, mas pela valorização da arte, que vem sendo muito prejudicada nesse governo.
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Quais são as lembranças que você tem do puerpério, que coincidiu com o período de isolamento?
Uma das coisas que aprendi no puerpério é que ele não tem duração exata. Admito que, antes, não tinha noção do que seria. Quando divido a experiência, vejo ainda mais como é uma fase pessoal. O meu puerpério foi extremamente intenso, individual e solitário, mas só fui entender isso e ver as sequelas que ficaram na terapia.
Esse lance de ser workaholic me atrapalhou nesse processo de olhar pra mim, porque só queria me doar e entregar. Dois meses e meio após o nascimento do Rakim, já estava no set para gravar a segunda temporada de Coisa Mais Linda. É muito pouco tempo, mas, na época, não tinha noção do que era o puerpério e queria estar ali. Não faria isso de novo, porque não foi justo comigo mesma.
A ficha só caiu quando estava lá trabalhando, e percebi que queria estar olhando pra mim, na companhia do meu filho, amamentando. Depois que passou o trabalho, tive um baby blues [quadro emocional que atinge de 80 a 90% das puérperas e causa sintomas como tristeza e irritabilidade] muito forte.
Falar tudo isso é realmente libertador, porque outra puérpera consegue entender. Muitas vezes, você não tem a palavra certa para definir o que está passando e sentido. Tinha dias que só queria chorar e não me permitia fazer isso por pensar que meu filho precisava de mim, sendo que eu também precisava de cuidado, afeto e apoio. Não tive um olhar especial e ninguém fez nada por mim. Contei apenas com o apoio dos meus pais.
“Ser mãe depois dos 40 me trouxe inteligência emocional para enfrentar os desafios. Não romantizo a maternidade, principalmente a solo, que é o meu caso”
Além da terapia, o que mais ajudou a encarar essa ferida?
A música, que também é meu trabalho. Com a pandemia, deixei de tocar e atuar, mas tenho os equipamentos em casa e, sempre que possível, tocava para o Rakim. Na verdade, isso já acontecia enquanto ele estava na minha barriga e fico contente que temos essa conexão. Pra mim, tocar é um comprometimento e levo a sério. Acredito em energia e que a música cura. Nesse processo, dou e recebo muita coisa também. As sensações ficam afloradas. Se não estou bem, não toco, afinal, gosto de estar equilibrada e ver as pessoas vibrando, pulando e renovadas.
Mas, no isolamento, me vi em um segundo puerpério e bem longe dessa vibe. Quando me chamaram para fazer a primeira live, quase neguei, só que resolvi encarar. Sempre fui muito segura, mas naquele dia fiquei sem chão e tive uma crise de pânico, tremia e chorava sem parar. Depois que consegui respirar e me apresentar, as coisas fluíram e vi que a cura era mais pra mim do que para os outros. A partir daí, me senti mais relaxada e entendi que o processo era totalmente meu.
Como surgiu sua relação com a música?
Meu pai era DJ e dava bailes. Desde pequena, sempre ouvi muita música, principalmente de artistas pretos. Inclusive, vejo muito isso no Rakim, quando ele segura o vinil na mão e coloca o fone. Eu fazia a mesma coisa. Durante o meu casamento com o DJ Primo, aperfeiçoei meu ouvido – que, modéstia à parte, é muito bom – e desenvolvi a técnica de discotecagem. Esse amor e respeito pela música é resultado de uma história genética e de influências na minha vida.
“Há alguns anos, uma crítica acabaria comigo, mas, com autoconhecimento e amadurecimento, aprendi a me olhar com mais afeto”
Que lições que você absorveu com a música?
O Mano Brown tem muito a ver com a minha adolescência, visão de mundo e descoberta do que é ser mulher e preta. Ouço Racionais desde muito cedo. Consigo me lembrar de quando escutei pela primeira vez e foi uma revolução, que começou com uma conversa com o meu pai. Eu tinha 13 anos. Ele me disse que eu precisava sair da minha bolha e me colocou pra trabalhar.
Sempre tive muita noção do que era racismo, mas enxergá-lo de forma estrutural foi um processo. Eu era a única negra na minha sala, sofria preconceito e chorava por não saber verbalizar nem combater a opressão, muitas vezes naturalizada. Realmente, não tinha com quem dividir. As letras dos Racionais dialogavam diretamente com esses meus atravessamentos e me davam autoestima.
Dessa forma, o rap entrou com muita força na minha vida, principalmente pelos samples, que são pedaços de outras músicas, que meu pai escutava. Era uma ligação afetiva quando ouvia as batidas potentes do James Brown com os versos do Mano Brown e do Edi Rock. A música serviu como um despertar na minha vida.
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Você fala dessa vivência racial isolada na escola. E como foi na moda?
Essa visão amadurecida de como era solitário esse lugar só fui ter um pouco depois. Talvez por ser de uma geração que abriu caminhos na moda, que era e ainda é uma área muita restrita aos negros. Não passava na minha cabeça ser modelo, porque nunca me senti bonita nem atraente.
Na minha infância, nada me fazia achar isso. No colégio e na faculdade, eu era apenas a inteligente e que fazia ponte para as amigas. O cabelo, que foi alisado por muito tempo, não era o certo. Nada estava bom, mas não entendia ainda que isso era racismo. Afinal, o padrão eurocêntrico que era visto como bonito e fui vítima desse processo para poder ser inserida na sociedade e na profissão. Mesmo com um corpo magro, que sempre foi meu biotipo, sabia que tinha um corpo tolerado, que fugia da estrutura da maioria das mulheres negras.
Acabei sendo considerada a primeira modelo negra do São Paulo Fashion Week, porque peguei uma entressafra. As modelos mais experientes tinham parado e eu estava no mercado. Conversando com a atriz Cris Vianna, percebi que abri portas, mas sem ter noção desse movimento. Na época, era uma modelo negra por agência e por trabalho. Era difícil sermos amigas, porque o ganha-pão de uma era o não da outra. Não tinha o desabafo. Foram 14 anos nesse processo de não respirar, por isso decidi parar de trabalhar como modelo.
Como a dramaturgia apareceu em sua vida?
Sou muito visceral, por isso tudo que faço tem amor, algo que já não sentia mais na moda. Mesmo com estabilidade para me bancar todo mês, viajando pelo mundo com clientes consolidados, isso não me alimentava, principalmente por não poder expor tanto o meu intelecto.
Foram altos e baixos, mas devo muito à moda. Conheci lugares, culturas, pessoas e também a atuação, que sempre foi algo distante. Não entendia que aquilo era pra mim, mas, quando tive mais confiança, resolvi me arriscar. Percebo que no Brasil ainda há um desprestigio e preconceito em relação aos profissionais que atuam em diversos campos da arte.
Essa constatação podou você em algum momento?
Sempre me cobrei para estar pronta em qualquer oportunidade, já que os acessos são escassos. Quando uma pessoa não negra entra em uma novela, ela tem um respaldo e pode errar, porque outros trabalhos estarão à sua espera. Ao mesmo tempo que queria negar meu passado como modelo, para evitar preconceito, não tinha como esconder que estava iniciando outro processo e precisava de uma chance para me desenvolver.
A maturidade amenizou a cobrança consigo mesma?
Há alguns anos, uma crítica acabaria comigo. Mas, com experiência e autoconhecimento, passei a olhar para mim com mais afeto e entender que não tenho que só que entregar, afinal, sou um ser humano com fragilidades. Se ninguém quer me dar colo, eu mesma resolvi me dar colo, porque não vão destruir tudo o que fiz até agora. Não sei se isso será pra sempre, mas é uma fase em que me blindo, me priorizo e entrego meu melhor como profissional e mãe.
Tudo no meu limite. Entendi que é um processo eterno de aprendizado. Não tenho mais aquele desconforto do não saber, mas uma gana por aprender. E isso reflete na minha entrega, tenho uma luz diferente agora. Não me vejo fazer outra coisa que não seja a atuação, quero envelhecer fazendo o que amo.
Como é a busca de se colocar como prioridade?
É difícil! Sempre me vi como uma mulher independente e que luta por isso. É um dos meus maiores trunfos. Corro muito atrás das minhas coisas e tenho orgulho desse lugar. Não romantizo a maternidade, principalmente a solo, que é mais difícil ainda. Mas ter sido mãe depois dos 40 me trouxe mais estabilidade emocional para aguentar a responsabilidade, como a de ser a provedora financeira do meu filho.
A terapia foi o primeiro presente que me dei. Inclusive, faço com uma profissional negra e recomendo isso para todas nós. Com ela, venho aprendendo a frear e lembrar quem eu sou e o que quero pra mim, não só pro Rakim. Comecei a me cuidar mais, porque tinha me deixado de lado. O trabalho também foi um aliado importante. Quando passo meu crachá e entro no set, lembro quem eu sou. Vivo um renascimento, como uma fênix. Minha versão atual é mais desacelerada, generosa comigo mesma, aceita as próprias falhas, mas também enaltece as virtudes.
Nas redes sociais, você não deixa de expressar sua visão de mundo, o que inclui a política. O que a maternidade acrescentou nessa caminhada?
Como falamos, venho do bairro da Casa Verde, periferia de São Paulo. Metade da minha família ainda mora lá e minha casa é no centro da cidade. Não estou alienada ou em uma bolha. A maternidade me trouxe uma sensibilidade ainda maior.
Quando vejo o caso dos três meninos desaparecidos em Belfort Roxo, no Rio de Janeiro, isso me pega. Não tenho como não associar ao meu filho. Isso impacta até na educação que dou a ele. Preciso alertá-lo, mas, ao mesmo tempo, não quero passar cargas, feridas e problemas meus. Eu quero muni-lo de ferramentas para que ele resolva os problemas dele. Não quero que ele passe pelo o que eu passei. Precisamos lidar com outras questões.
Não tem fórmula, estou aprendendo tudo na prática e dentro do possível para educar um menino preto no Brasil. Minha missão é que ele tenha respeito por todos e não se torne um adulto machista. Tenho fé na molecada. Essa geração já vem com um outro olhar. Eles têm uma parada diferente.
Fotos Karine Basílio (Monster mgt) • Beleza Ale de Souza • Concepção Visual Lorena Baroni Bósio • Edição de moda Fabio Ishimoto • Styling Henrique Tank • Tratamento de imagem WM Fusion