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Um filme sobre os homens na vida de Elis Regina

Com uma proposta bastante questionável, o filme "Elis" mostra que a mulher mais importante da MPB foi construída e devorada pelos homens que a rodeavam.

Por Júlia Warken
Atualizado em 21 jan 2020, 01h44 - Publicado em 22 nov 2016, 23h49
 (Divulgação/)
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Desde que Andreia Horta apareceu de cabelos curtíssimos na primeira imagem de divulgação de Elis, as expectativas pelo filme têm sido bem altas. E não é para menos! Elis Regina é daquelas figuras que merecem ter sua história contada. A grandeza dela foi gradativamente empalidecida nas décadas que se seguiram à sua morte e o filme poderia corrigir essa injustiça.

Essa mulher revolucionou a música brasileira. A Pimentinha não foi apenas grande em Águas de Março, Fascinação ou Como Nossos Pais, foi ela quem ousou extrapolar as diretrizes da bossa nova para dar início ao que hoje a gente chama de MPB. Muitos desconhecem esse dado e, felizmente, ele é contado na cinebiografia que chega aos cinemas na próxima quinta-feira (24).

É possível dizer que muita coisa é, de fato, contada ao espectador no filme. A linha narrativa é bem tradicional e começa com Elis e seu pai (Zecarlos Machado) chegando ao Rio de Janeiro no início dos anos 1960; depois mostra a temporada em que ela passou em São Paulo; o casamento com Ronaldo Bôscoli (Gustavo Machado) e a volta ao Rio; o divórcio seguido do segundo casamento – com  César Camargo Mariano (Caco Ciocler) – e por aí vai. Tudo linear, até chegar ao final que todos conhecemos.

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A todo o momento, os diálogos são marcados por frases feitas que informam ao espectador que essa foi a maior cantora do Brasil. A necessidade de frisar isso chega a ser exaustiva. Também somos lembrados repetidamente que Elis era gaúcha – o que vem bem a calhar, uma vez que, segundo a interpretação de Andreia Horta, Elis já tinha adquirido o sotaque carioca antes mesmo de pisar no Rio de Janeiro pela primeira vez.

O festival de frases caricatas vai desde “Eu sou a maior e a menor cantora do Brasil” – ela tinha 1,53 metro – até “Agora eles vão ver o que é que a gaúcha tem”. Mesmo assim, detalhes chave da biografia de Elis foram deixados de fora. Tom Jobim sequer é mencionado, por exemplo, nem Rita Lee (cuja importância na vida de Elis deu origem ao nome de sua filha, Maria Rita), nem o fato de que Dois Na Bossa – álbum que ela gravou com Jair Rodrigues – foi o primeiro disco brasileiro a vender 1 milhão de cópias.

Sabendo que a falta de Jobim e de Águas de Março é um questionamento unânime, o diretor Hugo Prata – que assina o roteiro com Luiz Bolognesi e Vera Egito – já explicou mais de uma vez que precisou cortar um monte de trechos do longa em nome da coerência narrativa e do chamado arco dramático. Segundo ele, pareceu mais oportuno focar o filme em passagens da vida íntima de Elis e mostrar os altos e baixos que levaram a estrela a uma morte tão precoce – aos 36 anos.

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O problema é que a premissa não se sustenta. Por vezes o filme quer ensinar quem foi Elis, a-maior-cantora-do-Brasil, e noutros momentos quer focar em nuances intimistas da personagem. O que é absolutamente compreensível, só que o atropelo é muito perceptível – em especial no terceiro ato, em que o desfecho se desenrola sem qualquer aprofundamento e a overdose abrupta se mostra abrupta demais. Demais mesmo!

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Mas as caricaturas e os tropeços poderiam até ser perdoados, já que as passagens musicais emocionam, a reconstituição de época é visualmente impecável e a interpretação esforçada de Andreia mostra-se potente em diversos momentos – apesar de não ser um estrondo como Daniel de Oliveira em Cazuza – O Tempo Não Para. Acontece que a maior das gafes é extremamente significativa, pois a promessa do filme não se cumpre. E isso enfraquece a força de uma personagem que merecia ser melhor retratada. Elis é um filme com nome de mulher e deveria ser sobre a magnitude revolucionária dessa mulher, mas acaba sendo uma crônica sobre os homens que a cercavam.

Andreia Horta é basicamente a única personagem feminina em cena. Nara Leão (Isabel Wilkeraparece durante segundos, Maria Rita (ainda criança) também, e as outras mulheres não têm sequer nome ou falas. “Ele é o namorado do Rio de Janeiro inteiro”, diz uma fulana genérica quando Elis pergunta sobre a canalhice de Ronaldo Bôscoli. E isso é basicamente o tanto de interação que a protagonista tem com outra mulher no filme.

A ideia era mostrar o quanto Elis Regina foi cercada por homens e o quanto ela se sobrepunha a eles, segundo Hugo Prata e Andreia Horta. Mas era só a ideia mesmo, pois, lamentavelmente, não é isso que se vê na tela. A não ser pelo primeiro ato do filme, em que ela cala a boca do pai controlador e deixa a dupla Luís Carlos Miele (Lúcio Mauro Filho) e Ronaldo Bôscoli se perguntando “ué?” quando troca o Rio de Janeiro por São Paulo. É a famosa Pimentinha mostrando a que veio! Mas mostra pouco e a fúria marcante de Elis vai minguando para se transformar numa profunda dependência emocional.

O filme se esforça (muito!) em nos mostrar que Elis desprezava Bôscoli, o namorador charlatão. Só que tudo muda e a raiva vira paixão – o que de fato aconteceu, mas dificilmente a história real foi tão piegas quanto a que vemos na tela. Numa cena à la Nicholas Sparks, Bôscoli toca no rosto de Elis e dispara: “Você é uma mulher muito bonita. Será que nunca ninguém lhe falou o quanto você é bonita?” E boom! A mocinha percebe que ali nascia um grande amor. Essa cena também se preocupa em explicar que o cabelo icônico da cantora não foi uma ideia dela, mas sim, de Bôscoli.

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A partir daí, Elis é mostrada como uma esposa de olhinhos piscantes. Só que a infidelidade do marido não tarda a dar as caras novamente, bem como um festival de atitudes arrogantes. E Elis esperneia, mas se submete por anos, até que pede o divórcio. E a redenção emocional se dá na figura de outro homem: César Camargo Mariano. Só faltou o cavalo branco!

Vale lembrar que, bem antes disso, o filme ensina ao espectador que Elis era uma garota quadradona e sem presença de palco, que mal movia o corpo ao cantar. Foi um homem chamado Lennie Dale (Júlio Andrade) que ensinou a ela como mexer o tronco e os braços nas apresentações. Lennie virou seu grande amigo, assim como Nelson Motta (Rodrigo Pandolfo), outro coadjuvante que aparece como um dos homens de Elis – e que, como o filme frisa, modernizou de maneira decisiva a sua musicalidade. Quer mais um personagem masculino no encalço da cantora? Jair Rodrigues (Ícaro Silva). E outro? Henfil (Bruce Gomlevsky), cartunista do Pasquim que crucificou a cantora após a emblemática apresentação nas Olimpíada do Exército, em 1972.

E é de Henfil a frase que, segundo Hugo Prata, foi uma espécie de fio condutor dessa história onde sempre há espaço para mais um homem (desde que ele não seja Tom Jobim): Nós homens te matamos, mulher” (numa alusão à morte precoce de Elis, obviamente). Essa frase jamais é dita no filme, pois “não dá para dar tudo mastigadinho”, segundo o diretor.

Por fim, esse é um filme bastante mastigadinho, por mais que tente não ser. Mas, infelizmente, não cumpre a promessa de mostrar, à altura, a força revolucionária de sua personagem central. A sensação que fica é a de que Elis Regina foi uma mulher fraca de voz forte. Uma mulher cercada, impulsionada e esmagada pelos homens que choraram sua morte.

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