“Eva”, de Nara Vidal, brinca com a noção de sanidade e loucura
Com uma protagonista amargurada por um passado desconcertante, o livro da autora brasileira traça com elegância a relação problemática entre mãe e filha
“Há alguém louco neste relato e eu me sinto muito bem e lúcida.” Nara Vidal convida o leitor, com o seu brilhante Eva (Todavia, R$ 54,90), a transitar em corda bamba diante da cabeça transtornada da personagem-título. Filha de uma família católica, ela teve o nome de batismo dado pelo pai em homenagem àquela lá que todo mundo sabe a história. Essa mesma, da maçã. Morder o proibido e lançar ao mundo uma maldição. É assim que a mãe de Eva a enxerga: depravada, endiabrada, terrível, incontrolável.
Crescer ouvindo tantas desgraças relacionadas ao nome, ou ter os comportamentos infantis e adolescentes dos mais comuns justificados com esse ~misticismo~ disfarçado de impaciência-rivalidade, fez Eva desenvolver uma relação complicada com a maternidade – há de se imaginar o porquê. Porém, com a morte da mãe, um vazio se instaura em sua vida e as memórias de antes passam a interferir nas lembranças do agora. “Antes de existir o tempo, houve a mãe”, e sem ela, impossível estruturar a linguagem interna de modo a fazer-se sentido no mundo. E mesmo na sua ausência, ela sempre estará presente, no ideal imaginado para si por aquela que a criou, nas cobranças do ser-não ser de tal jeito, nos julgamentos de sua vida sexual e amorosa.
Eva, então, se perde, de si, do filho, do marido, da floricultura que avista da janela recoberta por linho marrom no balançar das cortinas. Escuta um ruído de telefone que a busca incessantemente para aulas de português, mas a percepção é de imaginar o barulho, mesmo com o testemunhar dos vizinhos. Ela volta ao passado para justificar o presente, “não é só a falta de descaso que seca a gente. É a tristeza que, por vezes, nem eles sentem, mas a mãe sim, inventa a dor, rejeição, amargura, sofrimento, culpa”. E se perde nesse rememorar de dores jamais elaboradas que ainda machucam o corpo e “o que ficou não dá para ver”. Não mesmo, mas ainda sente, ressoa, cava buracos mais profundos e nos faz desencantar com a vida.
Em direção ao fim, Eva se mostra pronta para abraçar o destino que lhe foi dado desde o batismo, cumprindo a imagem que sua mãe lhe deu sem pedir licença. E a escrita bonita de sua autora faz confundir o leitor da mesma forma que sua personagem está confusa, tudo se mistura, tudo corrói, vemos as ruínas e as estranhas dessa mulher amargurada.
Uma tristeza elegante de ler, não por romantizar – pelo contrário. Elegante porque respeita o desenrolar misterioso dessa figura que o tempo todo foge do seu feminino ancestral e atual; pela linguagem usada e metafórica de silêncios. “O capricho de uma língua é sua utilidade. Sem uso, gasto e abraço na lida de todo dia, transformam os livros e os estudiosos em tolos e pretensiosos.” Do alto desse penhasco emocional, do qual somos cúmplices calados, Nara brinca com a nossa noção de sanidade diante da vulnerabilidade de Eva. Desse relato transpassado por culpa e violência, quem estaria, então, louco, nós ou Eva? “A loucura é a liberdade mais próxima àquela da morte.” Impecável.